EVARIST​O MENDES

Evaristo Mendes [i]

Fiança

(Comentário aos artigos 627 a 655 do Código Civil) [ii]

SECÇÃO II – Fiança

Notas introdutórias

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: No CC de 1867, a fiança encontrava-se regulada nos artigos 818.º a 854.º. Nos trabalhos preparatórios, salienta-se o estudo de SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», publicado no BMJ n.º 71, 1957, pp. 19-331.

2. Bibliografia nacional: ALMEIDA, C. FERREIRA DE, Contratos III, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 195-204; ANTUNES, J. ENGRÁCIA, Direito dos contratos comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 531-536; Os Títulos de Crédito, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 85-89; CORDEIRO, A. MENEZES,Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações. Garantias, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 423-526 (n.ºs 202 e ss.), 575-592 (n.ºs 270 e ss); COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 888-908; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, «A fiança no quadro das garantias pessoais. Aspetos de regime», Estudos de Direito das garantias, I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 7-48, «A chamada fiança ao primeiro pedido», ibidem, pp. 139-184, Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 380-393, 306-310, «Sobre os poderes dos credores contra os fiadores no âmbito de aplicação do CIRE. Breves notas», III Congresso de Direito da Insolvência, coord. de SERRA, CATARINA, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 313-341; LEITÃO, L. MENEZES, Garantia das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 103-127, 147 e ss., Direito das Obrigações, II, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, pp. 327-342; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 643-673; MATIAS, A. SARAIVA, Garantias bancárias ativas e passivas, Scripto, Lisboa, 1999, pp. 23-36; MARTINEZ, P. ROMANO / PONTE, P. FUZETA DA, Garantias de cumprimento, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pp. 86 e ss., 115 e ss.; MENDES, EVARISTO, «Letra de Câmbio e Direito Comercial centrado na Empresa. O Legado de Paulo Sendin», AAVV, Estudos em memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, UCE, Lisboa, 2012, pp. 13-70; NORONHA, ANDRÉ NAVARRO DE, As Cartas de Conforto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005; PINTO, CARLOS DA MOTA, Cessão da posição contratual, Coimbra, 1970; SENDIN, PAULO / MENDES, EVARISTO, A natureza do aval e a questão da necessidade ou não do protesto para acionar o avalista do aceitante , Almedina, Coimbra, 1991; SERRA, A. VAZ, Anotação ao Ac.STJ de 28.11.1972, RLJ 106, 1973-74, pp. 363-367, 373-383; SILVA, J. CALVÃO, «Garantias acessórias e autónomas», Estudos de direito comercial (Pareceres), Almedina, Coimbra, 1996, pp. 327-361, e «Mandato de crédito e carta de conforto», AAVV, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II, Almedina, 2002, pp. 245-264; TELLES, I. GALVÃO, Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, pp. 509-512, e «Garantia bancária autónoma», O Direito 120, 1988, pp. 275-293, 581-604; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 477-517; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 83-117, 182 e ss., 187 e ss.

3. Jurisprudência: Acs.STJ de 6.05.2004 (04B1317), de 4.11.2013 (67/09.6TBLSA.C1.S1), de 21.01.2014 (6466/05.5TVLSB.L1.S1), de 13.11.2014 (4103/12.0TBSXL-A.L1.S1) e de 31.01.2017 (519/10.5TYLSB-CE.L1.S1); acs.TRL de 17.12.2009 (3810/06.1TVLSB.L1-6), de 8.03.2012 (3166/05.0TBCSC.L1-8), de 17.01.2012 (896-C/1998.L1-7) e de 10.03.2013 (2092/11.8TVLSB.L1-2); acs.TRP de 18.01.2011 (193/04.8TBMCN.P1) e de 3.06.2013 (70/08.3TBMAI.P1); ac.TRC de 20.03.2012 (2421/09.4TBVIS-A.C1); ac.TRG de 1.02.2006 (59/06-1).

4. Anotação geral introdutória: I O instituto da fiança – constante dos artigos 627.º a 655.º - compreende 5 subsecções: uma dedicada à respetiva caracterização geral (arts. 627.º a 633.º), em que sobressai o princípio da acessoriedade da garantia em relação à obrigação garantida (I); uma segunda respeitante às relações do fiador com o credor (arts. 634.º a 643.º), em que pontuam, além do princípio da acessoriedade, agora na sua vertente funcional, o princípio supletivo da subsidiariedade (II); uma terceira relativa às relações entre o fiador e o devedor afiançado (arts. 644.º a 648.º), em que avulta a sub-rogação do fiador que satisfaz o credor na posição deste perante o devedor (III); uma quarta atinente à pluralidade de fiadores (arts. 649.º e 650.º), contemplando a respetiva relação com o credor e a relação entre eles (IV); e uma quinta respeitante à extinção da fiança (arts. 651.º a 655.º), onde afloram novamente os princípios da acessoriedade e da subsidiariedade e em que sobressaem a liberação do fiador em caso de impossibilidade de sub-rogação nos direitos do credor e a faculdade de liberação relativa à fiança de obrigação futura (V). Na base do texto legal, encontra-se sobretudo o estudo de VAZ SERRA, com articulado, acima assinalado.

II – Fiança é termo polissémico, podendo significar: a garantia a em si, a fonte desta, quando voluntária, ou a própria situação global de fiança, envolvendo o fiador, o devedor principal e o credor (cf., por ex., CORDEIRO, 2015: 438). Via de regra, a situação fidejussória constitui-se mediante negócio jurídico (fiança convencional ou voluntária), discutindo-se se este tem que ser um contrato (cf. o comentário ao art. 628.º); mas também existem fianças legais, como a que resulta do contrato de mandato de crédito (cf. o art. 629.º e a respetiva anotação). TELLES (2002: 510) refere, ainda, o artigo 2128.º/2ª parte.

III – O regime legal é de aplicação geral, à fiança civil e à fiança comercial. Quanto a esta última, porém, o artigo 101.º do CCom dispõe que «Todo o fiador de obrigação mercantil, ainda que não seja comerciante, será solidário com o respetivo afiançado»; enquanto, para a fiança civil, vigora o princípio supletivo da subsidiariedade – reconhecendo-se ao fiador o benefício da excussão prévia dos bens do devedor afiançado (e, havendo garantias reais de terceiro, também dos bens que as compõem se forem anteriores ou contemporâneas da constituição da fiança) (cf. os arts. 638.º e 639.º).

IV – A fiança regulada na lei – aquela que serviu de modelo sociológico à regulação legal é uma garantia operacional e pontual, relativa a certa obrigação pecuniária tipicamente atual. Mas a obrigação afiançada também pode ter caráter não pecuniário, bem como ser condicional e/ou futura (arts. 628.º, n.º 2, e 654.º). Tal significa, em especial quando a obrigação garantida for não pecuniária – máxime, estiver em causa uma prestação de facto , que o regime legal terá que ser aplicado com as devidas adaptações (cf. também CORDEIRO, 2015: 461). Veja-se, ainda, a nota XVI e anotação ao artigo 634.º

V – Discute-se se pode haver uma fiança – civil ou natural – de uma obrigação natural, incluindo a que subsiste após a prescrição da obrigação afiançada ou depois de a prescrição ter sido invocada. Admitem a fiança natural de obrigação natural, dentro dos limites do artigo 631.º, designadamente, COSTA, 2012: 186, e GOMES, 2000: 327 e ss., 330 e ss. Sobre o tema, cf., ainda, CORDEIRO, 2015: 470 e ss., considerando nula a fiança por defraudar a lei; no caso da prescrição, depois de invocada esta, porque só nessa altura a obrigação passaria a natural. Nos trabalhos preparatórios, veja-se SERRA, 1957: 62 e s., 90 e 92.

VI – Como se observou, a lei admite expressamente a fiança de obrigação futura (arts. 628.º, n.º 2, e 654.º). Uma situação deste tipo ocorre, designadamente, na chamada fiança geral também designada fiança genérica, fiança global ou fiança omnibus , corrente nas relações de negócios entre as sociedades (mormente sociedades por quotas e anónimas) e as instituições de crédito, mas surgindo também nalgumas relações comerciais duradouras que envolvem o fornecimento de bens ou serviços. O objeto da garantia é, neste caso, tipicamente, uma pluralidade de obrigações, atuais e/ou futuras, que se vão sucedendo no tempo ( i.e, constituindo e extinguindo) em decorrência de uma dada e em regra evolutiva relação de negócios existente entre uma instituição de crédito (ou um fornecedor) e uma sociedade, de que os sócios, muitas vezes sócios gerentes ou administradores, se constituem fiadores. Trata-se de negócios duradouros de acreditação de certo devedor perante certo credor, de fornecimento de crédito ao primeiro por assinatura ou abonação, cobrindo a respetiva relação de negócios. Ainda que se considere existir uma única garantia, de obrigações presentes e futuras, esta tem um objeto móvel, compreendendo sucessivas obrigações concretas, adquirindo densidade e tornando-se operacional à medida que estas vão surgindo. Acerca da figura, veja-se o comentário ao artigo 654.º

VII – Ainda no campo das relações de negócios entre sociedades e instituições de crédito (sobretudo nele), aparece a figura mais difusa e proteiforme das cartas de conforto ou patrocínio, em geral emitidas por uma sociedade dominante com vista a acreditar uma sociedade dominada perante certa instituição de crédito (ou outro credor importante). Nas modalidades mais fortes, as mesmas podem dar origem a garantias pessoais, designadamente fianças, embora, quanto a estas, surja designadamente a possível dificuldade resultante de a lei exigir uma manifestação expressa da vontade de prestar fiança (art. 628.º, n.º 2). Sobre o tema, podem ver-se, por ex., GOMES, 2000: 405 e ss., CORDEIRO, 2015: 575-592 (n.ºs 270 e ss.), VASCONCELOS, 2013: 143-159, LEITÃO, 2016: 147-154, e NORONHA, 2005, todos com mais indicações.

VIII – Pode também haver uma espécie de contra-garantia a favor do fiador, a retrofiança, à qual se aplicam mutatis mutandis as regras legais da fiança. Assim, satisfazendo o fiador o credor, fica o primeiro sub-rogado nos direitos deste contra o devedor afiançado (art. 644.º); e pode um terceiro (retrofiador) afiançar a posição jurídica desse modo adquirida por ele (cf., por ex., SERRA, 1957: 41 e ss., GOMES, 2000: 362, nota 329, 1103 e s., 2010: 34, nota 6, MARTINEZ e PONTE, 2006: 112, CORDEIRO, 2015: 481, VASCONCELOS, 2013: 100, e LEITÃO, 2016: 118).

IX – A fiança pode ser prestada a título gratuito ou oneroso (cf., por ex., SERRA, 1957: 26 e ss., CORDEIRO, 2015: 458 e ss., COSTA, 2012: 890). No caso das fianças prestadas por sociedades, cooperativas, ACE, AEIE, etc., pelo menos sendo o negócio gratuito, há que ter em conta as limitações do artigo 6.º, n.º 3, do CSC, se a prestação da fiança não se inserir no exercício da atividade profissional operacional do fiador (cf., por ex., MARTINEZ e PONTE, 2006: 105-110, e a anotação ao art. 633.º, nota II).

X – Legalmente, a função específica e primordial da fiança consiste em assegurar a satisfação dos direitos de crédito (art. 627.º, n.º 1), associando a uma obrigação principal (obrigação afiançada) uma segunda obrigação, do fiador (obrigação fidejussória), e, consequentemente, o património deste (cf., por ex., GOMES, 2004: 8, 11 e s., CORDEIRO, 2015: 440, 442 e s., 447, LEITÃO, 2016: 93, 104 e s.; na jurisprudência, cf., por ex., o ac.STJ de 21.01.2014; veja-se também a nota XVI). Em termos sócio-económicos, facilitam-se deste modo as transações a crédito e, portanto, permite-se uma expansão do crédito; favorecendo o acesso aos benefícios deste por parte de quem não tem nome apreciável nos meios interessados. Adicionalmente, a fiança pode cumprir outras importantes funções (cf. CORDEIRO, 2015: 447, 472), designadamente: uma função compulsória (pressionando o devedor a cumprir em atenção ao fiador ou levando o fiador a diligenciar para que o devedor cumpra), uma função de acreditamento do devedor perante o credor (em especial se o devedor é desconhecido ou não em nome na praça), favorecendo a conclusão de negócios a crédito com ele, e uma função de limitação do risco de crédito, favorecendo a obtenção de melhores condições negociais (por ex., juros mais baixos). Estas funções assumem um papel de primeira grandeza sobretudo nas aludidas fianças gerais prestadas por sócios e gerentes/administradores de sociedades, funcionando aí, ainda, como promotoras de uma gestão mais racional da sociedade devedora.

Em contrapartida, a fiança também envolve importantes perigos para o fiador – sendo mesmo qualificável como um negócio de risco (assim, GOMES, 2015: 317, 319 e ss., 2004: 23 e ss., 2000: 118 e ss., 448 e ss., 767, 2010: 96 e s., notas 82 e 85, 107 e 109, ALMEIDA, 2013: 156, 195 e ss.; cf. também o ac.STJ de 21.01.2014). Por isso, o regime legal é visto como um «compromisso entre segurança do credor e defesa do fiador» (HECK, apud SERRA, 1957: 19, nota 1; cf. também COSTA, 2012: 890, e CORDEIRO, 2015: 448 e s.). Para outras implicações, cf. o ac.TRC de 20.03.2012, GOMES, 2000: 811 e ss., 820 e ss., 2015: 320 e s.; e, acerca das fianças de valor gravemente desproporcionado em relação ao património do fiador, mormente quando este não é um profissional, VASCONCELOS, 2013: 112 e s., nota 297, com mais indicações.

XI – A par da figura típica da fiança, além das aludidas fianças gerais, existem outras situações fidejussórias especiais. Salientam-se a «fiança» constituída mediante mandato de crédito e a fiança à primeira solicitação (cf. também CORDEIRO, 2015: 503 e ss., n.ºs 245 e 246). Acerca do mandato de crédito, veja-se o art. 629.º e o respetivo comentário. A fiança à primeira solicitação (de obrigação pecuniária) apresenta a especialidade de ter acoplada uma cláusula «paga e pede a restituição» (solve et repete), que lhe confere uma fisionomia particular ou, inclusive, leva a considerá-la uma figura hermafrodita. Além de CORDEIRO (cit.), vejam-se, por ex., GOMES, 2004: 144 e s., 159 e ss., 162 e ss., e 2000: 724 e ss., VASCONCELOS, 2013: 111 e s., LEITÃO, 2016: 120, e o Ac.STJ de 31.01.2017, bem como a anotação aos artigos 637.º e 640.º No direito societário, encontra-se, ainda, uma situação de tipo fidejussório no artigo 501.º

XII – A fiança distingue-se de algumas figuras funcionalmente próximas, que também cumprem ou podem ser utilizadas para cumprir uma função de garantia. Salientam-se: i) a garantia autónoma, que se distingue por este caráter autónomo, em contraposição à acessoriedade que caracteriza a fiança (cf., designadamente, o art. 627.º, n.º 2, e a respetiva anotação, bem como, por ex., CORDEIRO, 2015: 445 e s., 527 e ss., n.ºs 253 e ss., o ac.STJ de 13.11.2014, os acs.TRL de 8.03.2012, de 17.01.2012 e de 17.12.2009, e o ac.TRP de 3.06.2013); ii) a assunção cumulativa de dívida, legal ou voluntária (art. 595.º), sem a acessoriedade que caracteriza a fiança e sem ter necessariamente uma função de garantia (cf., designadamente, GOMES, 2000: 280 e ss., 2010: 24 e s., VASCONCELOS, 2013: 187 e ss., 191 e ss., PINTO, 1970: 149-153 (nota 2), SERRA, 1973-74: 364 e ss., 373 e ss., VARELA, 1997: 364 e ss., LEITÃO, 2016: 160, e, na jurisprudência, o ac.STJ de 4.11.2013; cf. ainda, por ex., o ac.STJ de 6.05.2004, o ac.TRL de 10.03.2013, o ac.TRP de 18.01.2011, e o ac.TRG de 1.02.2006); e iii) o aval (cf. a nota a seguir).

