EVARIST​O MENDES

Evaristo Mendes [i]

A revisão do CPI (2018).

O «novo» modelo de arbitragem e medicamentos genéricos [ii]

Introdução

A presente comunicação prende-se com medicamentos ditos de referência e medicamentos genéricos; mais especificamente, com a Lei 62/2011, de 12 de dezembro, que, a respeito dos mesmos, designadamente, instituiu um sistema de resolução de litígios que envolvem direitos industriais – em especial, patentes e CCP - consistente (i) numa arbitragem(arbitragem necessária) e (ii) numa ação especial simplificada de acertamento (preventivo) dos direitos, a propor nos tribunais arbitrais, com o objetivo primordial de desembaraçar os medicamentos genéricos de obstáculos processuais à sua entrada tempestiva no mercado, retirando também dos tribunais administrativos o contencioso maciço então existente.

O legislador propõe-se agora, mais de seis anos volvidos, rever o regime, abolindo a arbitragem necessária. Mas mantém a ação especial - a intentar no TPI ou, havendo acordo dos interessados, num tribunal arbitral -, que acresce, assim, aos meios gerais de tutela das patentes e CCP.

Vejamos para já alguns conceitos fundamentais, o contexto e os objetivos da Lei 62/2011 (n.ºs 1 a 7), bem como algumas questões relativas à sua interpretação e aplicação (n.º 8). Analisaremos depois a projetada revisão do diploma (n.ºs 9 a 11).

1. Medicamentos de referência e medicamentos genéricos

1.1 Para comercializar ou lançar no mercado um medicamento, é necessária uma autorização sanitária - a AIM -, em regra concedida em Portugal pelo Infarmed. Existem, ainda, atos administrativos complementares: de aprovação do PVP e de comparticipação financeira no preço.

1.2 No caso do lançamento no mercado de medicamentos novos ou para novos usos médicos, há a necessidade de uma AIM obtida após um processo completo, longo e dispendioso, destinado sobretudo a comprovar que o medicamento é eficaz para os fins visados e sanitariamente seguro [iii] . Subsequentemente, quando da introdução no mercado de medicamentos de imitação, correntemente apelidados de medicamentos genéricos, podem obter-se AIMs mediante procedimento simplificado, aproveitando a informação que já existe acerca do medicamento inovador ou original, entretanto tornada acessível, comummente dito medicamento de referência.

2. Típica existência de patente relativa ao medicamento original

2.1 Quando é requerida (e obtida) uma AIM para um medicamento genérico, numa primeira fase - a do aparecimento dos primeiros medicamentos genéricos -, existem tipicamente uma ou mais patentes ou CCPs em vigor. Sendo este o caso, a produção, a armazenagem, a comercialização, etc., do medicamento genérico só são lícitas com autorização do titular do exclusivo.

2.2 Quer dizer, um mercado livre e concorrencial do medicamento de referência e dos medicamentos genéricos apenas existirá após terminar o exclusivo.

3. Vantagens concorrenciais: patentes e pioneirismo

3.1 Todavia, estudos económicos revelam que os agentes económicos adquirem significadas vantagens competitivas no mercado, designadamente, por duas vias: (i) através de patentes (sobretudo no setor farmacêutico) e (ii) através do pioneirismo, do lançamento de novos «produtos» ou da chegada ao mercado do bem em causa em primeiro lugar.

3.2 No caso dos medicamentos, chegar primeiro ao mercado livre, de medicamentos genéricos, pode também conferir uma vantagem concorrencial, em face de outros fornecedores de medicamentos genéricos.

4. Risco e tentação da infração

4.1 Daqui decorre, em relação a medicamentos comercialmente valiosos, uma especial tentação de lançamento no mercado de um medicamento genérico ainda antes de a patente ou o CCP terminarem, mesmo se tal constitui um ilícito civil e penal. O risco de tal acontecer é especialmente elevado quando já há uma AIM, um PVP aprovado e a aprovação da comparticipação. De tal modo que chegou a ser discutido no senado francês um projeto de lei no sentido de estabelecer uma espécie de presunção de ameaça iminente de infração quando se requer a aprovação do PVP [iv] .

4.2 Na verdade, verifica-se, ainda, um risco grave adicional: o de haver uma comparticipação pública em medicamentos contrafeitos e um correspondente estímulo da infração por parte do Estado. O que é incompatível, inter alia, com o princípio do Estado de Direito (art. 2 da CRP).

