EVARIST​O MENDES

Evaristo Mendes

Fim dos valores mobiliários ao portador [i]

(Em especial, o problema da subsistência de acionistas anónimos) [ii]

A Lei 15/2017, regulamentada pelo DL 123/2017, decretou a extinção dos VM ao portador. Tem interesse aludir em especial aos VMT, mais especificamente àqueles que têm representação plúrima e não se encontravam inseridos no sistema de administração centralizada a que se referem os arts. 88 e ss, 99, 105 e ss. do CVM. Para simplificar, tomamos como referência os mais problemáticos: as ações representadas por uma pluralidade de títulos ao portador, na posse dos respetivos beneficiários.

Os diplomas em apreço extinguiram os valores mobiliários ao portador, passando as ações a ser nominativas. Todavia, o momento desta extinção não era isento de dúvidas.

Com efeito a Lei comportava duas interpretações distintas. Por um lado, conjugando o art. 2.2 [iii] com o art. 6, que revogou os arts. 101 e 104.1 do CVM (o primeiro relativo à transmissão e o segundo fazendo depender o exercício dos direitos relativos ao valor mobiliário - no caso das ações, os direitos sociais – da posse do título), concluía-se que, com a entrada em vigor da Lei, a situação passara a ser a seguinte: (i) as ações ao portador ficaram extintas, passando a ser legalmente nominativas; (ii) o título – que, sendo ao portador, ficou em desconformidade com a natureza nominativa das ações - deixou de ser um título de crédito, necessário para o exercício dos direitos sociais (este exercício deixou de depender da sua posse), dotado de circulação real (foi proibida a transmissão das ações enquanto valores mobiliários ao portador); passando a ser – transitoriamente - um mero título de legitimação real quanto ao exercício do direito à obtenção de um título nominativo (ou direito à «conversão», mediante alteração do existente, pondo-o em conformidade com a natureza nominativa das ações, ou emissão de um novo) e, tratando-se de ações nominativas, à inscrição do portador no competente registo da sociedade (registo de emissão comportando uma subsequente atualização, constante da Parte III do respetivo modelo legal, segundo a Portaria 290/2000); subsistindo a dúvida sobre se, mediante a sua apresentação e entrega à sociedade para realizar a conversão, era também um título de legitimação quanto ao exercício dos direitos sociais (salvo o direito ao dividendo, que ficou suspenso), embora se afigure que sim; (iii) o título conservava esta sua condição de título de legitimação até à conversão, se esta ocorresse dentro do prazo de 6 meses, ou até este prazo expirar (4 de novembro de 2017); (iv) passado o prazo, sem tal conversão haver ocorrido, ou seja, a partir de 5 de novembro de 2017, o titular das ações - que em rigor já haviam perdido a condição de valores mobiliários (voltando a ser meras ações-participações) – manteve o direito geral à entrega de um título nominativo representativo das mesmas e à inscrição no registo da sociedade; mas passou a ter de provar essa titularidade, nos termos gerais, não beneficiando, para o efeito, de um título de legitimação (legitimação ativa), nem beneficiando a sociedade da correspondente tutela da aparência (dita legitimação passiva) (cfr. os imperfeitamente redigidos arts. 55 e 56 do CVM). A posse e exibição do antigo título constituíam agora um simples meio de prova indiciária da mesma titularidade.

O DL 123/2017 fez uma diferente interpretação do art. 2.2 da Lei – no sentido da subsistência do título e, portanto, das ações ao portador, até à conversão ou até ao termo do prazo legal de 6 meses previsto para esta (preâmbulo e art. 7) [iv] - e, consequentemente, repristinou os arts. 101 e 104.1 do CVM, considerando-os em vigor até ao esgotamento do período transitório (art. 9). Passado este, sem que a sociedade haja cumprido os procedimentos legais tendentes à conversão, mesmo mantendo-se os estatutos em desconformidade com a lei, as ações perderam a condição de valores mobiliários ao portador [v] , tornando-se ações nominativas sem representação cartular (ou escritural), ou seja, simples ações-participações nominativamente tituláveis. O título subsistente – dantes um título de crédito ao portador, transmissível qua tale e, segundo conceção corrente, veículo de circulação autónoma ou protegida das ações participações sociais – passou a ser um mero título de legitimação real, quanto ao exercício do direito à obtenção de um título nominativo (conversão) [vi] e à correspondente inscrição do portador, como acionista, no registo da sociedade (Parte III do registo da emissão, nos termos da Portaria 290/2000), agora necessário e suficiente ou habilitante (legitimador) para o exercício dos direitos sociais [vii] .