XIII – O aval cambiário justifica referência especial, porque surge não raro considerado como uma modalidade de fiança - uma fiança cambiária (cf., aliás, os termos do art. 32 II da LULL) – e, comummente, como uma obrigação de garantia da obrigação de certo subscritor cartular, de cuja natureza (obrigação direta ou obrigação de regresso) comunga e em relação à qual apresenta uma certa acessoriedade (art. 32 I da LULL), embora também seja dela independente (arts. 7 e 32 II da LULL) (cf., por ex., CORDEIRO, 2015: 593 e ss., ANTUNES, 2012, 85 e ss., e as indicações constantes de SENDIN e MENDES, 1991). Nesta medida, à parte a circunstância de se tratar de uma garantia voluntária aposta num título de crédito, a diferença estaria sobretudo na chamada autonomia substancial do aval, em contraposição à acessoriedade forte da fiança.

Tais conceções não estão, no entanto, de acordo com a lei, que configura o aval, não como uma obrigação de garantia da obrigação do avalizado, destinada a assegurar o pagamento do título por este, mas como uma garantia que, sendo operacional – i.e., ligada a certa operação de referência (avalizada) –, assegura ao portador o pagamento pontual do título, no vencimento, pelo sacado (na letra e no cheque), devedor ou não, ou pelo emitente da livrança (art. 30 I da LULL; cfr. as paralelas garantias legais do sacador e dos endossantes, nos arts. 9 e 15 da LULL); ficando o avalista responsável de regresso nos termos do artigo 48 da LULL, caso o resultado garantido não se verifique, desde que se cumpram os requisitos do regresso (cf., em especial, SENDIN e MENDES, 1991: 9 e ss., 27 e ss., 95 e ss., MENDES, 2012: 67 e ss., com mais indicações). Vistas assim as coisas, o aval, que é necessariamente uma garantia pecuniária, mostra-se bem diferente da fiança, pelo menos da fiança de obrigação pecuniária.

XIV – Como se assinalou («supra», X), apesar dos benefícios socioeconómicos que a fiança proporciona, também envolve importantes perigos para o fiador. Certos princípios legais procuram minorá-lo – é o caso da acessoriedade (sobretudo quando combinado com uma regra de circunscrição da admissibilidade das garantias autónomas a certas entidades) e da subsidiariedade (este com caráter apenas supletivo e via de regra circunscrito à fiança civil – arts. 638.º e ss.) – mas apenas o conseguem numa medida limitada. Daí, designadamente, a questão de saber se, quando não resulte da lei outra coisa, o regime legal constante dos artigos 627.º e seguintes, na parte em que se destina a proteger o fiador, deve considerar-se injuntivo. Em sentido afirmativo, cf. CORDEIRO, 2015: 449 e s. O autor ressalva, no entanto, que, a par da fiança, pode haver garantias menos favoráveis para os garantes, como acontece com o aval, de aplicação geral a qualquer pessoa, e as garantias (bancárias) autónomas, dentro do campo de aplicação destas legalmente admissível (segundo ele, apenas as instituições de crédito e sociedades financeiras poderão emiti-las, 2015: 550 e ss.).

XV – À fiança aplicam-se as regras gerais da interpretação do negócio jurídico (cf., por ex., CORDEIRO, 2015: 458 e 460). Sendo a fiança, em regra, um negócio gratuito, funcionará, em caso de dúvida, a regra do conteúdo mais favorável ou menos gravoso para o fiador (art. 237.º) (CORDEIRO, 2015: 449 e 460). No caso da fiança bancária, uma fiança profissional prestada a título oneroso, isso não se aplica, mas, segundo CORDEIRO, no Direito bancário, vigora um «princípio de interpretação segundo o primeiro entendimento», o que obriga quem presta fianças – designadamente clientes dos bancos – a verificar cuidadosamente o que assina, se possível pedindo conselho jurídico (2105: 460). Acerca das implicações da sua qualificação como negócio de risco, cf. GOMES, 2000: 744 e s., 2015: 320 (interpretação estrita da declaração do fiador, com tendencial aplicação dos princípios in dubio pro fideiussione e in dubio pro fideiussore ), 2012: 384 (com restrições relativamente à fiança profissional, em especial bancária). Para um breve apontamento sobre o regime da insolvência, cf. VASCONCELOS, 2013: 113 e s., e os comentários aos artigos 631.º, 634.º, 640.º e 644.º

XVI - Viu-se que o fiador acrescenta à satisfação do credor um segundo património de garantia (ou parte dele), mas fá-lo assumindo uma vinculação própria, sendo esta o centro de gravidade do instituto («supra», nota X). Ou seja, não se limita a responder com o seu património, para a satisfação do credor; esta responsabilidade liga-se à obrigação fidejussória que assume. Na respetiva configuração legal, doutrinal e jurisprudencial correntes, estamos portanto perante uma figura obrigacional: o fiador garante o crédito assumindo uma obrigação; não se trata de um caso de responsabilidade sem dívida ou sem dever de prestar (primário) (cf., por todos, com alusão à polémica da Schuld und Haftung e com mais indicações, GOMES 2000: 6 e ss., 54 e ss., 121 e ss., 2015: 316, LEITÃO, 2016: 104 e s.). Coloca-se, no entanto, a adicional questão de saber se, através da fiança, ele se torna devedor de dívida própria ou de dívida alheia (a do devedor principal), a qual já se mostra bastante controvertida. Segundo GOMES, este último - o de que o fiador assume o dever de cumprir dívida alheia - é o entendimento tradicional dominante, embora discorde dele (2004: 11, 2015: 316 e s.; cf. também 2000: 130 e ss., 2010: 32, nota 1, com mais indicações). A construção não é indiferente, designadamente para o entendimento da acessoriedade (cf. sobretudo a anotação aos arts. 627.º, 632.º e 634.º). Pode, ainda, discutir-se se a fiança - com a extensão que se lhe reconhece, abarcando obrigações pecuniárias e não pecuniárias, incluindo prestações de facto infungível (cf. «supra», nota IV) - é um instituto unitário, com um conteúdo moldado pelo da obrigação garantida (art. 634.º). Veja-se a anotação ao artigo 634.º (nota VI).

EVARISTO MENDES


SUBSECÇÃO I – Disposições gerais

Artigo 627.º

(Noção. Acessoriedade)

1. O fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.

2. A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: O CC de 1867 dava a seguinte noção de fiança, no artigo 818.º: «O cumprimento das obrigações, que resultam dos contratos, pode ser assegurado por um terceiro, que responda pelo devedor, se as ditas obrigações não forem cumpridas. É o que se chama fiança.» Vejam-se também, designadamente, o § 765 do BGB e os artigos 2011 do CCfr (hoje, 2288), 1936 do CCit e 492 do CO suíço. Quanto aos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 19 e ss., 21 e s., 28 e s.

2. Bibliografia nacional: ALMEIDA, C. FERREIRA, Contratos III, 2.ª ed., Almedina. Coimbra, 2013, pp. 197 e s.; BASTOS, J. RODRIGUES, Notas ao Código Civil, vol. III, Lisboa, 1993, p. 92; , CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 438 e ss.; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 888 e s., 893 e ss.; FARRAJOTA, JOANA, Código Civil Anotado, coord. ANA PRATA, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 810 e s.; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 107 e ss., 121 e ss., «A fiança no quadro das garantias pessoais. Aspetos de regime», Estudos de Direito das garantias, I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 7-48, 18 e ss., «Sobre os poderes dos credores contra os fiadores no âmbito de aplicação do CIRE. Breves notas», III Congresso de Direito da Insolvência, coord. Catarina SERRA, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 317 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 107 e s.; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., com a colaboração de MESQUITA, M. HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 643-645; MARTINEZ, P. ROMANO / PONTE, P. FUZETA DA, Garantias de cumprimento, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pp. 86 e ss.; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 477 e ss.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 83 e ss., 87 e s.

3. Jurisprudência : Acs.STJ de 20.04.1999 (99A162), de 1.07.2008 (08A1583), de 21.01.2014 (6466/05.5TVLSB.L1.S1) e de 13.11.2014 (4103/12.0TBSXL-A.L1.S1); Acs.TRL de 29.11.2012 (3273/05.9TBMTJ-B.L1-6) e de 9.12.2014 (866/12.1TVPRT.L1); ac.TRP de 26.06.2012 (416/08.4TBBAO.P1); ac.TRC de 2.08.2013 (816/12.5TBTMR-B.C1); ac.TRE de 1.06.1999, CJ 1999/III, pp. 270-274.

4. Anotação: I O preceito contém uma noção geral da fiança trata-se de uma garantia de satisfação dos direitos de crédito, assumindo o fiador uma obrigação pessoal perante o credor (n.º 1) e consagra um princípio caracterizador da mesma: o da acessoriedade em relação à dívida afiançada (n.º 2), com afloramentos em diversos artigos subsequentes, de que se salientam os artigos 631.º, 632.º, 634.º, 637.º e 651.º A satisfação garantida pode, no entanto, ser limitada (art. 631.º, n.º 1/2ª parte). Admite-se uma pluralidade de fiadores (arts. 649.º e 650.º) e um ou mais subfiadores (arts. 630.º, 643.º e 650.º, n.º 4). Sobre a vontade de prestar fiança, os respetivos requisitos legais e a estrutura do negócio constitutivo da obrigação, veja-se o artigo 628.º Acerca dos adicionais princípios da subsidiariedade, civil, e da solidariedade, mercantil, cf. adiante (nota V) e os artigos 638.º a 640.º

a) A fiança encontra-se, assim, construída sobre dois pilares ou vetores fundamentais: o fim de garantia (cf. a nota III) e a acessoriedade (cf. a nota IV); sendo o primeiro assegurado através da assunção pelo fiador de uma obrigação (obrigação fidejussória) (cf. a nota II). Uma mais ampla compreensão do instituto, realçando este fim de garantia e os limites da acessoriedade, bem como a natureza da fiança como negócio de risco, dados os perigos que envolve para o fiador (sobre este aspeto, cf. também a nota introdutória X), pode encontrar-se em GOMES, 2015: 317 e ss., 322 e s., 2000: 106 e ss., 396 e s., 578 e ss., 714 e ss., 744 e s.

b) Sendo o objeto da garantia a satisfação de um direito de crédito, este terá, naturalmente, que ser identificado, quanto aos sujeitos, ao tipo de prestação, etc. (cf. CORDEIRO, 2015: 461); ou ser pelo menos suficientemente identificável. Acerca dos créditos futuros e das fianças gerais, cf. a nota introdutória VI, os artigos 628.º, n.º 2, e 654.º, bem como os respetivos comentários.

II – Dispõe-se no n.º 1 do artigo em análise que o fiadorfica «pessoalmente obrigado perante o credor». Na realidade, fica pessoal e diretamente obrigado. Com efeito, em termos sistemáticos, a fiança integra-se nas garantias especiais das obrigações (arts. 623.º ss.). Dentro delas, constitui uma garantia pessoal e «universal», no sentido de que o fiador acrescenta à garantia geral do devedor principal (art. 601.º) uma garantia da mesma índole, ou seja, a garantia do seu património pessoal (arts. 601.º e 602.º); reforça pessoalmente - com o seu património, não através de vinculações reais - essa garantia geral. Neste sentido, contrapõe-se às garantias circunscritas a bens ou direitos específicos e de caráter real (cf., por ex., LIMA e VARELA, 1987: 643 e s., VARELA, 1997: 478, GOMES, 2000: 130 e ss., VASCONCELOS, 2013: 85, e LEITÃO, 2016: 104).

Todavia, por um lado, além de poder limitar o âmbito da garantia (art. 631.º, n.º 1/2ª parte), o fiador tem a faculdade de circunscrever a certos bens o universo patrimonial com que garante patrimonialmente a sua obrigação de garantia (cf. o art. 602.º), sem perda do seu caráter pessoal. Por outro lado, apesar da veracidade desta perspetiva da fiança como adicionadora de um património de garantia, como salienta, por ex., CORDEIRO (2015: 439), a sua essência é obrigacional: o fiador assume uma obrigação, paralela à obrigação principal, para melhor satisfação do crédito afiançado; o seu sentido primordial é este, não o de acrescentar um património de garantia ao do devedor principal. E, segundo a conceção mais neutra e nessa medida preferível, a obrigação fidejussória constitui uma obrigação paralela à do devedor principal, com a sua própria prestação, em regra moldada pela dessa obrigação, idêntica a ela (art. 634.º), e com uma função coadjuvante na satisfação do direito de crédito, mas distinta dela; não uma obrigação de cumprimento de dívida alheia. Cf. também GOMES, 2000: 121 e ss., 2004: 8, 11 e s., 2015: 316 e s., e as notas introdutórias X e XVI.

III Ainda segundo o n.º 1, o fiador reforça a confiança do credor na satisfação do crédito, assegurando-lhe que esta ocorrerá (finalidade de garantia). Na verdade, os direitos de crédito fundados na confiança depositada pelo credor na obtenção de certa prestação envolvem sobretudo dois tipos de riscos: i) um risco de mora ou não realização pontual da prestação pelo devedor (risco comercial), com possíveis custos adicionais de litigância, tendentes à efetivação coerciva do crédito, e alguma incerteza quanto ao desfecho da ação; ii) e um risco de insolvência do devedor (risco financeiro). Em geral, sobretudo no domínio comercial e quanto aos créditos pecuniários, há dois fatores decisivos na decisão de conceder crédito: a honorabilidade do devedor e a sua capacidade para gerar meios suficientes para cumprir atempadamente (ótica económico-comercial, de negócio). Porém, tais pressupostos podem não se verificar ou vir a desaparecer até ao vencimento do crédito. Daí o existente sistema de garantias patrimoniais, em que se inclui a fiança. Como se observará («infra», nota V, e anotação ao art. 638.º), a fiança civil está legalmente concebida para cobrir sobretudo o risco de insolvência (acerca deste, cf., por ex., GOMES, 2015: 316, 318, 322 e ss., e as notas V e VI ao art. 631.º). As partes podem, contudo, dar-lhe um maior alcance, aproximando-a da fiança comercial, em que avulta o primeiro risco (cf. o art. 640.º).

IV – Como resulta do n.º 2, a fiança caracteriza-se pelo seu caráteracessório em relação à obrigação afiançada. Genericamente, a acessoriedade significa, por um lado, que a obrigação principal é pressuposto da obrigação do fiador (cf., em especial, os arts. 632.º e 651.º), que lhe serve de referência (art. 634.º), que determina a sua extensão máxima (art. 631.º), e que lhe comunica as suas fraquezas (art. 637.º); por outro lado, que, cumprindo o fiador a sua obrigação, o credor fica satisfeito, mas o crédito não se extingue, transmitindo-se por sub-rogação para ele (art. 644.º).

a) Na verdade, a fiança pressupõe uma obrigação de referência, sobre a qual se molda, e da qual depende, desde o nascimento até à extinção. Tal significa, designadamente: i) que o seu conteúdo se determina, em regra, pelo da obrigação afiançada (per relationem) (art. 634.º); ii) que não pode ter um âmbito superior ao dela, embora possa ficar aquém (art. 631.º); iii) que, em princípio, o respetivo ato constitutivo apenas será válido ou eficaz se houver uma obrigação principal para garantir (art. 632.º); iv) que, além dos meios de defesa que lhe são próprios, o fiador pode também opor ao devedor os meios de defesa que competem ao devedor afiançado, salvo se incompatíveis com a sua obrigação (art. 637.º); e (v) que a extinção da obrigação garantida determina igual extinção da garantia (art. 651.º) (cf., também, por ex., GOMES, 2004: 19, observando no entanto que as chamadas manifestações de acessoriedade relativas à extinção também se verificam em garantias não acessórias).