5. Âmbito do exclusivo e AIM

5.1 O exclusivo conferido por uma patente ou CCP é muito amplo: compreende o fabrico, a oferta, a armazenagem, a importação, a comercialização, a utilização, etc., do produto patenteado (art. 101 do CPC).

5.2 Ainda assim, não compreende, designadamente, os atos realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais . Hoje, está assente que esta exceção se estende aos processos de obtenção de AIM [art. 102c) CPI e Lei 62/2011, analisada adiante].

5.3 Antes da Lei 62/2011, o alcance da exceção era, no entanto, controvertido, dando origem a um vasto contencioso relacionado com as AIM e a aprovação de PVP e da comparticipação pública. Concretamente, havia um vasto contencioso administrativo, sobretudo cautelar, de suspensão de AIMs concedidas, bem como de atos de aprovação do PVP e da comparticipação financeira pública. A situação era muito incerta, prevalecendo na primeira instância a tese de que tais atos administrativos (e os respetivos procedimentos) não ofendiam as patentes e CCP em vigor; e prevalecendo na segunda instância (TCAS) a tese oposta. Ambas as teses eram apoiadas por eminentes autores.

6. Relatório sobre o Inquérito ao Setor Farmacêutico de 2009. Memorando da Troika

6.1 Num outro plano, em julho de 2009, a Comissão Europeia aprovou e fez publicar o Relatório Final sobre um Inquérito ao Setor Farmacêutico, no qual se concluía, inter alia, que as empresas farmacêuticas titulares de patentes e CCP tendiam muitas vezes a prolongar artificialmente os respetivos exclusivos, criando obstáculos à entrada dos medicamentos genéricos logo que terminado o direito privativo. Com duas consequências negativas: a restrição artificial e ilegítima à concorrência; e a oneração dos orçamentos dos EM.

6.2 Recomendava-se aos EM a tomada de medidas capazes de eliminar tais obstáculos. No chamado Memorando da Troika, assinado em 2011, reafirmavam-se estas recomendações.

7. Lei 62/2011. Objetivos e modo de efetivação [v]

7.1 A Lei 62/2011 surgiu neste contexto, tendo como objetivos principais:

a) Pôr termo ao enorme contencioso existente nos TA;

b) Pôr termo à inerente insegurança jurídica;

c) Criar condições para que os medicamentos genéricos pudessem entrar no mercado no dia seguinte ao da cessação das patentes e CCP…

d) … Permitindo deste modo ao Estado poupar na comparticipação dos medicamentos; e, mais latamente,

e) Afastar o problema dos tribunais do Estado.

7.2 Para atingir tais objetivos, a Lei 62/2011, designadamente:

a) Operou uma separação das águas: declarou coisas distintas os processos e atos administrativo-sanitários, por um lado, e os exclusivos da PI, por outro lado, considerando os primeiros não englobados no exclusivo conferido por patente e CCP;

b) Instituiu um sistema de arbitragem necessária para apreciar os litígios de direito industrial em que estivessem em confronto medicamentos de referência e medicamentos genéricos;

c) Criou uma ação especial simplificada, tendente, no essencial, a acertar os DPI existentes, precisando os seus limites, e, sendo o caso, a condenar na sua observância o demandado, baseada na simples publicitação de um pedido de AIM para medicamento genérico, ou seja, diferentemente do que em geral acontece, sem ter como pressupostos necessários a existência de infração ou uma ameaça iminente de infração.

Idealmente, esta ação correria nos tribunais arbitrais, em paralelo com o processo administrativo relativo à AIM, e terminaria antes dele ou, grosso modo, na mesma altura.

8. Vicissitudes na aplicação da Lei 62/2011. Questões controvertidas [vi]

8.1 A arbitragem necessária, apesar de motivada por um interesse de ordem pública no desembaraçamento dos medicamentos genéricos de entraves artificiais à sua entrada no mercado, teve sempre a oposição de uma parte das empresas de medicamentos genéricos - sobretudo multinacionais ou suas subsidiárias, hostis à ideia de serem condenadas preventivamente na observância dos DPI em vigor, sobretudo com adicionais SPC destinadas a conferir eficácia prática à condenação - e a indiferença de outra parte. Apesar disso, numa primeira fase, os processos arbitrais decorreram com relativa normalidade.