Se a sociedade tiver posto os estatutos em conformidade com a lei e solicitado aos acionistas a apresentação dos títulos para a conversão e a competente inscrição no registo, a situação é semelhante quanto aos acionistas que não hajam procedido a essa apresentação. Há, no entanto, aqui um problema regulatório adicional: o da possível (e real!) subsistência de sociedades com acionistas desconhecidos.

Diversamente do que sucede em alguns ordenamentos jurídicos próximos do nosso [viii] , esta situação - consistente na existência de ações-participações sociais com titular desconhecido (anónimo), logo anómala, embora a titularidade seja ineficaz em relação à sociedade e, portanto, os seus domini não integrem a respetiva coletividade social (o que minora a anomalia) – pode prolongar-se indefinidamente, porventura até reverterem para o Estado, passados 20 anos [ix] .

O problema pode ser substancialmente resolvido mediante a introdução nos estatutos de uma competente cláusula de amortização compulsiva (ou aquisição potestativa [x] ), nos termos do art. 347 do CSC, que considere fundamento de amortização a não apresentação dos títulos para conversão, ficando o valor das ações depositado até ser eventualmente reclamado pelos titulares [xi] . Com efeito, por razões de boa ordenação societária e tendo em conta a lei que aprovou o Regime Jurídico do RCBE [Lei 89/2017, alterada pela Lei 58/2020, e regulamentada pelas P 233/2018 e 200/2019] [xii] , a sociedade tem um legítimo interesse em conhecer não só quem são os seus acionistas atuais, mas também os que podem vir a reivindicar essa qualidade em virtude das ações cujo titular se desconhece. Podendo, inclusive, extrair-se da Lei um dever dos titulares das ações em causa de comunicarem à sociedade a titularidade das mesmas (a que é inerente a potencial qualidade de sócio), pelo menos a contar de anúncio público para o fazerem durante certo prazo, sob pena de as ações ficarem sujeitas a amortização [xiii] . E não se afigura legítimo, in casu, que os titulares das ações em apreço invoquem a regra societária segundo a qual o direito potestativo de amortização só é exercitável contra os titulares de ações que já estavam, no momento da aquisição, sujeitas a tal contingência (cfr., a respeito das quotas, o art. 233.1/2 do CSC) [xiv] . [xv]



[i] Sobre o tema, cfr., designadamente: COUTINHO DE ABREU, «A propósito da eliminação das ações ao portador», in V Congresso DSR (2018), p. 55-64, SOVERAL MARTINS, Comentário ao art. 300 do CSC, in CSC em Comentário (coord. de Coutinho de Abreu), vol. 5, 2.ª ed., Almedina 2018, p. 360 e ss., MARIA DE DEUS BOTELHO, «O fim das ações ao portador – O período de conversão do nosso descontentamento», DSR 18 (2017), p. 181 e ss., JOANA EREIO, «O fim dos valores mobiliários ao portador», RDS IX (2017)/4, p. 829-865, em especial, p. 835 e ss. Acerca das implicações da nominatividade obrigatória nos cupões a que se referem os arts. 301 do CSC e 104.3 do CVM, cfr., por ex., SOVERAL MARTINS, Comentário ao art. 301 do CSC, in CSC em Comentário, cit., p. 301 e ss.

[ii] Extrato de texto inédito relativo às aulas de Mestrado ministradas na Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da UCP, ano letivo de 2020-2021.

[iii] Dispunha-se aí: «Os valores mobiliários ao portador são convertidos em nominativos no prazo de seis meses após a entrada em vigor da presente lei, ficando desde esse momento: a) Proibida a transmissão de valores mobiliários ao portador; b) Suspenso o direito a participar em distribuição de resultados associado a valores mobiliários ao portador.»

[iv] Cfr. também, por ex., SOVERAL MARTINS, Comentário ao art. 300 do CSC (2018), cit., p. 366, e JOANA EREIO, «O fim dos valores mobiliários ao portador» (2017), 844.

[v] Cfr. também COUTINHO DE ABREU, «A propósito da eliminação das ações ao portador» (2018), cit., p. 62, e SOVERAL MARTINS, Comentário ao art. 300 do CSC (2018), cit., p. 367 e s.