Contêm também manifestações desta acessoriedade os artigos 628.º, n.º 1 (requisitos de forma) e 642.º (outros meios de defesa do fiador). O próprio artigo 644.º (sub-rogação do fiador no crédito satisfeito ao credor) pode ver-se como uma manifestação da acessoriedade. No sentido, ainda, de que, tendo a fiança por objeto a satisfação de um crédito (ou mais que um), presente ou futuro, e sendo o seu conteúdo definido por referência à correspondente obrigação afiançada (acessoriedade), esta não pode ser indefinida, cf., ainda, CORDEIRO, 2015: 441. Vejam-se também o artigo 101.º do CCom se a dívida afiançada é mercantil, a fiança também o é e, para um quadro geral das manifestações da acessoriedade, SERRA, 1957: 29, CORDEIRO, 2015: 441 e s., VARELA, 1997: 479, 481 e ss., VASCONCELOS, 2013: 87 e s., GOMES, 2000: 107 e ss, 1011 e ss., 2004: 18 e ss., ALMEIDA, 2013: 197 e s.

b) Esta característica permite distinguir a fiança das garantias autónomas. Como nestas avulta a inoponibilidade dos meios de defesa que competem ao devedor principal, remete-se para a anotação ao artigo 637.º Note-se que um negócio constitutivo de uma garantia autónoma - não dependente da obrigação principal (cf. o art. 632.º, n.º 1) e sem oponibilidade pelo garante dos meios de defesa do obrigado principal (art. 637.º) – é, em princípio, válido. Só não se qualifica a garantia como fiança. Todavia, no sentido de que a garantia autónoma apenas deve ser admitida quando prestada por instituições de crédito e sociedades financeiras, cf. CORDEIRO, 2015: 550.

c) Note-se, ainda, que a acessoriedade consagrada no preceito em análise não tem que se circunscrever às suas manifestações legais expressas. Assim, como se decidiu no ac.TRE de 1.06.1999, se o negócio de que provém a dívida afiançada é ineficaz (por falta de poderes de representação de um dos outorgantes), decorre também do princípio da acessoriedade a ausência de responsabilidade do fiador. Decidiu-se também no ac.TRC de 2.08.2013 que a acessoriedade implica que a obrigação do fiador não possa considerar-se vencida sem estar vencida a obrigação principal. E pode, igualmente, reconduzir-se à acessoriedade (e/ou ao fim de garantia) a regra segundo a qual, na falta de estipulação diferente no negócio de fiança, o vencimento da obrigação afiançada, pelo decurso do prazo ou interpelação, determina o vencimento da obrigação fidejussória (cf., designadamente, o ac.STJ de 1.07.2008). Este último aspeto mostra-se, no entanto, controvertido. Além disso, aceitando-se tal regra, colocam-se especiais dificuldades no caso de haver um vencimento antecipado da obrigação afiançada. Sobre o tema e também sobre a questão de saber se o caráter acessório da fiança implica que o fiador apenas possa ser chamado a cumprir depois de o devedor principal ter incumprido, veja-se a anotação ao artigo 634.º Em geral, vejam-se, ainda, os acs.STJ de 20.04.1999 e de 21.01.2014, bem como a anotação aos artigo 628.º e 631.º

d) Note-se, finalmente, que, aceitando-se a construção da fiança como obrigação distinta da obrigação afiançada, dotada da sua própria prestação, ainda que esta seja em regra idêntica à da obrigação principal (cf. a nota introdutória XVI e «supra», nota II), o âmbito da acessoriedade resulta de uma simples opção legislativa, sem constrangimentos lógicos como os que decorrem da conceção da fiança como garantia do cumprimento de obrigação alheia (cf. também a anotação ao art. 632.º).

V Como se observará melhor na anotação relativa ao artigo 638.º, o legislador civil configura, ainda, a fiança, supletivamente, como uma obrigação subsidiária da obrigação afiançada: o fiador pode recusar licitamente o cumprimento da sua obrigação enquanto houver no património do devedor afiançado bens suscetíveis de responder pela obrigação deste (art. 638.º, n.º 1). Quer dizer, através da garantia, o credor é protegido sobretudo contra o risco de insolvência do devedor (cf. «supra», nota III). Neste aspeto, a fiança comercial distingue-se da fiança civil (art. 101.º do CCom). O caráter supletivo desta configuração legal resulta do artigo 640.º, n.º 1, al. a), para cuja anotação igualmente se remete. Além disso, cumprindo a fiança a função de assegurar ao credor a satisfação do seu crédito (n.º 1), se tal satisfação não ocorrer por culpa do credor, o fiador pode também recusar-se a cumprir, mesmo que já não haja no património do devedor afiançado bens utilizáveis para esse efeito (art. 638.º, nº 2). Cf., ainda, as observações de LIMA e VARELA, 1987: 644 e s., nota 5.

VI A fiança é uma garantia operacional, tendo por referência a obrigação principal (ou o negócio de que ela emerge e que define os seus termos): o fiador garante a certo credor a satisfação do crédito por si detido contra certo devedor. E garante-o com sub-rogação: se o fiador vier a satisfazer o direito de crédito, fica sub-rogado na posição do credor contra o devedor (art. 644.º); o que o torna um devedor (acessório) que é simultaneamente um potencial credor do devedor afiançado. Além disso, o fiador presta a fiança, assumindo o risco de não cumprimento pontual da obrigação afiançada e/ou de insolvência do respetivo devedor, atendendo, naturalmente, às expectativas, maiores ou menores, de tal risco não se vir a verificar.

Significa isto que a pessoa do devedor afiançado é, em geral, relevante para o fiador. A própria lei reconhece expressamente esta relevância: no artigo 648.º, na medida em que, se a situação patrimonial do devedor se deteriorar consideravelmente, o fiador tem o direito de exigir a sua liberação ou a prestação de caução; e no artigo 654.º, uma vez que a mesma deterioração confere ao fiador o direito a desvincular-se quanto a obrigações futuras.

Ora, a pessoa do devedor afiançado pode alterar-se, mantendo-se a obrigação que se afiançou, designadamente: por morte (passando a obrigação, via de regra, para os sucessores, um ou mais – arts. 2024º e 2050.º ); por incorporação de sociedade devedora numa outra (arts. 94.º e 112.º do CSC); por trespasse do estabelecimento que envolva uma cessão da posição contratual em que a obrigação afiançada se insere, sem consentimento do contraente cedido (casos da obrigação de pagar rendas do arrendatário mercantil, da obrigação de pagar o aluguer de locação financeira, etc. – cf., por ex., o art. 1112º); e por transmissão da dívida com o consentimento do credor (art. 595.º). Neste último caso, decorre do artigo 599.º, n.º 2, que a fiança apenas se mantém se o fiador der o seu consentimento. Nos demais, a solução parece dever ser a da transmissão com as dívidas garantidas já existentes; mas, respeitando a fiança também a obrigações futuras, cf. anotação ao artigo 654.º

VII - A fiança pode assumir diversas modalidades. A própria lei se refere à fiança de obrigações futuras (art. 654.º; cf. os arts. 628.º, n.º 2, e 1058.º) ou condicionais (art. 628.º, n.º 2) e qualifica ou equipara à fiança a situação decorrente do mandato de crédito (art. 629.º), aludindo ainda à fiança bancária (art. 623.º, n.º 1) e, na redação originária do Código, estabelecendo uma regra especial para a fiança do locatário (art. 655.º). No caso da fiança bancária, parece estar em jogo sobretudo a especial credibilidade do fiador e o caráter solidário da garantia (cf. o art. 623.º, nº 2). Resulta ainda da lei que a fiança pode ser civil ou comercial e, como se observou, ter caráter subsidiário (regra supletiva para a fiança civil - art. 638.º) ou solidário (regra supletiva para a fiança comercial - art. 101.º do CCom). De certo modo no oposto da fiança subsidiária civil, encontramos, também, fianças automáticas ou à primeira solicitação, tendo este elemento em comum com as correntes garantias bancárias autónomas e ao primeiro pedido (cf. a nota introdutória XI e anotação aos arts. 637.º e 640.º).

A fiança pode, ainda, respeitar não apenas a certo crédito ou obrigação, presentes ou futuros, mas também a conjuntos de obrigações e a fluxos de obrigações futuras. Encontramos aqui a figura da fiança geral ou omnibus, entretanto tornada familiar sobretudo pelo contencioso que lhe está associado mormente fianças prestadas por sócios a favor de financiadores da sua sociedade. Acerca da mesma, veja-se a nota introdutória VI e a anotação ao artigo 654.º

EVARISTO MENDES


Artigo 628.º

(Requisitos)

1. A vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal.

2. A fiança pode ser prestada sem conhecimento do devedor ou contra a vontade dele, e à sua prestação não obsta o facto de a obrigação ser futura ou condicional.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: Quanto ao n.º 1, dispunha o artigo 826.º do CC de 1867: «Tanto a fiança, como a exoneração dela, provam-se pelos meios estabelecidos na lei para se provar o contrato principal». No que respeita ao n.º 2, o artigo 821 estabelecia: «A fiança pode ser estipulada entre o fiador e o credor, ainda sem consentimento do devedor, ou do primeiro fiador, se ela se referir a este». Vejam-se também, designadamente, os §§ 765 e 766 do BGB e os artigos 1936 a 1938 do CCit, 492 e 493 do CO suíço e 2215 do CCfr (hoje, 2292). Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 23, 46 e ss.

2. Bibliografia nacional: ALMEIDA, C. FERREIRA, Contratos III, 2.ª ed., Almedina. Coimbra, 2013, pp. 162, 195 e ss.; BASTOS, MIGUEL BRITO, «A concessão de garantias pessoais pelo Estado e por outras pessoas coletivas públicas: Breve Estudo sobre o Regime da Lei n.º 112/97, de 16 de setembro», Revista de Fianças Públicas e Direito Fiscal, nº 1 (2008), pp. 155-187, nº 4 (2008), pp. 275-303. (cit. M. Bastos); CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, Direito das Obrigações. Garantias, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 451 e ss, 456 e ss., 463 e s., COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 891 e s.; DUARTE, RUI PINTO, O novo regime do crédito imobiliário a consumidores, Almedina, Coimbra, 2018; FARO, FREDERICO, Fiança omnibus no âmbito bancário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 73 e ss.; FARRAJOTA, JOANA, Código Civil Anotado, coord. de ANA PRATA, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 812 e s.; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 376 e ss., 414 e ss., 467 e ss., «A estrutura negocial da fiança e a jurisprudência recente», Estudos de Direito das garantias, I, Almedina, Coimbra, 2004, I, pp. 49-107, «A fiança no quadro das garantias pessoais», ibidem, pp. 7-48, 32 e ss., «A questão da estrutura negocial da fiança revisitada», Estudos de Direito das Garantias, II, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 7-30; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 105 e ss.; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., com a colaboração de MESQUITA, M. HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 645 e s.; MARTINEZ, P. ROMANO / PONTE, P. FUZETA DA, Garantias de cumprimento, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pp. 89 e ss., 93 e s.; MENDES, EVARISTO, «Garantias bancárias. Natureza», RDES 1995/4, pp. 411-473, 454 e ss., «Documento particular de dívida endossável…», RDES 1993, pp. 283-313, 302 e ss.; MESQUITA, M. HENRIQUE, «Fiança», CJ 1986/4, pp. 23-29; MORAIS, F. GRAVATO, Contratos de crédito ao consumo, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 103, 143-145, Crédito aos Consumidores. Anotação ao Decreto-Lei nº 133/2009 , pp. 62 e s.; PINTO, PAULO MOTA, Declaração tácita e comportamento concludente, Almedina, Coimbra, 1995, pp. 493-504; REGO, MARGARIDA LIMA, Contrato de Seguro e Terceiros, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 428 e ss.; SERRA, A. VAZ, Anotação ao ac.STJ de 14.06.1972, RLJ 106, 1973-74, pp. 202-204, Anotação ao Ac.STJ de 28.11.1972, RLJ 106, 1973/74, pp. 363-367, 373-383, Anotação ao ac.STJ de 30.10.1979, RLJ 113, 1980/81, pp. 124-128; SILVA, J. CALVÃO DA, «Garantias acessórias e garantias autónomas», Estudos de direito comercial (Pareceres), Almedina, 1996, pp. 327-361; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 482 e s., 485 e ss.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 85 e s.

3. Jurisprudência selecionada : Acs.STJ de 14.06.1972 (064123), RLJ 106, 1973/74, pp. 200-202, com anotação de SERRA, VAZ, de 28.11.1972, RLJ 106, 1973/74, pp. 360-363, com anotação de SERRA, VAZ, de 17.05.1977 (066610), BMJ 267, 1977, pp. 149 e ss., de 30.10.1979, RLJ 113, 1980/81, pp. 122-124, com anotação de SERRA, VAZ, de 26.02.1980 (068338), BMJ 294, 1980, pp. 371 e ss., de 22.02.1984 (071237), BMJ 334, 1984, pp. 502 e ss., de 11.02.1988, BMJ 374, 1988, pp. 455-460, de 7.02.1991 (08161), de 21.01.1993 e 11.05.1993, RDES 1995/1-3, pp. 100-111, com anotação de MENDES, EVARISTO, de 21.09.1993 e 10.11.1993, RDES 1995/4, pp. 411 e ss., com anotação de MENDES, EVARISTO, de 2.06.1998, BMJ 478, 1998, pp. 268 e ss., de 13.10.1998 (98A779), de 15.12.1998, BMJ 482, 1999, pp. 227-234, de 18.06.2002 (02A1482), de 3.10.2002 (02B1499), de 27.05.2003 (03A1282), de 27.11.2003 (03B3841), de 4.10.2007 (07B2644), de 17.06.2010 (6686/05.2TBVFX-A.LI.I), de 26.10.2011 (357/1999.P1.S1), de 10.11.2011 (245/08.7TBOHP.C1.S1), de 24.04.2013 (3379/05.4TBVCT.G1.S1), de 14.01.2014 (261/09.0TCGMR.G1.S1), de 16.06.2015 (1909/07.6TBVFR.P1.S1), de 9.07.2015 (1728/12.8TBBRR-A.L1.S1), de 14.12.2016 (329/09.2TBVVD.G1.S1) e de 31.01.2017 (519/10.5TYLSB-CE.L1.S1); acs.TRL de 21.01.1976, CJ 1976/I, pp. 200-203, de 5.02.2002, CJ 2002/I, pp. 98-101, de 19.11.2009 (4846/05.5TJLSB.L1-6), de 1.10.2014 (10610/11.5TBOER.L1-6), de 10.02.2015 (100595/13.2YIPRT.L1-7), de 11.08.2016 (5559/07.9TBOER-B.L1-7), e de 28.11.2017 (4971/16.7T8LSB.L1-7); acs.TRP de 3.02.1981, CJ 1981/I, pp. 148 e s., de 3.10.1996, CJ 1996/IV, pp. 213-216, de 21.09.1998, CJ 1998/IV, pp. 191-194, de 18.06.2008 (0832552), de 4.01.2010 (4609/05.8TBVLG.P1), de 26.06.2012 (416/08.4TBBAO.P1), de 4.01.2014 (856/12.4TTVCT.P1) e de 6.01.2014 (856/12.4TTVCT.P1); acs.TRC de 26.05.1998 (229/97 PR 15-97) e de 2.07.2017 (1288/11.7TBVIS-A.C1); ac.TRE de 23.03.2017 (2706/13.5TBLLE.E1); acs.TRG de 11.05.2005, CJ 2005/III, pp. 277-281, de 14.05.2015 (1737/12.7TBVCT-D.G1) e de 4.04.2017 (49/16.1T8MDL-B.G1).

4. Anotação: I O preceito ocupa-se do negócio constitutivo da obrigação fidejussória. No n.º 1, estabelece-se um duplo requisito: a vontade de prestar fiança (i) deve manifestar-se através de uma declaração expressa (não bastando uma manifestação de vontade meramente tácita cf. o art. 217.º), embora a sua «aceitação» pelo credor beneficiário possa ser tácita (art. 217.º); e (ii), se a obrigação afiançada tiver por fonte um negócio sujeito legalmente a forma especial, a declaração de prestar fiança deve também revestir pelo menos forma idêntica. Caso contrário, pode manifestar-se por qualquer forma, incluindo a forma oral, apesar de possíveis dificuldades de prova (art. 219.º). Estamos, quanto a este segundo requisito, perante uma manifestação da acessoriedade genética da fiança (cf., por ex., VARELA, 1997: 482, SILVA, 1996: 334, ALMEIDA, 2013: 197, FARRAJOTA, 2017: 811).

a) Enquanto negócio obrigacional, a fiança está sujeita aos requisitos gerais de validade e eficácia próprios deste tipo de negócios, quer os de caráter objetivo, quer os de índole subjetiva (máxime, capacidade do fiador). Quanto aos primeiros, salienta-se o da suficiente determinabilidade do objeto (art. 280.º, n.º 1), necessária para a medida da responsabilidade do fiador ser abarcável e não totalmente dependente de terceiros e, desse modo, haver um mínimo de racionalidade na prestação da garantia sem a qual a vinculação jurídica não se justifica. O problema surge sobretudo quando a ou as obrigações garantias são futuras e de conteúdo evolutivo. Acerca delas, veja-se a anotação ao artigo 654.º Todavia, também são controvertidas cláusulas como aquelas que aparecem frequentemente nos mútuos bancários, pelas quais o fiador dá o seu acordo a quaisquer modificações que venham a ser acordadas entre mutuante e mutuário, incluindo modificações de prazo, de juros e moratórias. No sentido da nulidade das mesmas, cf., por ex., o ac.TRL de 11.08.2016, observando no entanto que a nulidade pode ser parcial. Num sentido pelo menos parcialmente diferente, cf., por ex., o ac.TRG de 14.05.2015. Suscitam igualmente reservas as fianças prestadas por particulares quando haja uma desproporção enorme entre a capacidade patrimonial do fiador e a responsabilidade assumida (de tal forma que não é expectável poder o fiador libertar-se da obrigação contraída pelos seus próprios meios), designadamente em face das cláusulas gerais da ordem pública e/ou dos bons costumes (cf. VASCONCELOS, 2013: 112 e s., nota 297, com mais indicações).