8.2 Numa segunda fase, algumas das principais empresas (multinacionais) de medicamentos genéricos adotaram uma estratégia de maior hostilidade, que, nomeadamente, redundou num afastamento do circuito das arbitragens em causa de reputados especialistas na matéria, e passaram a usar mais intensivamente de exceções, com especial destaque para a controvertida exceção de invalidade da patente ou CCP. Tendo como resultado uma dificuldade acrescida de conclusão das ações especiais simplificadas no tempo normal previsto pelo legislador.

8.3 Diversas outras questões permaneceram controvertidas ou mal esclarecidas. Salientam-se:

a) A de saber se a arbitragem necessária (art. 2 da Lei) deve valer não apenas para as ações especiais do art. 3, mas também para as ações de infração; sendo a orientação dominante afirmativa, embora ela levante problemas ao nível da efetividade dos direitos [vii] ;

b) A de saber se neste art. 3 se contempla uma ação especial, que acresce às ações comuns, máxime de infração, e respetivos procedimentos cautelares; dado legal negado nalguns arestos do TRL e ignorado noutros, designadamente do TC, mas dificilmente contestável em face do regime dos pressupostos da ação (art. 3.1), das consequências da não contestação (art. 3.2), da limitação dos articulados e demais tramitação do processo (art. 3.3-5), da limitação das instâncias de recurso (art. 3.7), etc. [viii] ;

c) A de saber se o art. 3.7 (que apenas prevê um recurso para o TRL) contém uma limitação das instâncias de recurso e, em caso afirmativo, se tal limitação vale apenas para as ações especiais reguladas neste preceito, que nos parece ser a interpretação correta da lei, ou também para as ações de infração e providências cautelares [ix] ;

d) A de saber se o decurso do prazo de 30 dias previsto neste art. 3 tem um efeito preclusivo do direito de ação e, sendo o caso, de que direito de ação; cabendo observar, por um lado, que, identificando-se no art. 3 uma ação especial, fica claro que este é um prazo de caducidade, circunscrito à ação especial, isto é, cujo decurso não impede o funcionamento dos meios gerais de tutela, principais e cautelares, máxime em caso de infração ou ameaça iminente de infração, por outro lado, que, nesta leitura da lei, não há nenhum problema de inconstitucionalidade [x] ;

e) A de saber se, no âmbito das ações especiais do art. 3, a condenação na observância dos DPI pode ou deve ser acompanhada de uma sanção pecuniária compulsória, destinada a assegurar-lhe efetividade prática, como se afigura pertinente, mas com posição maioritária negativa ao nível do TRL, embora sem cabal discussão do assunto [xi] ;

f) A de saber como se garante a efetividade prática de uma sentença arbitral sendo a AIM que serve de base à ação arbitral alienada (incluindo a uma entidade do mesmo grupo) [xii] ;

g) A de saber como devem repartir-se os encargos da arbitragem no caso da ação especial [xiii] ;

h) A de saber se é de exigir e em que consiste, nas ações especiais, o requisito processual do interesse em agir [xiv] ; e

i) A de saber como se assegura a efetividade prática das patentes de 2.º uso médico [xv] .

8.4 Quanto à questão da possibilidade de invocar a invalidade da patente ou CCP como exceção e a competência dos TA, em especial, cumpre observar o seguinte:

a) Trata-se de uma questão que se tornou muito controvertida, embora pareça prevalecer a tese da incompetência dos TA na jurisdição arbitral e na jurisdição comum (TRL e STJ). Em sentido contrário, salienta-se o AcTC n.º 251/2017;

b) O problema assume contornos distintos consoante se trate de uma ação de infração em geral, de uma ação de infração contra um licenciado ou de uma ação especial do art. 3 da L 62/20111, mas estas distinções não têm sido feitas [xvi] ;

c) Em geral, estão em causa patentes obtidas após um rigoroso exame prévio dos requisitos de patenteabilidade, em fim de vida e escrutinadas a nível mundial, o que indicia estarmos perante um simples expediente dilatório. Isto não é, no entanto, necessariamente assim, em especial em patentes de 2.º uso médico ou novas gerações de patentes.

d) As teses em confronto podem reconduzir-se a um problema de perspetiva mais geral, em que uma ótica de análise «civilista» contrasta com uma ótica de análise comercialista (cfr. adiante, 11.5);

e) O problema não é constitucional, mas de interpretação da lei ordinária (cf. adiante, 11.5). Retoma-se o tema adiante (n.º 11).