[vi] Dispõe o art. 7.1: «Os valores mobiliários ao portador não convertidos em nominativos até ao fim do período transitório apenas conferem legitimidade para a solicitação do registo a favor dos respetivos titulares, devendo ainda, no caso de valores mobiliários ao portador titulados, ser apresentados junto do emitente os respetivos títulos para substituição ou alteração das respetivas menções, de modo a que opere a conversão.» Quanto ao destino dos dividendos, cfr. os n.ºs 2 a 4, bem como, a respeito da prescrição quinquenal do crédito, o art. 310d) do CC. Cfr., ainda, o art. 2.2 da Lei 15/2017 (proibição da transmissão dos VM ao portador e suspensão do direito a participar na distribuição de dividendos) e JOANA EREIO, «O fim dos valores mobiliários ao portador» (2017), p. 853 e ss.

[vii] As ações tituladas nominativas são, na realidade, como já se explicitou, valores mobiliários mistos: registados, quanto ao exercício dos direitos sociais e à inerente legitimação (legitimação final); e titulados ou cartulares, quanto à circulação das ações e à correspondente legitimação para requerer o registo (legitimação intermédia). Nesta medida, pode entender-se que a operação de conversão é uma operação complexa, envolvendo quer o título quer o registo.

[viii] Embora o paralelismo das situações não seja perfeito, cfr. o art. L212-3 do Code Monnétaire et financier francês, que confere à sociedade o poder-dever de promover a alienação das ações, passado um ano, e a consignação em depósito do valor obtido. No direito belga, o instituto da aquisição «potestativa» de ações foi, pelo menos em grande medida, concebido para o efeito [cfr., no atual Code des Sociétés de 2019, o art. 5:69, § 1.º, e, com mais informações, JOANA EREIO, «O fim dos valores mobiliários ao portador» (2017), p. 837]. Cfr., ainda, acerca das consequências da não conversão (Irlanda e RU) ou da não realização do depósito obrigatório dos títulos durante certo prazo (Luxemburgo e Holanda), JOANA EREIO, ib., p. 937 e ss.

[ix] Cfr. os arts. 1 e 2 do DL 187/70, o art. 68 do Dec. 10 634/1925, e, ainda, o art. 71 deste decreto, bem como COUTINHO DE ABREU, «A propósito da eliminação das ações ao portador» (2018), cit., p. 63 e s., e SOVERAL MARTINS, Comentário ao art. 300 do CSC (2018), cit., p. 368.

[x] Via de regra, se a sociedade tem o direito de amortização de ações, que é a forma mais radical do poder de disposição das mesmas, também deve ter – pelo menos mediante estipulação estatutária nesse sentido - o poder de as adquirir (dentro dos limites dos arts. 316 e ss. do CSC) ou fazer adquirir (cfr., a respeito das quotas, o art. 232.5 do CSC).

[xi] Poderá também equacionar-se a possibilidade de o direito à conversão prescrever no prazo de 5 anos a contar de 5 de novembro de 2017 (dado que o prazo legal, para o efeito, terminou no dia 4); restando ao acionista, a partir daí, o direito geral ao título [(re)transmutação das ações em valores mobiliários], provando a titularidade das ações, nos termos gerais [cfr. o art. 174.1d) do CSC]. Defendendo uma solução deste género no caso do reagrupamento de ações, numa operação de redução do capital social, cfr. P. Tarso Domingues, O Financiamento Societário pelos Sócios, Coimbra (Almedina) 2021, p. 438 e s., nota 1996.

[xii] Sobre este regime jurídico, cfr., por ex., ELISABETE RAMOS, «Controlo de identidade dos sócios – alguns problemas recentes», V Congresso DSR (2018), p. 65-105, 79 e ss., e «Os Registos de Beneficiário Efetivo», ROA 78 (2018), p. 333-376.

[xiii] Cfr. os arts. 4.1b) e 5.1/4 da Lei.

[xiv] Na verdade, nos termos dos artigos citados na nota anterior, pode retirar-se, inclusive, um poder legal de amortizar, no termo de prazo fixado em anúncio público no qual se determine a apresentação dos títulos para conversão e inscrição no registo, sob pena de as ações em falta ficarem sujeitas a amortização. Com dúvidas acerca da constitucionalidade da solução legal (mesmo sem contemplar o caso analisado), cfr. ELISABETE RAMOS, «Controlo de identidade dos sócios – alguns problemas recentes» (2018), cit., p. 94 e ss., 96 e ss.

[xv] No caso de o acionista requerer a conversão, apresentando os títulos, e a sociedade se recusar a fazê-la, cfr. o art. 1064 do CPC e SOVERAL MARTINS, Comentário ao art. 300 do CSC (2018), cit., p. 368 e s.