No que respeita aos requisitos subjetivos, embora a regra seja a de que qualquer pessoa, singular e coletiva, particular/consumidor ou profissional, pode, por si ou através de representante legal, prestar fiança, existem restrições. Vejam-se a nota VII, «infra», e a nota II ao artigo 633.º

b) A exigência de uma vontade expressa de prestar fiança, que também consta do artigo 1937 do CCit., tem implicada a vontade direta e inequívoca de assumir a posição de fiador (cf., por ex., GOMES, 2000: 468 e ss.), embora não se exijam formas sacramentais (cf., por ex. VARELA, 1997: 482, VASCONCELOS, 2013: 86, e o Ac.TRL de 28.11.2017). Escreveu SERRA (1957: 47): «Assim, não é fiança algum parecer dado por terceiro a respeito da fortuna ou honestidade do devedor; ou a apresentação do devedor por terceiro ao futuro credor; ou o simples pedido de que seja concedido o empréstimo a terceira pessoa». Acerca desta última situação, cf., a anotação ao artigo 629.º Sobre o âmbito da exigência de uma vontade expressa, ditada para defesa do fiador, cf., designadamente, CORDEIRO, 2015: 457 e s., 461, 462 e s., 465, 490 (defendendo um âmbito alargado), GOMES, 2000: 467 e ss., VARELA, 1997: 482 e s. No que toca aos obstáculos causados pelo requisito à consideração como fiança da situação decorrente de uma carta de conforto, cf., por ex., VASCONCELOS, 2013: 156. Quanto à sua concretização na jurisprudência, veja-se a nota VIII.

c) Diferentemente do consignado no artigo 841 do CCom de 1833 e do proposto por SERRA (1957: 48 e ss., em especial, 51, ressalvando um possível tratamento diferente da fiança comercial), inspirado no BGB (§ 766) e no CO suíço (art. 493), não se exige sempre a forma escrita, mantendo-se regime análogo ao do CC de 1867 (cf. arts. 826.º e 829.º): segundo o entendimento dominante, a fiança será um negócio formal, sujeito a forma especial, se o for também, legalmente, o negócio constitutivo da obrigação afiançada, devendo então acompanhar a forma mais exigente deste (n.º 1); caso contrário, poderá ser prestada por qualquer forma, incluindo verbalmente. Cf., a este respeito, os acs.STJ de 14.06.1972 (em cuja fundamentação se considera, no entanto, exigível para a fiança a forma que voluntariamente houver sido adotada para o negócio de que emerge a obrigação principal, o que não é correto, como observa SERRA na respetiva anotação) e de 7.02.1991, bem como o ac.TRP de 6.01.2014. Cf. também, em tom algo crítico quanto à falta de exigência de forma escrita, CORDEIRO, 2015: 457. Assim, se as partes num contrato de que emerge a dívida afiançada adotam voluntariamente certa forma, isso não terá que acontecer com a fiança (cf., por ex., aquele ac.TRP de 6.01.2014 e o ac.TRC de 26.05.1998, bem como SERRA, 1973-74: 203 e s.; note-se que, se o negócio a que se reporta a fiança revestir a forma escrita, como a obrigação afiançada se afere em regra por ela (art. 634.º), o fiador também beneficia dessa vantagem).

d) Faltando uma declaração formal, quando a lei a exige, a fiança é nula, nos termos gerais (art. 220.º). Note-se, porém, que a exigência de forma, quando exista, respeita apenas à declaração negocial do fiador (cf. «infra», nota III). Se faltar uma declaração expressa de prestar fiança, a consequência será a de que a declaração em causa não pode valer como constitutiva de uma fiança, ou seja, sem esse caráter expresso, não existe uma declaração fidejussória (cf. GOMES, 2000: 473 e ss.). Acerca da não convertibilidade de fiança nula em mandato de crédito, cf. GOMES, 2000: 479 e ss.

e) Cabe, ainda, assinalar a existência de um importante contencioso relacionado com a utilização de CCG e com o regime do crédito ao consumo. Veja-se a nota IX. Acerca da questão de saber se a fiança pode ter como fonte um negócio unilateral, cf. a nota III.

II No n.º 2, estabelecem-se duas regras: i) a fiança pode ser prestada à margem do devedor, mesmo que este a desconheça e até contra a sua vontade; e ii) a obrigação garantida pode ser futura (cf. também o art. 654.º) e condicional. A primeira, primo conspectu pouco natural (mas na linha do estabelecido no art. 767.º, n.º 1, cf. LIMA e VARELA, 1987: 645, nota 3, FARRAJOTA, 2017: 812), aponta num sentido objetivista da garantia, não tanto de acreditamento ou reforço da confiança no devedor (embora este seja possível mesmo sem o conhecimento do devedor ou até contra a sua vontade, real ou presumível). Dela decorre que a fiança pode ter como fonte, designadamente, um contrato celebrado entre o fiador e o devedor - em benefício do credor e indiretamente do devedor na medida em que favoreça ou viabilize a conclusão do negócio afiançado ou melhore para ele os respetivos termos -, mas também um contrato entre o fiador e o credor ou entre os três. Referindo esta última possibilidade, cf., por ex., o ac.STJ de 10.11.2011 e VASCONCELOS, 2013: 86, com mais indicações.

a) Havendo um acordo entre o devedor e o fiador quanto à prestação da fiança por este, para além da relação contratual interna que surge entre eles (cf., por ex., GOMES, 2000: 360 e ss., 362 e ss.), coloca-se a questão de saber se e em que condições estamos perante um contrato a favor de terceiro. No sentido de que o contrato entre o devedor e o fiador pode ser um contrato a favor de terceiro (o credor), cf., designadamente, LIMA e VARELA, 1987: 644 (nota 3 ao art. 627), COSTA, 2012: 892, VASCONCELOS, 2013: 85, FARRAJOTA, 2017: 812, e o ac.STJ de 10.11.2011. Mais desenvolvidamente, relacionando o problema com a exigência de vontade expressa (nota I), cf. GOMES, 2000: 365 e s. Acerca da possibilidade de a fiança poder, contra aquilo que em regra acontece, ser prestada sem o conhecimento e até contra a vontade do devedor, cf. as observações de CORDEIRO, 2015: 455 e s.

b) Diferentemente do que sucedia no CC de 1867, inspirando-se em códigos estrangeiros posteriores, o preceito em análise admite que a obrigação garantida seja condicional ou futura. Sobre o assunto, veja-se a nota V.

III Como a exigência de forma respeita apenas à declaração de prestar a fiança, é frequente haver um acordo, que pode ser informal, de prestação da mesma, entre devedor e fiador, entre devedor e credor ou entre fiador e credor, e um posterior instrumento escrito de fiança, assinado pelo fiador. Nestes casos, o acordo funciona de certo modo como negócio causal, mas a fiança propriamente dita aparenta ser um negócio unilateral fundado nesse acordo. Mostra-se controvertida, no entanto, a questão de saber se o negócio de fiança tem que ser um contrato ou pode ser também um negócio unilateral (recetício).

a) Acerca do assunto, perfilhando a tese contratualista dominante, cf., designadamente: MESQUITA, 1986: 26; VARELA, 1997: 485 e s.; GOMES, 2000: 376 e ss., 2004: 49 e ss., em especial, 55 e ss., com análise da jurisprudência, e 2010: 7 e ss.; VASCONCELOS, 2013: 85, LEITÃO, 2016: 105 e s. Na jurisprudência, cf. o ac.STJ de 14.12.2016 e, ainda, por ex., os acs.STJ de 21.09.1993 e 10.11.1993, com anotação de MENDES, de 15.12.1998, de 18.06.2002, de 27.05.2003 (considerando o termo da fiança como uma proposta de contrato), de 27.11.2003, de 26.10.2011 e de 10.11.2011, e o ac.TRP de 4.01.2010.

A favor da possibilidade de constituição por negócio unilateral, pelo menos nalguns casos (máxime, quando a fiança é um negócio profissional do garante), podem ver-se: SERRA, 1957: 25; MENDES, 1995: 455 e s.; ALMEIDA, 2013: 162, 196 e 199 (considerando ser esta a situação mais frequente na fiança bancária: o banco fiador obriga-se perante o devedor principal, a pedido deste e mediante o pagamento de uma comissão, a prestar fiança emitindo uma declaração comunicada ao credor; e observando que o presente artigo só se refere diretamente a esta declaração unilateral, exigindo o seu caráter expresso, dele resultando a admissibilidade in casu de uma promessa unilateral de prestar); CORDEIRO, 2015: 451 e ss. (n.º 220), com mais indicações e observando, ainda, que, no mínimo, havendo uma declaração unilateral de fiança, terá aplicação o artigo 458.º, ou seja, até prova em contrário, entender-se-á que existe um contrato que lhe dá «causa» (cf. também o ac.TRP de 3.10.1996). Na jurisprudência, cf., designadamente, os acórdãos do STJ de 4.10.2007, de 11.02.1988, de 21.01.1993 e 11.05.1993, com anotação de MENDES, 1995: 135, e do TRG de 11.05.2005.

b) Para os partidários da tese contratualista, torna-se fundamental verificar, in casu, se há contrato e, ainda, saber se a aceitação de uma proposta de fiança está sujeita a forma especial - cfr., por todos, GOMES, 2010: 9 e ss., 15 e ss., 30, com indicações. Embora o assunto não seja inteiramente pacífico, como observa ALMEIDA (2013: 196), mesmo quando integrada num contrato, a fiança, com a respetiva eficácia externa, é essencialmente uma declaração unilateral do fiador dirigida ao credor; assim a encarando o preceito em análise, exigindo uma declaração expressa e forma pelo menos idêntica à do negócio de que emerge a obrigação afiançada apenas para a declaração negocial do fiador. Cf. também, por ex., GOMES, 2000: 388, 456 e ss., VASCONCELOS, 2013: 86, LEITÃO, 2016: 106 e s., bem como, entre outros, os acs.STJ de 10.11.1993, 3.10.2002 e 16.06.2015 (este entendendo, na linha da GOMES, 2000: 388, que, nos termos do art. 234.º, pode ser dispensável a declaração de aceitação do credor), e, ao nível das relações, os acs.TRP de 21.09.1998 e de 18.06.2008. Noutro sentido, cf. VARELA, 1997: 487.

c) Note-se, ainda, que, se a fiança constitui um ato profissional, como acontece com a fiança bancária, não se verificam as exigências que levam estabelecer no artigo 457.º o princípio do contrato. Nem tão pouco se justificam exigências de forma superiores à forma escrita. Cf., a propósito, MENDES, 1995: 455 e s., 1993: 302 e ss.

IV – Este problema da estrutura e da forma do negócio também se coloca a respeito das garantias autónomas, mormente garantias autónomas e à primeira solicitação (ou pedido). Sobre o tema, cf. também GOMES, 2000: 443 e s., e 472 (entendendo que a exigência de caráter expresso vale para todas as garantias pessoais). Defendendo uma restrição, mas quanto ao prestador deste tipo de garantias (bancos e sociedades financeiras), cf. CORDEIRO, 2015: 550 e ss.

V – Ainda segundo o n.º 2, a obrigação garantida pode ser futura aplicando-se então o artigo 654.º e condicional. Além disso, o objeto da garantia tanto pode ser uma única como uma pluralidade de obrigações, presentes e futuras. Encontramos aqui o problema das chamadas fianças gerais, genéricas ou omnibus, em tempos muito frequentes nas relações negociais com os bancos, versado na anotação a este artigo 654.º (cf. também a nota introdutória VI).

a) Quanto às fianças relativas a obrigações condicionais, observam LIMA e VARELA (1987: 646, nota 4) que, por virtude da acessoriedade, também a fiança será condicional. E acrescentam que, não se verificando a condição suspensiva, a fiança também não pode subsistir; o mesmo acontecendo se uma condição resolutiva se verificar. GOMES tem, no entanto, outra leitura. Em primeiro lugar, entende que o preceito se refere apenas à condição suspensiva, única que poderia suscitar dúvidas acerca da admissibilidade da fiança (2000: 302, nota 49). Em segundo lugar, sendo a obrigação afiançada sujeita a condição suspensiva, observa (2000: 302 e ss., 309 e s.) que, ainda assim, sem que haja rutura da acessoriedade, a fiança é atual, não condicional, sendo a obrigação afiançada tratada como obrigação presente, embora não plenamente eficaz; e, verificada a condição, tem-se como prestada ab initio por um crédito presente e plenamente eficaz (cf. o art. 276.º).

b) Na verdade, se o crédito garantido é futuro (mormente quando o credor não tem um direito contratual à sua constituição e a não constituição não o prejudica pelo menos de forma significativa) ou futuro e incerto (ainda que de verificação independente da vontade das partes), a fiança apresenta especificidades (cf., no primeiro caso, os arts. 654.º e 629.º e respetivos comentários), mas daí não decorre que o negócio de fiança em si seja um negócio incompleto, uma simples promessa ou um negócio condicional (veja-se também a anotação ao art. 632.º, relativo à invalidade do negócio afiançado) (cf., ainda, GOMES, 2000: 304 e ss.).

VI A fiança tanto pode ser prestada a título oneroso –­ situação típica na fiança comercial, mormente fiança bancária – como a título gratuito, situação corrente nas fianças prestadas por particulares e noutras fianças de favor. Em regra, na fiança onerosa, a contrapartida será paga pelo devedor «ordenante». Em qualquer caso, é um negócio de risco, envolvendo um perigo substancialmente semelhante ao do segurador num seguro de créditos (cf. GOMES, 2004: 23 e ss., 2000: 118 e ss., 448 e ss, ALMEIDA, 2013: 156, 195 e s., e a nota introdutória X), justificando, designadamente, uma interpretação estrita da fiança, com tendencial aplicação dos critérios in dubio pro fideiussione e in dubio pro fideiussore, o tendencial caráter intuitu personae e a necessidade de cláusulas expressas para agravamento do risco fidejussório em relação ao que resulta da lei (cf. GOMES: 2004: 24 e s., 2000: 744 e s., e a nota introdutória XV), bem como, mais em geral, as apontadas exigências de forma (onde falta uma exigência geral de forma escrita como forma mínima, prevista no estudo prévio de Vaz SERRA e em ordenamentos estrangeiros, pelo menos para algumas modalidades). Para um confronto do contrato de seguro com as garantias, cf., ainda, REGO, 2010: 66, 431 e ss.

VII – Como se assinalou (nota I), qualquer pessoa, singular ou coletiva, pode, em princípio, constituir-se fiador. Porém, existem restrições, designadamente quanto às pessoas coletivas. Salienta-se, no caso das fianças prestadas por sociedades de direito mercantil, o artigo 6.º, n.º 3, do CSC. Segundo ele, «considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo». Acerca das garantias prestadas pelo Estado e outras pessoas coletivas públicas, cf. a Lei n.º 112/97, de 16.09, bem como M. BASTOS, 2008/1: 165 e ss., 2008/4: 277 e ss., e o ac.STJ de 31.01.2017. Dispõe-se, designadamente, no artigo 1.º, n.º 2, desta Lei: «A concessão de garantias pessoais reveste-se de caráter excecional, fundamenta-se em manifesto interesse para a economia nacional e faz-se com respeito pelo princípio da igualdade, pelas regras de concorrência nacionais e comunitárias e em obediência ao disposto na presente lei.». Para um quadro mais completo do tema, veja-se a nota II ao artigo 633.º

VIII Na jurisprudência, relativamente à questão da existência ou não de uma fiança, envolvendo designadamente os problemas da interpretação das declarações negociais e da verificação ou não do requisito da declaração negocial expressa, têm interesse, entre outros, os acórdãos a seguir indicados. Em geral, por um lado, o ac.TRP de 6.01.2014, os acs.STJ de 14.06.1972, 28.11.1972 e 26.02.1980; por outro lado, o especialmente exigente ac.TRL de 10.02.2015. Quanto à existência de uma fiança no lugar de um aval, vejam-se os acs.STJ de 17.05.1977, de 22.02.1984, de 13.10.1998, de 24.04.2013 e de 16.06.2015, o ac.TRL de 21.01.1976 e o ac.TRP de 3.02.1981. Cf. também a nota a seguir.