9. Primeiro Projeto governamental de novo CPI e de revisão da Lei 62/2011

Vejamos agora a projetada revisão da Lei.

9.1 Num primeiro Projeto de revisão da matéria (de 22.12.2017), o Governo propunha-se

(i) pôr termo à arbitragem necessária e

(ii) rever o art. 3 da Lei 62/2011, inserindo nele, designadamente, apossibilidade de, no processo arbitral, tendo ele lugar, «ser invocada e conhecida a invalidade da patente com meros efeitos inter partes»;

9.2 No mesmo projeto, o titular do DPI, nas ações do art. 3, aparentemente podia optar: por propor a ação no TPI ou desencadear um processo arbitral, conforme lhe conviesse mais. O que se afigurava problemático, dado que se privilegiava um dos contendores [xvii] .

10. Proposta aprovada e enviada à AR

10.1 O Governo aprovou, entretanto, uma proposta, que remeteu à AR, no dia 26 de abril do corrente ano de 2018 [xviii] .

10.2 Na Exposição de Motivos desta proposta, tal como no Projeto, justifica-se o fim da arbitragem necessária do seguinte modo:

«Finalmente, reconhecendo que o circunstancialismo que levou à aprovação da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, que criou um regime de composição dos litígios emergentes dos direitos de propriedade industrial quando estavam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, foi ultrapassado e se mostram reunidas as condições para revisitar esta matéria, opta-se por revogar o regime de arbitragem necessária então criado, deixando às partes a opção entre o recurso a arbitragem voluntária ou ao tribunal judicial competente».

10.3 O art. 2 da Lei 62/2011, agora intitulado «Arbitragem voluntária», passa a dispor:

«Os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência, designadamente os medicamentos que são autorizados com base em documentação completa, incluindo resultados de ensaios farmacêuticos, pré-clínicos e clínicos, e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de proteção, podem ser sujeitos a arbitragem voluntária, institucionalizada ou não institucionalizada».

10.4 O art. 3 da Lei 62/2011 mantém-se, mas o titular de DPI, se o entender, deve propor a ação no TPI ou desencadear processo arbitral. Esta via arbitral requer o acordo do demandado.

10.5 Desapareceu a referência à exceção de invalidade.

10.6 Especificamente, dispõe o art. 3, na nova redação:

«1 - No prazo de 30 dias a contar da publicitação na página eletrónica do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P. (INFARMED, I. P.), de todos os pedidos de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamentos genéricos, o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior deve fazê-lo (i) junto do Tribunal da Propriedade Intelectual, ou (ii) em caso de acordo entre as partes junto do Tribunal arbitral institucionalizado ou efetuar pedido de submissão do litígio a arbitragem não institucionalizada.

2 - A não dedução de contestação, no prazo de 30 dias após citação na ação intentada no Tribunal da Propriedade Intelectual ou da notificação para o efeito pelo tribunal arbitral, implica que o requerente de autorização, ou registo, de introdução no mercado do medicamento genérico não poderá iniciar a sua exploração industrial ou comercial na vigência dos direitos de propriedade industrial invocados nos termos do n.º 1.»

10.7 Prevê-se, ainda, na Proposta, a seguinte disposição transitória (art. 5):

«Após 12 meses da entrada em vigor prevista no n.º 1 do artigo 15.º, a Direção-Geral da Política de Justiça apresenta um relatório ao membro do governo responsável pela área da Justiça com a análise de dados estatísticos relacionados com o funcionamento do tribunal da propriedade intelectual especificamente no âmbito dos litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência.»

11. Observações sobre a Proposta

11.1 Compreende-se a nova redação do art. 2 da L 62/2011, substituindo a referência à arbitragem necessária pela referência à arbitragem voluntária; mas nesta nova redação o preceito é redundante em face da LAV (cfr. o art. 1 desta Lei).

11.2 A Lei mantém a ação especial do art. 3, que assim acresce às ações gerais, designadamente ações de infração. O que constitui uma especificidade do direito português e, agora, uma especificidade com aparente caráter definitivo, porventura justificável, apesar do disposto no art. 27.1 do ADPI/TRIPS, considerando a especial importância das patentes farmacêuticas e os valores e interesses em jogo, incluindo os associados à comparticipação pública no preço dos medicamentos.