IX – Existe um significativo contencioso relativo à vinculação do fiador e aos termos da respetiva responsabilidade, relacionado com a utilização de CCG pelo credor e com o crédito ao consumo afiançado. Dão-se algumas indicações.

a) No sentido de que os deveres de comunicação e informação decorrentes do regime das CCG também valem para o fiador, cf., por ex., o ac.STJ de 6.12.2011 e o Ac.TRP de 12.11.2009, com mais indicações (incluindo GRAVATO MORAIS, 2007: 143-145, e GOMES, 2000: 103). Cf. também VASCONCELOS, 2013: 109. Porém, no caso particular de o fiador ser sócio e gerente da sociedade afiançada, considerando inaplicáveis os deveres impostos pelos artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, e 6.º, n.º 1, do DL 446/85, cf. o ac.TRL de 1.10.2014. No sumário do ac.TRL de 11.08.2016, lê-se, designadamente: «VII. O conceito de fiador faz parte do senso comum não requerendo particular explicação pelo predisponente, o mesmo não sucedendo com as menções: “com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia” e “e principais pagadores, responsabilizando-se, solidariamente”». Noutro sentido, quanto a este último aspeto, cf. o ac.TRG de 14.05.2015. Vejam-se ainda os acs.STJ de 12.10.2006 e de 14.12.2016.

b) No que respeita ao crédito ao consumo, o atual art. 12.º, n.º 2, do DL n.º 133/2009 dispõe: «Todos os contraentes, incluindo os garantes, devem receber um exemplar do contrato de crédito, sendo que, no caso de contratos de crédito celebrados presencialmente, o exemplar deve ser entregue no momento da assinatura do contrato de crédito». No domínio do DL 359/91, era controvertia a exigibilidade de entrega de um exemplar do contrato de crédito ao consumo ao fiador. Vejam-se, por um lado, os acs.STJ de 17.06.2010 e 21.01.2014 e os acs.TRL de 5.02.2002 e de 19.11.2009; por outro lado, o ac.TRP de 26.06.2012 e o ac.TRC de 2.07.2017 (estes favoráveis ao fiador). Cf. também GOMES, 2000: 751 e ss., 756 e ss. Interessa, ainda, no que respeita ao crédito imobiliário aos consumidores, o DL n.º 74-A/2017 (cf. DUARTE, 2018). Dispõe-se no artigo 13.º, n.º 6: «Nos casos em que, nos termos da proposta contratual a apresentar ao consumidor, o crédito deva ser garantido por fiança, o mutuante deve entregar simultaneamente a cópia da FINE (ficha de informação normalizada europeia) e da minuta do contrato ao fiador e prestar-lhe as explicações adequadas, assegurando-lhe um período mínimo de reflexão igual ao previsto no número anterior, antes da celebração do contrato de crédito.». Cf. também o artigo 41.º, n.º 1 (direito de apresentar ao BdP reclamações contra o incumprimento no disposto no diploma) e 10.º, n.º 3.

EVARISTO MENDES


Artigo 629.º

(Mandato de crédito)

1. Aquele que encarrega outrem de dar crédito a terceiro, em nome e por conta do encarregado, responde como fiador, se o encargo for aceito.

2. O autor do encargo tem a faculdade de revogar o mandato enquanto o crédito não for concedido, assim como a todo o momento o pode denunciar, sem prejuízo da responsabilidade pelos danos que haja causado.

3. É lícito ao encarregado recusar o cumprimento do encargo, sempre que a situação patrimonial dos outros contraentes ponha em risco o seu futuro direito.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: Embora a figura remonte ao direito romano (mandatum de pecunia credenda), não era regulada pelo CC de 1867. Mas acha-se regulada, inter alia, no BGB (§ 778), no CCit (arts. 1958 e 1959) e no CO suíço (arts. 408 a 411). Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 287 e ss.

2. Bibliografia nacional: ALMEIDA, C. FERREIRA DE, Contratos III, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 203 e s.; ALVES, HUGO R., Do mandato de créd ito, Almedina, Coimbra, 2007; ANTUNES, J. ENGRÁCIA, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 544 e s.; BASTOS, J. RODRIGUES, Notas ao Código Civil, Lisboa, 1993, pp. 84 e s.; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 503-507 (n.º 245); COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações , 12ª ed., Almedina, Coimbra, pp. 907 e s.; FERNANDES, L. CARVALHO, A Conversão dos negócios jurídicos, Quid iuris?, Lisboa, 1993; GOMES, JANUÁRIO, 2000, pp. 480 e ss., Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 305-310; LEITÃO, L. MENEZES, 5.ª ed., Garantias das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 123-127; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., com a colaboração de MESQUITA, M. HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 646 e s.; MARTINEZ, P. ROMANO / PONTE, P. FUZETA DA, Garantias de cumprimento, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pp. 113 e s.; SILVA, J. CALVÃO DA, «Mandato de crédito e carta de conforto», AAVV, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II, Almedina, 2002, pp. 245-264; VARELA, ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, p. 483, nota 1; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 114-117.

3. Jurisprudência : Acs.TRL de 3.03.1983, CJ 1983/II, pp. 97-99, e de 16.02.2016 (470/12.4TVLSB.L2-1); ac.TRP de 28.11.2000 (0021513); e ac.TRE de 8.02.1990, CJ 1990/I, pp. 305-308.

4. Anotação: I – O preceito ocupa-se do chamado «mandato» de crédito: i) constituindo o «mandante» responsável como fiador perante a contraparte que assume o encargo de conceder o crédito relativamente à futura obrigação derivada dessa concessão (n.º 1); e ii) regulando alguns aspetos do contrato (nºs 2 e 3). O «mandatário» fica vinculado a conceder o crédito e, para contrabalançar essa obrigação, a lei, se as partes não estipularem o contrário, constitui-o beneficiário de uma garantia fidejussória ou de tipo fidejussório contra o mandante, supostamente interessado na concessão do crédito («dono» da operação) (cf., por ex., CORDEIRO, 2015: 507, LIMA e VARELA, 1987: 647, VARELA, 1997: 483, nota 1, SILVA, 2002: 255 e s., ALVES, 2007: 69 e ss., 77 e s., e VASCONCELOS, 2013: 116 e s.).

a) Discute-se se há fiança ou situação equiparada a uma fiança logo que haja contrato de «mandato», assumindo o «mandatário» o encargo de dar crédito, ou só depois de o crédito ter sido concedido. No sentido de que só há, legalmente, uma situação fidejussória após o crédito ter sido concedido, cf. SILVA, 2002: 256. Todavia, como observa GOMES (2012: 307 e s.), a simples aceitação do encargo – ainda que a concessão do crédito ocorra mais tarde – gera para o «mandante» uma responsabilidade fidejussória, embora, enquanto a concessão do crédito não ocorre, a lei permita a «saída» por parte do autor do encargo. Haverá, assim, uma fiança legal de obrigação futura, associada ao encargo cometido, enquanto o crédito não for concedido e, portanto, não se constituir a obrigação afiançada – justificando, em especial, a aplicação do n.º 2 –, que passará a fiança de obrigação presente e, portanto, com vinculação mais firme a partir da celebração do contrato de crédito e da correspondente constituição da obrigação que a lei considera afiançada (cf. a nota II). Cf. também ALVES, 2007: 77 (antes da execução do encargo, o autor deste responde como fiador de obrigação futura), com mais indicações. Note-se, no entanto, que este autor contesta que se trate de verdadeira fiança (pp. 77 e s., 103 e s. – situação «quasi ou para-fidejussória»).

b) O contrato forma-se por iniciativa do autor do encargo (ordenante), com a aceitação de tal encargo, ficando o encarregado obrigado a conceder crédito e respondendo o ordenante ex lege (não em virtude de declaração negocial expressa) como fiador (cf. ALMEIDA, 203 e s.). Acerca da forma, veja-se a nota VII.

c) Apesar da sua inserção sistemática, o contrato constitui uma figura negocial autónoma, distinta designadamente do negócio de fiança (cf., por ex., GOMES, 2000, 484, ALVES, 2007: 102 e ss., SILVA, 2002: 257, CORDEIRO, 2015: 506 e s., com mais indicações), embora dê ou possa dar origem legalmente a uma situação de fiança ou equiparada a ela. Cf., «infra», a nota VI.

d) A situação dele derivada distingue-se, designadamente, da que se verifica nas cartas de conforto, ou nalgumas delas, em que se solicita a concessão de crédito, porque nestas o autor das mesmas não vincula o seu destinatário a conceder crédito ao «apadrinhado» (cf. SILVA, 2002: 248, 259 e s., e, ainda, GOMES, 2012: 306 e s., Alves, 2007: 67, 70 e s.).

II – O n.º 2 respeita ao «mandato de crédito» em si - que tem a especificidade de o «mandatário» aceitar executar o encargo em seu próprio nome e por sua conta (n.º 1) -, conferindo ao «mandante» duas faculdades. Dispõe-se aí: i) que o encargo é revogável pelo seu autor enquanto o crédito não for concedido, ou seja, enquanto o «mandatário» não tiver executado o encargo assumido; ii) que é denunciável a todo o momento; e iii) que, ocorrendo a denúncia, o seu autor responde pelos danos que desse modo haja causado.

a) A revogação antes de o crédito ter sido concedido, ou seja, antes de executado o «mandato» compreende-se sem esforço. Com efeito, apesar da especificidade de se tratar de um «mandato» de concessão de crédito a um terceiro em nome e por conta do «mandatário», ele é conferido não no interesse deste, mas no do «mandante», estando a revogação em linha com a regra da livre revogabilidade do mandato (art. 1170.º). Note-se, no entanto, que a revogação pode acarretar prejuízos para o «mandatário» que ainda não concedeu o crédito (por ex., despesas incorridas com a preparação do contrato de crédito), tendo ele direito a ser indemnizado nos termos gerais (cf. MARTINEZ e PONTE, 2006: 114, e, mais desenvolvidamente, citando doutrina em contrário, ALVES, 2007: 80 e ss.).

b) A denúncia aplicável quando o contrato de «mandato» já está a ser executado, existindo crédito concedido mas mantendo-se a vinculação de conceder mais crédito faz cessar o encargo para o futuro, deixando o «mandatário» de estar vinculado a conceder mais crédito. Cessando esta obrigação de conceder novo crédito, fica por isso sem cobertura fidejussória quanto a ele. Noutros termos, o «mandante» continua a garantir, como fiador, o crédito já concedido ao terceiro (assim, parece, LIMA e VARELA, 1987: 647, nota 4), mas deixa de o fazer em relação a créditos subsequentes (futuros), mesmo que o «mandatário» tenha interesse na continuação da concessão de crédito (cf. também GOMES, 2004: 40 e ss., 2012: 308 e s., observando que, uma vez concedido o crédito, o autor do encargo já está vinculado fidejussoriamente, só podendo libertar-se desta vinculação, denunciando o encargo, nos termos limitados em que tal é permitido ao fiador; referindo-se tanto a revogação como a denúncia a situações em que o crédito ainda não tenha sido concedido; cf., no entanto, com outra leitura, ALVES, 2007: 86 e s.). Neste caso, porém, apesar de quer a faculdade de revogação quer a faculdade de denúncia serem discricionárias (ou livres - LIMA e VARELA, 1987: 647, nota 4), dispõe a lei expressamente que, podendo o «mandatário» sofrer danos, deve o denunciante repará-los (cf., por ex., MARTINEZ e PONTE, 2006: 114, considerando tratar-se de um caso de responsabilidade por ato lícito no domínio contratual). No sentido de que a responsabilidade pelos danos decorrentes da denúncia não pressupõe culpa do «mandante» nem que a denúncia seja injustificada, cf. BASTOS, 1993: 95, nota 2.

III – Comummente, entende-se que o mandato de crédito é um contrato, que vincula o «mandatário» perante o mandante. Mas tanto pode ser um contrato com mera estipulação de prestação a favor de terceiro, como um contrato a favor de terceiro (cf. a nota I e, designadamente, ALMEIDA, 2013: 204). Cf., no entanto, ALVES, 2007: 101 e s.

IV – O n.º 3 respeita à posição do «mandatário» ou encarregado de conceder o crédito. Parte-se do pressuposto de que alguém assumiu, perante o «mandante», o compromisso de conceder o crédito – mediante contrato – mas, antes de cumprir tal compromisso (ou seja, antes de conceder o crédito), mantendo-se a vinculação, pretende não o fazer (cf., por ex., ALVES, 2007: 87). A lei não lhe reconhece, em geral, essa possibilidade (como não lhe reconhece a faculdade de revogar o denunciar o contrato de «mandato» cfr. o art. 1958 do CCit e LIMA e VARELA, 1987: 647, nota 5); apenas declara lícita a recusa de satisfazer o encargo assumido se a situação patrimonial do futuro devedor ou do «mandante» seu fiador puser em risco a satisfação do seu futuro direito de crédito, ou seja, se tornar insuficiente para a satisfação deste (cf., por ex., ALVES, 2007: 87 e ss., qualificando a situação como de suspensão do vínculo contratual).

a) Problemática é a situação quando a insuficiência patrimonial já existia no momento da assunção do compromisso, mas era desconhecida do «mandatário». Com efeito, no texto da lei compreendem-se duas hipóteses: a mais natural de tal insuficiência patrimonial ser superveniente; e a de ela já existir no momento do contrato de «mandato», mas ser desconhecida do «mandatário» (LIMA e VARELA, 1987: 647, nota 5). Todavia, essa não é a única interpretação possível do preceito. Aludem apenas à primeira hipótese MARTINEZ e PONTE, 2006: 114. Quanto à segunda, no sentido de que o encarregado tem o ónus de se informar, não podendo valer-se da sua falta de diligência para recusar o cumprimento do encargo assumido, cf. VASCONCELOS, 2013: 115 e nota 303, bem como ALVES, 2007: 88, salientando, por um lado, que, além de superveniente, a maior dificuldade de satisfação do futuro crédito deve ser manifesta e, por outro lado, que também não relevará para o efeito em apreço se o autor do encargo ou o terceiro oferecerem garantias adequadas. Considerando a posição de LIMA e VARELA duvidosa, cf. GOMES, 2000: 491.

b) O «mandante-fiador», se vier a ser acionado como fiador pelo «mandatário», credor do terceiro a quem concedeu o crédito, terá o direito que a este cabia, adquirido por sub-rogação legal (cf. o art. 644.º). Daí que também confira o «mandato» no natural pressuposto de que o terceiro devedor principal será solvente.

V – A lei não distingue, pelo que o preceito se aplica quer ao «mandato» gratuito quer ao mandato oneroso (LIMA e VARELA, 1987: 647, nota 2).

VI – A natureza do mandato de crédito é discutida (cf., por ex., SERRA, 1957: 288 e ss., GOMES, 2000: 480 e ss., 2012: 309 e s.; e ALVES, 2007: 93 e ss., 102 e ss., considerando estarmos perante um contrato preparatório de um contrato de crédito, vinculando uma das partes a concedê-lo, e com um efeito legal quase fidejussório). Sendo o contrato de mandato caracterizado, no artigo 1157.º, pela circunstância de uma das partes (mandatário) se obrigar a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra (mandante), o contrato em apreço, em que o «mandatário» se obriga a conceder crédito por conta própria, não é, em rigor um mandato (assim, por ex., LIMA e VARELA, 1987: 646 e s., nota 1; ALVES, 2007: 95 e ss.; GOMES, 2000: 484, 2012: 306 e 309; VASCONCELOS, 2013: 115 e s.; ALMEIDA, 2013: 203 e s. (tipo contratual autónomo, com elementos dos contratos de crédito, de mandato e de fiança, figura próxima do mandato e da fiança de obrigação futura; avultando para o ordenante as obrigações próprias da fiança; é um «contrato de garantia pessoal e acessória, porque a obrigação nuclear do ordenador depende do incumprimento de uma obrigação de terceiro»); cf. também SERRA, 1957: 288 e ss., assinalando, no entanto, semelhanças. Também não é uma fiança, embora, por razões de analogia funcional, a responsabilidade fidejussória lhe esteja associada ex lege, como uma sua consequência natural (cf., por ex., GOMES, 2000: 485 e s., observando que «o autor do encargo, ao encarregar outrem de dar crédito a terceiro, está indiretamente a asseverar ao encarregado que o terceiro merece crédito», 2012: 309, ALVES, 2007: 99 e s., CORDEIRO, 2015: 507, observando que estamos perante um tipo legal próprio, que pode considerar-se uma versão do mandato e que, no seu funcionamento, pode originar uma fiança, com especificidades quanto à fonte).

SERRA, na linha do CCit, propunha, por isso, uma regulação do contrato juntamente com a fiança, por ser figura análoga, mas não o integrava nesta (1957: 287 e ss.; cf. também BASTOS, 1993: 94, nota 1). A opção do CC pela sua integração na fiança, à semelhança, designadamente, do BGB, parece ter na base a ideia de que o autor do encargo presta tacitamente uma fiança (cf. LIMA e VARELA, 1987: 647, nota 3). No entanto, a valoração da lei é objetiva: a menos que as partes tenham afastado o efeito fidejussório, considera-se este adequado à situação.

VII – Havendo alguma analogia com o mandato e um natural e legal efeito fidejussório (ou quase fidejussório), além do preceito em análise aplicam-se as disposições da fiança e, eventualmente, do mandato (cf. LIMA e VARELA, 1987: 647, nota 6, ALVES, 2007: 68 e s., 74 e ss.). Mesmo tratando-se de figura negocial autónoma e não sendo a garantia (legal) o seu aspeto central, a lei manda aplicar o regime desta (com ela compatível): o mandante responde como fiador. Salientam-se as seguintes disposições: artigos. 631.º, 634.º, 637.º, 644.º, 648.º e 651.º (assim, VASCONCELOS, 2013: 117). Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, 1957: 292 e nota 494-a. Discute-se, em especial, se se aplicam as exigências de forma da fiança. Em sentido afirmativo, cf. GOMES, 2000: 487 e ss. Contra, SILVA, 2002: 254, ALVES, 2007: 68 e s., LEITÃO, 126, MARTINEZ / PONTE, 113, e o ac.TRL de 16.02.2016. Cf., ainda, VASCONCELOS, 2013: 117, nota 311. Considerando, em especial, que, tendo a fiança fonte legal, não se exige uma manifestação de vontade de a prestar expressa, cf., por ex., MARTINEZ e PONTE, 2006: 92 e 113.

EVARISTO MENDES


Artigo 630.º

(Subfiança)

Subfiador é aquele que afiança o fiador perante o credor.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: A subfiança corresponde à abonação do CC de 1867 (arts. 827.º a 829.º ). O artigo 827.º dava a seguinte noção: «Podem uma ou mais pessoas responsabilizar-se pela solvabilidade do fiador. A este facto chama-se abonação». Acrescentava-se: «Para haver abonação é necessário que seja dada em termos claros, expressos e positivos» (art. 828.º); «A abonação pode provar-se pelos mesmos meios pelos quais se prova a fiança [cf. o art. 826.º], e é em tudo o mais sujeita às disposições que regulam a fiança, exceto quando a lei expressamente determinar o contrário» (art. 829.º). Cf. também, designadamente, os artigos 1940 e 1948 do CCit e 498 do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 41 e s.

2. Bibliografia nacional: CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 480 e s.; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 906 e s.; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 1100 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 116-118; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., com a colaboração de MESQUITA, M. HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 647 e s.; MARTINEZ, P. ROMANO / PONTE, FUZETA DA, Garantias de cumprimento, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pp. 111 e s.; VARELA, ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 513 e s.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 98 e s.

3. Anotação: I – O presente artigo apresenta um duplo sentido: i) define como subfiador aquele que afiançar o fiador perante o credor (garantindo deste modo a satisfação do crédito); e ii) admite a figura, que tem afloramentos de regime nos artigos 643.º e 650.º, n.º 4. A subfiança, designada abonação no CC de 1867, distingue-se de uma outra modalidade de fiança - a retrofiança - uma vez que esta é prestada por terceiro a favor do fiador, na qualidade de potencial sub-rogado nos direitos do credor a quem tenha satisfeito o crédito (cf. o art. 644.º); cf. SERRA, 1957: 41 e s., GOMES, 2000: 362, nota 329, 1103 e s., e LEITÃO, 2016: 118. No primeiro caso, embora o subfiador seja um fiador de outro fiador, não do devedor principal (o que se garante é o crédito fidejussório, não o crédito principal), o beneficiário é, ainda, o credor (cf. GOMES, 2000: 1101 - há um reforço indireto da probabilidade de satisfação do seu crédito –, e LEITÃO, 2016: 117); neste segundo, o beneficiário é o fiador, perante o devedor principal. Em ambos os casos estamos, porém, perante modalidades da fiança.

A alteração terminológica operada pelo CC vigente pode justificar-se porque abonar é um termo genérico, suscetível de abranger tanto a subfiança como a fiança e até figuras próximas sem necessária vinculação fidejussória, como as cartas de conforto, mas pode não ter sido a melhor opção (cf. GOMES, 2000: 1102 e s.).

II À subfiança são aplicáveis com as devidas adaptações as regras gerais da fiança (cf., por ex., VASCONCELOS, 2013: 99) e, ainda, as normas especiais indicadas, ou seja: i) o subfiador goza do duplo benefício da excussão prévia dos bens do devedor e dos bens do fiador que abona (art. 643.º; numa leitura possível deste preceito, goza desse benefício mesmo que o afiançado não o tenha - veja-se a respetiva anotação); e ii) havendo uma pluralidade de fiadores um dos quais é abonado por um subfiador, em princípio, a responsabilidade deste é apenas perante o credor, não também perante os demais fiadores, se o seu afiançado ficar insolvente (art. 650.º, n.º 4). Dentro das regras gerais, avulta o princípio da acessoriedade, importando observar que, embora a acessoriedade da obrigação do subfiador se estabeleça com a obrigação do fiador que ele abona, a sua prestação acaba, no entanto, por ser moldada pela do devedor principal, ainda que «mediada» pela prestação desse fiador (assim, GOMES (2000: 1102; cf. também VASCONCELOS, 2013: 99).

III Legalmente, o subfiador apenas garante o credor e é um devedor de terceira linha (cf. SERRA, 1957: 187). Daí as regras especiais assinaladas (cf., quanto ao art. 650.º, n.º 4, SERRA, 1957: 188 e s., LEITÃO, 2016: 117, e VASCONCELOS, 2013: 99). Realça-se, ainda, o que se segue. Se o subfiador for demandado e cumprir designadamente porque a subfiança é solidária, porque não invocou o benefício da excussão ou porque o seu afiançado ficou insolvente e se aplica o art. 217.º, n.º 4, do CIRE (cf. a nota V ao art. 631.º) –, extingue a sua obrigação fidejussória e adquire, por sub-rogação, o crédito principal (art. 644.º), crédito esse que se encontra e conserva garantido pela fiança a que respeita (art. 582.º, ex vi ao art. 594.º) (cf., por ex., GOMES, 2000: 1102, LEITÃO, 2016: 118, e VASCONCELOS, 2013: 99) e por outras eventuais fianças, se as houver. Se o fiador abonado cumprir, a subfiança extingue-se, como sucede se for o devedor a cumprir (cf. o art. 651.º) (cf. VASCONCELOS, 2013: 99), ficando o mesmo fiador sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor principal (art. 644.º; cf. LEITÃO, 2016: 118). Havendo outros fiadores, igual extinção provoca o cumprimento por qualquer deles. O direito de «regresso» que aquele que cumprir desse modo adquire respeita apenas às relações com os demais confiadores. Isso é assim mesmo que o fiador abonado fique insolvente. Ainda nesta situação de pluralidade de fiadores, o aludido benefício da excussão (nota II) também respeita aos patrimónios dos não abonados (cf. também LIMA e VARELA, 1987: 669, anot. 3, especificando que o benefício existe em relação aos confiadores que respondam pela totalidade da prestação).

EVARISTO MENDES


Artigo 631.º

(Âmbito da fiança)

1. A fiança não pode exceder a dívida principal nem ser contraída em condições mais onerosas, mas pode ser contraída por quantidade menor ou em menos onerosas condições.

2. Se exceder a dívida principal ou for contraída em condições mais onerosas, a fiança não é nula, mas apenas redutível aos precisos termos da dívida afiançada.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: No CC de 1867, o artigo 823.º dispunha: «A fiança não pode exceder a dívida principal, nem ser contraída em condições mais onerosas. Pode, contudo, contrair-se por quantia menor, e com menos onerosas condições. Se exceder a dívida ou se contrair mais onerosa, a fiança não será nula, mas sim redutível aos precisos termos da dívida afiançada». Cf. também, designadamente, o § 767 do BGB e os artigos 2013 do CCfr (hoje, 2290) e 1941 do CCit. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 28, 72 e ss.

2. Bibliografia nacional: CAMPOS, ISABEL M., «A posição dos garantes no âmbito de um plano especial de revitalização - Anotação ao Ac. do TRG de 5.12.2013», CDP 46 (2014), pp. 57-67, 61 e ss.; CASANOVA, NUNO SALAZAR, / DINIS, DAVID SEQUEIRA, PER – O Processo Especial de Revitalização, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pp. 59-63;CORDEIRO, A. MENEZES,Tratado, X, 2015, pp. 464-466; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 186 e 893; CUNHA, CAROLINA, «Aval em branco e plano de insolvência»,RLJ 145, 2016, pp. 201-232, 204 e ss., 212 e ss., Aval e Insolvência, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 111 e ss., «A execução do avalista após homologação do plano de revitalização do avalizado», anotação ao Ac.STJ de 4.05.2017, RLJ 147, 2017, pp. 119-138 (cit. 2017a); FARO, FREDERICO, Fiança omnibus no âmbito bancário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 64 e ss.; FERNANDES, L. CARVALHO / LABAREDA, JOÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2015, pp. 792 e ss. (anotação ao art. 217.º do CIRE); GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 330 e s., 601 e s., 619, 752 e s., 755 e s., 1109, «Sobre os poderes dos credores contra os fiadores no âmbito de aplicação do CIRE. Breves notas», III Congresso de Direito da Insolvência, coord. de SERRA, CATARINA, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 313-341; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., com a colaboração de MESQUITA, M. HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 648 e s.; LOUSA, NUNO FERREIRA, «Os créditos garantidos e a posição dos garantes nos processos recuperatórios de empresas», Revista de Direito da Insolvência, n.º 1 (2016), pp. 147-167; SENDIN, PAULO, Letra de Câmbio – L.U. de Genebra, vol. II, Almedina, Coimbra, 1982, pp. 721 e ss.; SERRA, CATARINA, «Nótula sobre o art. 217.º, n.º 4, do CIRE», Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, vol. I, UCE, Lisboa, 2011, pp. 377-387 (cit. C. SERRA); VARELA, ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, p. 481 e s.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 87.

3. Jurisprudência: Ac.STJ de 20.04.1999 (99A162); ac.TRL de 9.12.2014 (866/12.1TVPRT.L1); acs.TRC de 6.07.2016 (9499/15.0T8CBR.C1), de 23.05.2017 (789/15.2T8PBL-B.C1) e de 12.12.2017 (430/15.3T8MGR.C1); acs.TRE de 13.03.2014 (1327/13.7TBSTR.E1) ede12.07.2016 (3066/15.5T8STR.E1); ac.TRG de 10.12.2013 (1083/13.9TBBRG.G1).

4. Anotação: I – O presente artigo ocupa-se, por um lado, do âmbito máximo da fiança, constituindo nessa medida uma manifestação do princípio da acessoriedade da mesma (cf. o art. 627.º): via de regra, o conteúdo da obrigação do fiador mede-se pelo da obrigação afiançada (cf. o art. 634.º), não o podendo exceder (n.º 1) e sendo redutível a ele se tal acontecer (n.º 2). Por outro lado, contém um afloramento da autonomia privada do fiador: a fiança pode ficar aquém da obrigação afiançada (n.º 1).

a) Cabe realçar a consequência da ultrapassagem dos limites objetivos da obrigação principal: segundo o n.º 2, a fiança não é nula, nem total nem parcialmente. Pode, no entanto, discutir-se se fica legal e automaticamente reduzida, de modo a que o seu conteúdo coincida com o da obrigação garantida, ou se é meramente redutível. No sentido de que, nos termos do preceito, ditado pelo favor negotii, a fiança é apenas redutível – não havendo uma redução automática –, como de resto o texto sugere, e de que, em lugar da redução pode haver uma conversão, exigindo-se sempre a verificação dos requisitos dos artigos 292.º e 293.º, cf. CORDEIRO, 2015: 466. Sendo a fiança uma obrigação distinta da obrigação principal (cf. a nota introdutória XVI), a acessoriedade não impõe, realmente, uma redução automática. Mas se a sua função é assegurar o crédito (art. 627.º, n.º 1), ao fiador apenas pode ser exigida a satisfação deste, tendo o fiador direito à repetição do indevido se a sua prestação o exceder. Além disso, a fiança é, naturalmente, de interpretar num sentido que a circunscreva dentro dos limites do crédito.

b) Questão diferente é a de saber se a fiança pode subsistir com um âmbito maior que o da obrigação principal quando se verifique o risco de insatisfação integral do credor através do devedor principal, como acontecerá em geral se este fica insolvente (veja-se a nota V). Além disso, nos casos previstos no artigo 632.º, n.º 2, a fiança também pode subsistir, com a eficácia que lhe é própria, apesar de anulada a obrigação principal (veja-se o respetivo comentário, nota III).

II – O fiador não pode, designadamente, estipular para a sua obrigação um prazo mais curto do que o da obrigação principal, mas pode, por exemplo, estabelecer que, apesar do prazo, a sua constituição em mora depende de interpelação e/ou do decurso de um prazo suplementar (cf. SERRA, 1957: 72 e ss., VARELA, 1997: 481, LIMA e VARELA, 1987: 648), que, numa dívida pagável a prestações ou envolvendo prestações periódicas, a obrigação fidejussória se circunscreve a algumas delas, etc.

III – Se a obrigação afiançada for de prestação de facto e tiver associada uma cláusula penal de valor superior, observam LIMA e VARELA (1987: 648, nota 3) que esta ainda se considera de algum modo integrante da obrigação principal, pelo que a fiança pode cobri-la sem ofensa do disposto no preceito em análise.

IV – Se há um acordo modificativo da obrigação garantida, no sentido da sua ampliação, ele não é, pelo menos em princípio, oponível ao fiador: o fiador não se vinculou desse modo – a obrigação pertinente é aquela que lhe serviu de referência (cf. o art. 634.º e a respetiva anotação). Ressalva-se a possibilidade de no negócio de fiança se aprovarem antecipadamente eventuais alterações e/ou de se estender a fiança a possíveis modificações que venham a ser acordadas entre o credor e o devedor (cf., no entanto, a anotação ao artigo 628.º, nota I). Porém, se a obrigação principal vier a ser contratualmente modificada no sentido da sua redução (v. g., quanto ao montante ou eventuais juros), do prolongamento do prazo de vencimento, etc., ainda que o fiador não participe no acordo, em princípio, beneficia dele, por força da acessoriedade (art. 627.º, n.º 2) que também aflora no artigo em análise. Neste último caso, mesmo tratando-se de uma situação pré-insolvencial e de um acordo tendente a recuperar o devedor afiançado, evitando a sua insolvência, dispõe o n.º 7 do artigo 19.º do RERE (Regime extrajudicial de recuperação de empresas, aprovado pela Lei 8/2018, de 2 de março): «Salvo se o acordo de reestruturação dispuser diversamente, a redução da obrigação do devedor determina aredução da obrigação dos condevedores ou dos terceiros garantes em termos equivalentes aos que resultem para o devedor do acordo de reestruturação».

A situação muda, no entanto, de figura quando o devedor é declarado insolvente (veja-se a nota seguinte) e, porventura, também se, numa situação pré-insolvencial, é aprovado e homologado judicialmente um PER (cf. a nota VI).