Apesar de a finalidade explícita deste tipo de ações ter sido desembaraçar os medicamentos genéricos de entraves processuais, é duvidoso que o objetivo tenha sido atingido, a não ser na medida da separação das águas a que se aludiu acima (n.º 7); e pelo menos um adicional efeito prático foi o reforço da tutela dos direitos privativos (patentes e CCP), especialmente ameaçados sobretudo quando já há a aprovação da comparticipação pública no PVP.

11.3 Passando a arbitragem a ser voluntária, mesmo no que respeita a esta ação, em face da experiência de aplicação da Lei, com toda a probabilidade a quase totalidade destas ações será proposta no TPI; ou seja, afigura-se expectável que o TPI venha a ficar «inundado» com o contencioso maciço de ações que agora competiam aos tribunais arbitrais. O próprio Governo, apesar de, por um lado, dizer que desapareceram as circunstâncias que levaram à instituição da arbitragem necessária, por outro lado, de algum modo o reconhece (ou receia), ao prever um relatório após 12 meses de vigência do novo regime.

A menos que a capacidade de resposta do TPI seja grandemente aumentada, tal significa um provável regreesso à situação anterior à L 62/2011, ainda que a dimensão do problema possa ser menor.

11.4 O atual problema de saber se os TA são competentes para conhecer daexceção de invalidade das patentes e CCP com efeitos inter partes, resolvido no Projeo em sentido afirmativo mas ausente da proposta, na prática, vai desaparecer. Mas subsiste sob outra forma:

a) Podem as partes prever essa possibilidade numa eventual convenção de arbitragem?

b) Se a não previrem, ela será admissível?

c) Sendo a ação proposta no TPI – quer se trate de ação especial quer de ação de infração –, pode o demandado deduzir tal exceção ou apenas pode deduzir reconvenção, aplicando-se o regime do novo art. 34 do CPI (correspondente ao atual art. 35)?

11.5 Sobre este ponto, importa esclarecer o seguinte:

a) Atualmente, a alternativa ao sistema que admite a invocação da invalidade como exceção, nos tribunais arbitrais, com efeitos inter partes, consiste num sistema dualista (como o que existe designadamente na Alemanha nos tribunais estaduais), em que apenas o TPI tem competência na matéria e a sentença por ele proferida tem eficácia erga omnes, mantendo, extinguindo ou reduzindo o exclusivo contestado, enquanto as demais ações – de infração ou especiais, ao abrigo do art. 3 da Lei 62/2011 - correm nos TA;

b) Uma empresa de medicamentos genéricos que queira fazer valer uma alegada invalidade da patente ou CCP terá, assim, (i) quando requer uma AIM e é expectável ser-lhe movida uma ação ao abrigo deste art. 3 da Lei 62/2011, ou (ii) quando pretenda lançar no mercado um medicamento genérico por entender ser inválido o título do exclusivo e é expectável ser-lhe movida uma ação de infração, que, paralelamente, propor uma ação de invalidade no TPI;

c) Vindo a ser demandada em alguma destas ações, poderá, então, invocar a pendência da ação de invalidade e pedir ao TA a suspensão da instância arbitral até ela ser decidida;

d) Como sucede na Alemanha, o TA fará um juízo sumário sobre o assunto, em face dos elementos disponíveis: se entender que há razões capazes de levar ao reconhecimento da invalidade pelo TPI, ultrapassando a existente presunção de validade dos títulos (art. 4.2 do CPI), suspende a instância. Caso contrário, ambas as ações prosseguem, em paralelo. A decisão do TA está sujeita a recurso para o TRL.

e) Este sistema justifica-se sobretudo em relação a patentes concedidas após exame prévio dos requisitos de patenteabilidade, publicidade legal e decurso de prazo sem impugnação – donde deriva uma presunção forte de validade; como tende a ser a regra no domínio farmacêutico (quase todas as patentes são concedidas pelo IEP).

f) Nos termos do art. 61.1 da CRP, a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos na Constituição e na lei – ou seja no quadro do sistema sócio-económico tal como definido pela Constituição e, no respeito por esta, pelo legislador ordinário – e tendo em conta o interesse geral. A existência de patentes e o sistema de invalidades respetivas pertence a esse quadro, estando no âmbito da autonomia conformadora do legislador democrático; e o legislador tem, ainda, o poder de fazer prevalecer o interesse geral sobre interesses meramente particulares.