V – Ocorrendo a declaração de insolvência do devedor principal, o fiador responde, em princípio, perante o credor, nos termos estipulados na fiança; mesmo se forem limitadas ou nulas as possibilidades de, pela via da sub-rogação, prevista no artigo 644.º, vir a recuperar do devedor afiançado o que tiver prestado ao credor. De facto, a fiança serve, designadamente, para cobrir este tipo de riscos (cf. a anotação ao art. 627.º). A este respeito, importa ter presente que a declaração de insolvência do devedor afiançado não tem que desembocar na liquidação universal do seu património: pode haver lugar à aprovação de um plano tendente à sua recuperação, o qual, inter alia, é suscetível de compreender a extinção ou redução do crédito afiançado, a concessão de uma moratória, etc. (cf. o art. 196.º do CIRE). Neste caso, dispõe o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE: «As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.»

Resulta deste preceito que, se, nos termos do plano, a dívida afiançada for reduzida ou inclusive extinta, o fiador continua obrigado como se vinculou. Isso é assim mesmo que o credor garantido tenha dado o seu consentimento a tal redução ou extinção. Mais: apesar de o fiador continuar obrigado desse modo, o direito que adquire por sub-rogação, nos termos do artigo 644.º, é aquele que, por força do plano, existir na esfera jurídica do credor, com a configuração que aí tiver; e o artigo 653.º também não tem aplicação. Por conseguinte, a verificação do risco coberto pela garantia justifica a subsistência de uma obrigação mais ampla que a obrigação afiançada - ou inclusive a sua subsistência apesar de esta ser extinta.

a) Suscitam-se, no entanto, designadamente, duas questões. A primeira delas respeita ao âmbito do preceito. Na verdade, atento este custo pesado que a recuperação do devedor tem para o fiador, há quem defenda uma interpretação do mesmo circunscrita aos respetivos termos, afastando a sua aplicação quando esteja em causa uma modificação do crédito distinta da redução, mormente uma moratória concedida ao devedor. Acerca do tema, cf., com mais indicações: por um lado, FERNANDES e LABAREDA, 2015: 792 e ss., LOUSA, 2016: 160 e ss., e o ac.TRC de 6.07.2016 (defendendo uma interpretação ampla, justificada pela ratio da norma); por outro lado, C. SERRA, 2011: 377 e ss., GOMES, 2015: 323 e ss., 330 e ss. Veja-se, ainda, CUNHA, 2016: 218 e ss., 2017:113 e ss., considerando que a primeira parte do preceito insolvencial não extravasa o limiar de risco que garantes como o fiador ou o avalista voluntariamente assumiram, mas já será merecedora de crítica a segunda parte.

b) A segunda questão não tem diretamente a ver com o preceito em análise, mas com o princípio da subsidiariedade: trata-se de saber se, ocorrendo a declaração de insolvência e a aprovação de um plano, favorável ao devedor, o benefício da excussão prévia previsto no artigo 638.º se mantém. A resposta afigura-se negativa: quer em face daquele preceito do CIRE, quer em face do artigo 640.º b). Veja-se o comentário a esta última disposição legal (nota III).

c) Mais em geral, como, nos termos do artigo 91.º, n.º 1, do CIRE, a declaração de insolvência provoca o vencimento imediato de todas as obrigações do insolvente, incluindo portanto a obrigação afiançada, coloca-se, ainda, a questão de saber se o mesmo sucede com a obrigação fidejussória. No sentido de que tal não acontece, veja-se a anotação ao artigo 634.º (nota III).

VI – Existe uma grande controvérsia acerca da aplicabilidade do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE quando haja um plano de recuperação aprovado no âmbito de um processo especial de revitalização (PER) de empresa em dificuldade. Mesmo em face da redação dada ao n.º 3 do artigo 17.º-A pelo DL 79/2017 (de 30.06), donde resulta a expressa aplicação a este processo de «todas as regras previstas no presente código que não sejam incompatíveis com a sua natureza», isso é controvertido. A orientação que se afigura prevalecente na jurisprudência dos tribunais superiores é, no entanto, favorável à aplicação: cf., por ex., os acs.TRC de 23.05.2017 (relativo ao aval em branco) e de 12.12.2017 (relativo à fiança e considerando que o preceito do CIRE se sobrepõe ao princípio civilista da acessoriedade), bem como as indicações fornecidas por LOUSA (2016), na nota 15. Na doutrina, sobre o assunto, embora a respeito do aval em branco, cf., com mais indicações, CUNHA, 2017: 149 e ss., 173 e ss., 186 e ss., 2017a: 133 e ss. (desfavorável a tal aplicação, mas considerando-a irrelevante). Cf. também, sobre a versão anterior do CIRE, CASANOVA e DINIS, 2014: 60 e ss., GOMES, 2015: 336 e ss. (defendendo a não aplicação), CAMPOS, 2014: 65 e ss. (a favor da aplicação), e LOUSA: 2016, 165 e ss. (a favor da aplicação em relação às obrigações já vencidas na data da aprovação e homologação, bem como de uma interpretação não restritiva do preceito, na linha de FERNANDES e LABAREDA – 106 e ss.).

a) Na jurisprudência, há, inclusive, acórdãos que não admitem, no âmbito do PER, a extensão aos garantes dos «benefícios» concedidos ao devedor garantido. Cf., por ex., o ac.TRC de 23.05.2017 (embora com base na LULL) e o ac.TRG de 10.12.2013 (invocando o art. 217.º, n.º 4, do CIRE). Contra, por ex., os acs.TRE de 13.03.2014 e de 12.07.2016. Favorável à liberdade de estipulação, cf. também CUNHA, 2017: 205 e ss., e 2017a: 135 e s., com mais indicações. O problema coloca-se, sobretudo, quando tal extensão haja tido a oposição do credor garantido. Na verdade, neste caso, não parece haver suficiente base legal para afetar a sua posição jurídica. Se ele concordou, estamos no âmbito da autonomia privada.

b) Quanto ao problema de fundo, consistente em saber se o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE é aplicável e em que medida, sem prejuízo de melhor reflexão, pode afirmar-se o que se segue. Uma vez que o plano de recuperação foi homologado pelo juiz, comprovando este quer a situação económica difícil ou de insolvência iminente do devedor afiançado quer a aptidão do plano para a recuperação deste, evitando a insolvência, verificou-se o risco de não satisfação integral do crédito afiançado, risco esse que a fiança se destinou a cobrir, e criou-se um escudo de proteção do devedor, com vista à sua recuperação. A situação é, pois, sob este ponto de vista, equiparável à que ocorre no âmbito do processo de insolvência. Logo, o fiador responde pelo integral cumprimento da sua obrigação, tal como a contraiu; e, por força do plano, apenas fica sub-rogado na posição do credor que subsiste após a homologação deste. O resultado é, assim, análogo ao que se consagra naquele artigo 217.º, n.º 4, do CIRE; e diferente do resulta da aprovação de um mero acordo de recuperação extrajudicial, como o alcançado no quadro do RERE.

VII – Aludiu-se na nota introdutória V ao controvertido problema da admissibilidade da fiança de obrigações naturais. Aceitando-se a mesma, no sentido de que fica sujeita ao disposto neste artigo e, portanto, a obrigação fidejussória também será uma obrigação natural, cf. COSTA (2012: 186) e GOMES (2000: 327 e ss., 330 e s., admitindo, no entanto, quando a fiança seja prestada a solicitação do devedor, a transformação da obrigação natural em civil – 331 e s.).

EVARISTO MENDES


Artigo 632.º

(Invalidade da obrigação principal)

1. A fiança não é válida se o não for a obrigação principal.

2. Sendo, porém, anulada a obrigação principal, por incapacidade ou por falta ou vício da vontade do devedor, nem por isso a fiança deixa de ser válida, se o fiador conhecia a causa da anulabilidade ao tempo em que a fiança foi prestada.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: O artigo 822.º do CC de 1867 dispunha: «É nula a fiança, que recai em obrigação que não seja válida, exceto se a nulidade da obrigação proceder unicamente de incapacidade pessoal. § 1.º Neste último caso a fiança subsiste, ainda que o devedor principal faça rescindir a sua obrigação. § 2.º (...)». Vejam-se também, designadamente, os artigos 2012 do CCfr (hoje, 2289), 1939 do CCit e 492, 2 e 3, do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 63 e ss.

2. Bibliografia nacional selecionada: BASTOS. J. RODRIGUES, CORDEIRO, Notas ao Código Civil, vol. III, Lisboa, 1993, p. 97; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 466-469; TELLES, I. GALVÃO, Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 510 e s.;COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, p. 894; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 336 e ss., 2014: 21 e s., 2015: 318 e s.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 107 e s.; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., com a colaboração de MESQUITA, M. HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 649 e s.; SERRA, A. VAZ, «Algumas questões em matéria de fiança», sep. do BMJ 95 e 96, Lisboa, 1960, pp. 5-99, 32 e ss.; TELLES, I. GALVÃO, «Garantia bancária autónoma», O Direito 120 (1988), pp. 275-293, Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, pp. 510 e s.; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, Almedina, Coimbra, 1997, pp. 483 e s.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 87.

3. Jurisprudência : Acs.TRL de 18.03.1993, CJ 1993/II, pp. 111-113, de 16.10.2012 (3870/07.8TVLSB.L1-7) e de 6.05.2010 (699/2002.L1-2); ac.TRE de 1.06.1999, CJ 1999/III, pp. 270-274.

4. Anotação: I – Encontramos no n.º 1 deste artigo no seguimento do artigo anterior uma outra manifestação do princípio da acessoriedade da fiança afirmado no artigo 627.º, n.º 2: se o negócio constitutivo da obrigação do afiançado é nulo, resulta textualmente do preceito que também o será a fiança. Se o negócio de que provém a obrigação afiançada é anulável e vem a ser anulado, a fiança também não subsistirá. Porém, neste segundo caso, encontramos uma aparente limitação à acessoriedade, no n.º 2.

a) Embora o teor literal da lei sugira que, sendo a obrigação principal nula ou sendo nulo o negócio de que ela provém , inválida (nula) será também a fiança, e nesse sentido aponte a doutrina corrente, importa observar o seguinte: i) há situações em que certa causa de nulidade do negócio principal pode afetar do mesmo modo a fiança (por ex., no caso de uma fiança relativa ao preço numa compra e venda de contrabando, pelo menos tendo o fiador conhecimento desta circunstância); ii) sendo a obrigação fidejussória paralela à obrigação principal, com a sua própria fonte negocial e a sua prestação, a acessoriedade genética em apreço não é uma inevitabilidade lógica, mas uma simples opção legal; iii) como se trata de uma obrigação destinada a reforçar o crédito do credor dessa obrigação principal (art. 627.º, n.º 1), compreende-se que, se esse crédito não existe porque o negócio constitutivo é nulo, a fiança não seja vinculativa ou «operativa» (é este o sentido principal do preceito); mas não está em causa a falta de um requisito intrínseco do negócio fidejussório – o que falta, como observa GOMES (2000: 338 e ss.), é um requisito exterior, cuja ausência determina a sua ineficácia stricto sensu; iv) a absoluta ineficácia do negócio de fiança não é inevitável, podendo este porventura subsistir, vinculando o fiador, se houver lugar à conversão do negócio principal (art. 293.º) ou, em caso de simulação relativa, como respeitante ao eventual crédito decorrente do negócio dissimulado (art. 241.º) ou, ainda, ocorrendo a declaração de nulidade do negócio principal e tendo o credor entregue algo que lhe deva ser restituído pelo devedor (art. 289.º), como garantia de satisfação desse crédito (sobre esta última hipótese, cf. GOMES, 2000: 341 e ss.).

b) Por identidade de razão, embora não se trate de um problema de invalidade, se o negócio constitutivo da obrigação afiançada for ineficaz, por exemplo por falta de poderes de representação ou por falta de um outro requisito externo, ineficazserá também a fiança (cf. o ac.TRE de 1.06.1999). Mais precisamente, sendo o negócio afiançado provisoriamente ineficaz, o fiador goza de um meio de defesa dilatório, nos termos do artigo 642.º, n.º 2 (interpretando este em termos latos veja-se o respetivo comentário). Sendo ou tornando-se a ineficácia definitiva, a situação é muito próxima da nulidade. Note-se, no entanto, que, se alguém afiança, por exemplo, um negócio cambiário concluído por representante sem poderes, o representante fica responsável nos termos do artigo 8.º da LULL, podendo questionar-se se a fiança não deverá cobrir esta responsabilidade.

c) Note-se também que, sendo o negócio de que provém a obrigação afiançada nulo ou (definitivamente) ineficaz, a acessoriedade se projeta em dois planos. Por um lado, o fiador poderia (ou poderá) invocar a nulidade ou a ineficácia como meios de defesa do devedor, nos termos do artigo 637.º; e o mesmo se passa se o negócio for anulável e vier a ser anulado. Por outro lado, elas determinam, pelo artigo em análise, a ineficácia stricto sensu da própria fiança, o que constitui um meio de defesa próprio do fiador. Sendo o negócio fonte da obrigação afiançada anulável, cf. a nota a seguir. Para outras manifestações da acessoriedade, vejam-se as indicações constantes da anotação ao artigo 627.º (nota IV).

II Não é claro como funciona a acessoriedade quando o negócio fonte da obrigação afiançada for anulável. Na verdade, lendo conjugadamente o n.º 1 e o n.º 2, parece que, fora dos casos previstos no n.º 2, se este negócio vier a ser anulado, desaparecendo a obrigação garantida, a fiança é – ou torna-se (cf. o n.º 2) – inválida; e com efeitos retroativos (cf. o art. 289.º). E é também seguro que, enquanto o negócio principal puder ser anulado, a fiança existe, mas o fiador pode recusar o cumprimento da sua obrigação (art. 642.º, n.º 2). Ora, nesta última situação, considerar a fiança também anulável - por o ser o negócio constitutivo da obrigação afiançada - configuraria uma autónoma possibilidade de anulação do negócio fidejussório contrária ao que se extrai do artigo 642.º, n.º 2, e ao fim da garantia (cf., neste sentido, GOMES, 2000: 350). A fiança é de considerar, portanto, válida (não afetada, em virtude da acessoriedade, por semelhante vício). Vindo o negócio fonte da obrigação afiançada a ser anulado, em princípio (ressalvadas as situações do n.º 2), o negócio fidejussório tornar-se-á ineficaz (assim, GOMES, 2000: 349 e ss.); ou passa porventura a cobrir, neste caso, as consequências da anulação, isto é, a obrigação de restituição (cf., ainda, GOMES, 2000: 351). Aludindo a lei à invalidade e dada a retroatividade da anulação (art. 289.º, n.º 1), afigura-se que a ineficácia operará também retroativamente. Com outra leitura, cf., por ex., FARRAJOTA, 2017: 816, nota 1.

III – Decorre do n.º 2 que, se o negócio constitutivo da obrigação afiançada for anulável por incapacidade, falta ou vício de vontade e vier a ser anulado, apesar do seu caráter acessório a fiança subsiste, se o fiador, no momento em que prestou a fiança, conhecia o vício (causa da anulabilidade). Por ex., desconhecia que o devedor principal era menor, interditado ou inabilitado. Note-se que está em causa apenas a anulabilidade. No caso dos vícios da vontade, se o vício for a nulidade (como acontece no caso da simulação do negócio de que decorre a obrigação afiançada – art. 240.º), mesmo que o fiador o conheça, a fiança é «nula» (n.º 1), «rectius», ineficaz, podendo o fiador invocá-lo (cf., por ex., LIMA e VARELA, 1987: 649 e s., nota 2). Em face do teor do preceito, suscita-se a questão de saber se o conhecimento do vício nele considerado é apenas o conhecimento de facto ou se releva também o simples conhecimento normativo (ou desconhecimento negligente).

IV – O n.º 2 suscita, ainda, dúvidas quer quanto ao seu sentido quer quanto ao seu fundamento. De facto: faltando, com a anulação, o crédito garantido e a correspondente obrigação, que garante o fiador afinal? Há exceção ao princípio da acessoriedade? Existem, no essencial, duas leituras distintas. Observa, designadamente TELLES (2002: 510 e s.): «Nestes casos, só aparentemente não funciona a acessoriedade. O que se dá, na realidade, é a conversão da fiança em fiança de conteúdo diverso; o fiador deixa de garantir a obrigação decorrente do ato anulado, para garantir a obrigação decorrente da anulação, nos termos e por força do artigo 289.º do Código Civil» (cf. também 1988: 279). E, tratando-se de conversão legal, não é precisa a verificação do condicionalismo estabelecido na parte final do artigo 293.º (ibidem: 511). Cf., ainda, CORDEIRO, 2015: 468. COSTA (2012: 894 e nota 2), por sua vez, observa que «o fiador como que garante que a obrigação não será anulada», quis responsabilizar-se para o caso de haver ou não a anulação; e, ocorrendo esta, haverá conversão.