g) É, portanto, dentro destes parâmetros que as empresas de medicamentos genéricos podem desenvolver a sua atividade; são estas as regras do jogo aplicáveis. Não há aqui nenhum problema constitucional, como também não existe na Alemanha, com sistema semelhante embora dentro dos tribunais estaduais.

h) Situando o problema no campo da interpretação da lei ordinária, existem argumentos a favor e contra um tal sistema. Mas pesam mais os argumentos a favor.

i) Na verdade, abstraindo de pormenores, o problema é, no essencial de ordenação económica: para haver um sistema económico e um subsistema de patentes ordenados e eficientes, com a efetividade das patentes - enquanto direitos privativos ou de exclusivo - necessária para o sistema cumprir a função de promoção da inovação que primacialmente lhe cabe, com igualdade concorrencial dos não titulares de patentes e não favorecimento dos economicamente mais fortes, essa é a melhor interpretação da lei.

j) Note-se, em especial, que a tese oposta defendida no AcTC n.º 251/2017 [xix] favorece as grandes farmacêuticas de genéricos (multinacionais, em muitos casos, com dimensão e poderio económicos muito superiores ao da maioria das empresas de medicamentos genéricos e, inclusive, de muitas empresas inovadoras), autorizadas a partilhar o exclusivo com o titular do mesmo, com exclusão das que, por falta de capacidade económica e técnica, nem sequer contestam as ações do art. 3 da Lei 62/2011. Em última análise, é, portanto, o interesse particular e o poder económico dessas farmacêuticas que se está a proteger, em detrimento sobretudo das demais empresas de medicamentos genéricos.

k) No fundo, o problema é também de perspetiva (cfr. «supra», 8.4): visto ele como um mero problema de justiça intersubjetiva entre demandante e demandada – ou seja, reduzido à questão de saber se a empresa demandada tem ou não tem direito a contestar a validade do título do direito que se faz valer contra si – (ótica civilista), parece ter razão a demandada. Visto como um problema mais vasto de ordenação económica, envolvendo outros valores e outros interesses, que fazem das patentes e da respetiva validade matéria de interesse público económico, e atendendo a que já houve um processo rigoroso de concessão do direito, justificativo de uma presunção de validade (no caso, reforçada, de facto, pela circunstância de se tratar tipicamente de patentes em fim de vida e escrutinadas a nível mundial) (ótica empresarial/comercial), justifica-se a solução inversa: não porque o interesse concreto da demandante o reclame, mas por uma exigência sistémica mais ampla.

Seria recomendável, no entanto, que o regime legal fosse clarificado ou densificado, no sentido referido. O que o proposto novo art. 34 do CPI, à semelhança do vigente art. 35, não faz.

l) Note-se, ainda, que o sistema tem um paralelo no regime da competência judiciária internacional [xx] .

m) Sendo assim, nas novas ações propostas no TPI, a solução adequada é também a de só admitir a invocação da invalidade mediantereconvenção, decidindo-se de uma vez e com eficácia erga omnes se a patente ou CCP são válidos ou não.

n) Havendo lugar à arbitragem voluntária, se as partes acordarem em incluir na mesma a questão da validade, pode colocar-se a questão de saber se elas não estão a afastar uma regra imperativa, de interesse geral e, portanto, indisponível. Em rigor, parece que sim; mas o CPI tolera situações em que existe um sacrifício semelhante desde que com o concurso do titular do direito (cfr. o art. 243 do CPI).

o) Na falta de acordo das partes, a menos que a convenção de arbitragem possa ser integrada com uma tal inclusão, parece de aplicar a regra geral.



[i] Professor convidado da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da UCP.

[ii] Texto relativo à conferência proferida sobre o tema em 14.09.2018, na Escola do Porto da Faculdade de Direito da UCP.

[iii] Cfr. o Estatuto do Medicamento (DL 176/2006) e também a proposta nova redação do art. 2 da Lei 62/2011 (Proposta de Lei n.º 132/XIII): «Os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência, designadamente os medicamentos que são autorizados com base em documentação completa, incluindo resultados de ensaios farmacêuticos, préclínicos e clínicos, e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de proteção, podem ser sujeitos a arbitragem voluntária, institucionalizada ou não institucionalizada.»

[iv] Cf. evaristomendes.eu, II.6, p. 29 (nota 64).

[v] Cfr., designadamente, a Sentença arbitral de 11.02.2014, BPI 2014/05/07, por nós relatada, com breve nota em Pi n.º 1 (2014), p. 49 e s., e Pi n.º 4 (2015), p. 26-40, 35 e ss. Cfr. também evaristomendes.eu, II.11, p. 5 e ss.

[vi] Sobre o assunto, cfr., designadamente, Evaristo Mendes, Pi n.º 2 (2014), p. 63 e s., Pi n.º 3 (2015), p. 103-110, Pi n.º 4 (2015), p. 26-40, Pi n.º 5 (2016), p. 40-58, 53 e ss., Pi n.º 6 (2016), p. 39, Pi n.º 7 (2017), p. 39-43, CDP 58 (2017), p. 30-41, 34 e ss., Evaristo Mendes/Oehen Mendes, Pi n.º 7 (2017), p. 21-39, Oehen Mendes, Pi n.º 4 (2015), p. 5-14, Pi n.º 7 (2017), p. 18-21, bem como «Breves considerações sobre a incompetência dos tribunais arbitrais portugueses para apreciarem a questão da invalidade das patentes...», in Estudos de Direito Intelectual, coord. Dário Moura Vicente e outros, Coimbra (Almedina) 2015, p. 927-947, todos com mais indicações. Cfr. também evaristomendes.eu, II.

[vii] Cfr. Evaristo Mendes, CDP 58 (2017), p. 30-41, 37 e ss., 39 e ss. (anotação ao AcSTJ de 17.12.2016), com mais indicações.

[viii] Cfr. Evaristo Mendes, CDP 58 (2017), p. 30-41, 37 e ss., Pi n.º 1 (2014), p. 49 e s., Pi n.º 2 (2014), p. 63 e s., Pi n.º 3 (2015), p. 103-110, 106 e ss., e Pi n.º 4 (2015), p. 26-40, 36 e ss.

[ix] Cfr. Evaristo Mendes, Pi n.º 3 (2015), p. 110, Pi n.º 4 (2015), p. 38, e evaristomendes.eu, II.8, p. 1 e ss., 16 e s. (nota aos AcSTJ de 23.06.2016 e 2.02.2017).

[x] Cfr. Evaristo Mendes, CDP 58 (2017), p. 30-41, 34 e ss., com mais indicações.

[xi] Cfr. a citada Sentença arbitral de 11.02.2014, BPI 2014/05/07, p. 54 e ss., Evaristo Mendes, Pi n.º 4 (2015), p. 37, e as indicações constantes da nota 54.

[xii] Cfr. a citada Sentença arbitral de 11.02.2014, BPI 2014/05/07, e Evaristo Mendes, Pi n.º 5 (2016), p. 56 e ss., com mais indicações.

[xiii] Cfr. Evaristo Mendes, Pi n.º 3 (2015), p. 103 e s., 108 e s. e 110, Pi n.º 4 (2015), p. 36, e Pi n.º 5 (2016), p. 54 e nota 18, com mais indicações.

[xiv] Cfr. a citada Sentença arbitral de 11.02.2014, BPI 2014/05/07, p. 74 e ss., Oehen Mendes, Pi n.º 7 (2017), p. 18-21, 20 e s., e Evaristo Mendes, Pi n.º 4 (2015), p. 38, bem como evaristomendes.eu, II.11 (anotação ao AcTRL de 27.04.2017).

[xv] Cfr. Paula Costa e Silva / Evaristo Mendes, «Liberdade de empresa e patente de uso», in Estudos de Direito Intelectual, coord. Dário Moura Vicente e outros, Coimbra (Almedina) 2015, p. 997-1013, com mais indicações.

[xvi] Alguns autores portugueses citam, por ex., um acórdão do TA de Paris de 2008 no sentido da admissibilidade da defesa por exceção com efeitos inter partes; e existe, inclusive, um aresto da Cassação no mesmo sentido, de 2013, mas, em qualquer dos casos, o problema respeitava a um contrato. Acerca do problema em geral, a questão mantém-se em aberto.

[xvii] Cfr. Remédio Marques, «Algumas notas sobre a revisão do CPI», RDI 1/2018, p. 195-2265, 216, em nota.

[xviii] Proposta de Lei n.º 132/XIII.

[xix] Cfr. também a decisão sumária 160/2018, de 6.03, e, por ex., J. Alberto Vieira, RDI 1/2018, p. 257 e ss.

[xx] Cfr. o AcTJUE de 13.07.2006 – GAT, o art. 22.4 da ConvLugano de 2007 e o art. 24.4 do RegBruxelas I (1215/2012).