Outra leitura é defendida, designadamente, por LIMA e VARELA, que afirmam: «O fiador como que garante, neste caso, também a validade do ato, ou, por outras palavras, como que garante que a anulabilidade não será invocada» (1987: 649, nota 2; cf. também GOMES, 2000: 353). Cf., ainda, VARELA, 1997: 484, VASCONCELOS, 2013: 87 (garantia implícita de que o devedor não viria a anular o negócio fonte da obrigação garantida), LEITÃO, 2016: 108 (o regime destina-se a permitir a execução do património do fiador pelo montante da obrigação principal, não pela restituição resultante da invalidade – nota 276), e, mais desenvolvidamente, GOMES (2000: 353 e ss., e 2014: 21 e s., 2015: 318 e s.).

Quem negue a conversão legal ou considere que o preceito vai além dela, admite, naturalmente, que ele constitui uma exceção ao princípio da acessoriedade (cf., por ex., VARELA: 1997, p. 484) ou que esta não cobre a situação nele contemplada (cf. sobre as posições doutrinais FARRAJOTA, 2017: 816 e s.). Sobre as consequências do eventual cumprimento da obrigação fidejussória, nas relações do fiador com o devedor, cf. GOMES, 2000: 357 e ss., e a anotação ao artigo 644.º (nota I).

V Apesar das dificuldades interpretativas e construtivas assinaladas e da divergência doutrinal acerca do n.º 2, a jurisprudência publicada sobre o tema não é muito significativa. Cf., ainda assim, os acs.TRL de 18.03.1993, de 6.05.2010 e de 16.10.2012, bem como o ac.TRE de 1.06.1999.

EVARISTO MENDES


Artigo 633.º

(Idoneidade do fiador. Reforço da fiança)

1. Se algum devedor estiver obrigado a dar fiador, não é o credor forçado a aceitar quem não tiver capacidade para se obrigar ou não tiver bens suficientes para garantir a obrigação.

2. Se o fiador nomeado mudar de fortuna, de modo que haja risco de insolvência, tem o credor a faculdade de exigir o reforço da fiança.

3. Se o devedor não reforçar a fiança ou não oferecer outra garantia idónea dentro do prazo que lhe for fixado pelo tribunal, tem o credor o direito de exigir o imediato cumprimento da obrigação.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: No CC de 1867, acerca do n.º 1, dispunha o artigo 824.º: «Quando algum devedor é obrigado a dar fiador, não pode o credor ser obrigado a aceitar fiador que não tenha: 1.º Capacidade para obrigar-se; 2.º Bens imóveis livres e desembargados, que cheguem para a segurança da obrigação, e sejam situados na comarca onde o pagamento deve ser feito». Quanto ao n.º 2, determinava o artigo 825.º: «Se o fiador prestado mudar de fortuna, de forma que haja risco de insolvência, poderá o credor exigir outro fiador». Vejam-se também, designadamente, os artigos 2018 e 2019 do CCfr (hoje, 2295), e 1943 do CCit. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 75 e ss., 77 e ss.

2. Bibliografia nacional selecionada: ABREU, J. M. COUTINHO DE, Curso de Direito Comercial, II – Das Sociedades,, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, 188-194; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 474-476 (n.º 229); COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, p. 8982 e s.; CUNHA, P. OLAVO, Direito das Sociedades Comerciais, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 82-84; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 566 e ss.; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., com a colaboração de MESQUITA, M. HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 650 e s.; MARTINS, A. SOVERAL, CSC em Comentário, I, coord. C. Abreu, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, anotação 3 ao artigo 6.º, pp. 127-133; SANTOS, FILIPE CASSIANO, «O art. 6º do CSC, a capacidade jurídica da sociedade e a prestação de garantias a dívidas de outros sujeitos em conformidade com o interesse social e em caso de relação de domínio ou de grupo», III Congresso DSR, Almedina, 2014, pp. 527-556; SOUSA, ANTÓNIO PAIS DE, Da incapacidade jurídica dos menores, interditos e inabilitados, no âmbito do Código Civil, Almedina, Coimbra, 1971, pp. 85 e s.; VARELA, ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 49 e ss.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 94 e s.

3. Jurisprudência : Acs.STJ de 21.9.2000 (2147/00), 23.10.2002 (04A323), de 13.5.2003 (03A318), de 17.6.2004 (04B1773), de 30.9.2004 (04S2540), de 7.10.2010 (291/04.8TBPRD-E.P1.S1), de 28.5.2013 (300/04.0TVPRT-A.P1.S1), de 26.9.2013 (213/08.7TJVNF-A.P1.S1) e de 16.11.2017 (1721/14.6T8VNG-E.P1.S1); ac.TRC de 2.08.2013 (816/12.5TBTMR-B.C1); acs.STA de 7.06.2016 (0728/16) e de 27.09.2017 (0965/17); e ac.TCAS de 29.06.2017 (243/17.8BELRS).

4. Anotação: I – Em geral, para poder assegurar ao credor a satisfação do crédito (cf. art. 627.º, n.º 1), o fiador precisa de ter: i) pelo menos capacidade de gozo para se obrigar fidejussoriamente; ii) rendimentos e ou bens suficientes utilizáveis, voluntária ou coercivamente, para o efeito. Pode, em especial, o devedor - por contrato com o credor ou outra fonte – estar obrigado a dar fiador. Neste caso, o n.º 1 do artigo em análise parece também afirmar que o fiador tem que cumprir estes requisitos, de que depende a prestação de uma garantia efetiva, não apenas formal, como de resto já resultaria das regras gerais da boa fé (cf. CORDEIRO, 2015: 474 e 476). Caso contrário, o dever de conseguir fiador não será cumprido; devendo notar-se que, faltando a prestação da fiança devida, se a falta for imputável ao devedor, a obrigação principal torna-se imediatamente exigível, nos termos do artigo 780.º, n.º 1, parte final (cf. também LIMA e VARELA, 1987: 650, nota 1). Ambos os requisitos carecem, porém, de ser esclarecidos (cf. «infra»).

Se, supervenientemente, a fortuna do fiador vier a deteriorar-se, a ponto de correr o risco de insolvência, a fiança é considerada insuficiente e o credor pode exigir o seu reforço (n.º 2). Este reforço pode consistir em adicionar novo fiador ou outra garantia ou em substituir a que se tornou insuficiente por uma nova (cf. o n.º 3); e pode ser exigido pedindo o credor ao tribunal que fixe ao devedor um prazo para este reforçar a fiança ou oferecer outra garantia idónea. Transcorrido este prazo sem que tal suceda, o credor tem a faculdade de exigir o imediato cumprimento da obrigação principal (n.º 3).

II Em geral, para alguém se constituir fiador, precisa de ter capacidade jurídica; pelo menos capacidade de gozo. Importa atentar, portanto, nas existentes restrições à mesma. Quanto às pessoas singulares, sendo o fiador menor de idade, decorre dos artigos 1889.º, n.º 1, al. f), e 1938.º, n.º 1, al. a), que o respetivo representante legal apenas pode constituir a fiança com autorização do tribunal. Acerca dos demais incapazes, cf. também os artigos 139.º e 156.º No que respeita às pessoas coletivas, importa ter presente, em geral, o respetivo princípio da especialidade (art. 160.º) e, em particular, o artigo 6.º, n.º 3, do CSC, aplicável não apenas às sociedades de direito mercantil, mas também, subsidiariamente, às cooperativas, aos ACE e aos AEIE (arts. 9.º do CCoop, 20.º do DL 430/73 e 12.º do DL 148/90). Dispõe-se nele: «Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais [incluindo fianças] a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo». Sobre o assunto, cf., com mais indicações, MARTINS, 2017: 127 e ss., ABREU, 2015: 188 e ss., SANTOS, 2014: 527 e ss., CUNHA, 2016: 82 e ss., e GOMES, 2000: 566 e ss. Na jurisprudência, salienta-se a controvertida questão de saber quem tem o ónus de provar que a prestação da garantia corresponde a um justificado interesse próprio da sociedade que a presta.

a) Maioritariamente, entende-se que só estão abrangidas por este artigo 6.º, n.º 3, do CSC as garantias prestadas a título gratuito, aquelas que se mostram, por esse facto, contrárias ao fim lucrativo da sociedade e, portanto, fora da sua capacidade de gozo. Existem, no entanto, posições minoritárias em sentido diferente, defendendo que a primeira parte do artigo 6.º, n.º 3, contém uma regra autónoma proibitiva das garantias por dívidas alheias – incluindo as prestadas a título oneroso – que deverão ter tratamento idêntico às prestadas a título gratuito (cf. GOMES,2000: 574, e SANTOS , 2014: 540). Maioritariamente também, entende-se que a apreciação do justificado interesse próprio deve ser feita em termos objetivos. No caso das relações de domínio, existe divisão na doutrina e na jurisprudência acerca da questão de saber se a garante pode ser a sociedade dominada. No sentido de que não pode, com mais indicações, cf., por ex., o ac.TRP de 15.12.2016 e o ac.TRE 9.3.2017. Restritivo, ainda, no que respeita às relações de grupo, cf. ABREU, 2015: 190 e s.

b) No que toca ao problema do ónus da prova da existência do justificado interesse próprio, verifica-se uma nítida clivagem entre a doutrina maioritária (entendendo, em face das regras do direito probatório – cf. o art. 342.º - ser ao credor, que pretende a validade da garantia, que compete essa prova) e a jurisprudência maioritária (que defende ser a sociedade garante que, para invalidar a garantia, terá de provar que a mesma foi prestada sem esse interesse). Acerca desta última, cf., designadamente: os acs.STJ de 21.9.2000, de 13.5.2003, de 17.6.2004, de 30.9.2004, de 7.10.2010, de 28.5.2013 e de 26.9.2013. No ac.STJ de 16.11.2017, reafirma-se esta posição, com diferenciações.

Importa observar que, em termos estritamente lógicos, sendo a garantia (gratuita) em regra inválida («considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias»), cabe provar a quem pretende acioná-la (o credor) que se verifica alguma das exceções legais capazes de a validar – ou seja, o justificado interesse próprio ou a relação de domínio ou de grupo (art. 341.º, n.º 1). Mas, para além de se tratar de um resultado suscetível de ser considerado anómalo, na medida em que o credor terá em geral grande dificuldade em fazer essa prova, dado tratar-se de uma matéria que em boa medida respeita à esfera privada da sociedade, sempre haverá uma presunção hominis de que, se a sociedade prestou a garantia, é porque tinha interesse nisso; competindo-lhe demonstrar que, no caso, não foi assim (cf., quanto à presunção hominis, embora com diferente leitura das regras de direito probatório, GOMES, 2000: 576 e s.). Acresce a possível invocação contra esse resultado do princípio da boa fé e da tutela da confiança no tráfico (cf., ainda, GOMES, ibidem). Na verdade, a proteção abstrata da sociedade contra os seus próprios atos faz pouco sentido e uma tal proteção da generalidade dos credores ou de quem mais depende dela, subjacente ao artigo 6.º, n.º 3, do CSC, não deve sacrificar injustificadamente as razoáveis expectativas dos concretos credores beneficiários das garantias e a correspondente segurança do tráfico jurídico real e corrente em que a sociedade participa.

c) Acerca das garantias prestadas pelo Estado e outras pessoas coletivas públicas, dispõe-se, designadamente, no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 112/97: «A concessão de garantias pessoais reveste-se de caráter excecional, fundamenta-se em manifesto interesse para a economia nacional e faz-se com respeito pelo princípio da igualdade, pelas regras de concorrência nacionais e comunitárias e em obediência ao disposto na presente lei.» Veja-se a nota VII ao artigo 628.º

III No artigo em análise, contempla-se a situação especial de o devedor estar obrigado a dar fiador, dispondo-se no n.º 1 que o credor não é forçado a aceitar quem não tiver capacidade para se obrigar. Para não se tratar da mera repetição de uma regra geral, afigura-se que a capacidade para se obrigar compreende aqui a capacidade jurídica de gozo e de exercício. O credor pode, portanto, no caso dos incapazes, aceitar a prestação de fiança através de representante legal, com autorização do tribunal, mas não tem que o fazer: ao menos em princípio, ele pode exigir que o fiador seja uma pessoa com capacidade jurídica plena. O tema presta-se, no entanto, a discussão. Considerando que a ideia da lei é de que o devedor não pode prestar uma fiança anulável por falta de capacidade, cf. LIMA e VARELA, 1987: 650. No sentido de que os menores podem prestar fiança dentro dos limites do artigo 127.º, n.º 1, al. a), cf. SOUSA, 1971: 86.

IV O fiador haverá, ainda, de possuir bens suficientes para assegurar a satisfação do crédito (concreta capacidade patrimonial, conferida pelo respetivo ativo); caso contrário, a função de garantia da fiança sairia frustrada (cf., por ex, VASCONCELOS, 2013: 94). Apesar do estabelecido no n.º 2, a suficiência a que se refere o n.º 1 não deve aferir-se tendo em conta apenas o estado do património do fiador no momento em que presta a fiança. Importa fazer alguma análise prospetiva, nesse momento. Isto é, não basta que o fiador tenha boa fortuna no momento em que presta a fiança: se tem meios bastantes nessa data, mas as perspetivas são de os não vir a ter no vencimento da obrigação principal ou em que a fiança será acionável, a garantia será insuficiente e o credor não tem que se contentar com ela.

V Pode o requisito da suficiência de bens estar preenchido no momento em que a fiança é prestada e, no entanto, vir a desaparecer por uma deterioração superveniente da fortuna do fiador. Se essa deterioração é grave, ao ponto de haver o risco de insolvência do fiador, dispõe o n.º 2 que o credor tem a faculdade de exigir o reforço da fiança. Por conseguinte, relaciona-se aqui a insuficiência de bens com o risco de insolvência do fiador. Considerando que este risco de insolvência deve ser interpretado de forma lata, favorável ao credor, cf. VASCONCELOS, 2013: 94. Como observa, ainda, o mesmo autor (2013: 95), o risco de diminuição da garantia corre por conta do devedor, tendo este que a reforçar ou substituir, mesmo que a diminuição não lhe seja imputável.

a) Nada impede que o credor solicite, prévia e extrajudicialmente, ao devedor o reforço da fiança devido; e é natural que o faça, uma vez que, desse modo, a situação de insuficiência da garantia poderá ser colmatada sem mais diligências. Se a diligência não surtir efeito (ou se o credor entender não a efetuar), tem o mesmo credor a faculdade de pedir ao tribunal que fixe ao devedor um prazo para este reforçar a fiança ou oferecer outra garantia idónea. Transcorrido este prazo sem que tal suceda, o credor pode exigir o imediato cumprimento da obrigação principal (n.º 3).

b) Quanto à idoneidade da garantia, importa ter em conta os artigos 623.º e 624.º (cf. LIMA e VARELA, 1987: 651). Relevante é também a jurisprudência dos tribunais administrativos, mormente a respeito da suficiência patrimonial do devedor. Cf., por ex., os acs.STA de 27.09.2017 e de 7.06.2016 e o ac.TCAS de 29.06.2017.

VI O n.º 2 é de aplicar sempre que a fiança faça parte da economia da operação garantida acordada pelas partes. Com efeito, pode estabelecer-se uma ligação com o n.º 1, aplicando-o quando o devedor estiver obrigado, perante o credor, a dar fiador; e não o aplicando quando o fiador tiver sido constituído voluntariamente. Todavia, pode também suceder que a prestação da fiança haja sido um dos termos ou condições acordados no âmbito da transação principal, surgindo como um requisito para a conclusão desta (nos termos em que ela se deu); isto é, o credor pode ter de alguma forma condicionado a conclusão da transação - ou a sua conclusão nos termos em que ela ocorreu - à prestação de fiança idónea, fiança essa efetivamente prestada. E o devedor também pode ter oferecido fiador para obter melhores condições negociais. Nestes casos, faz igualmente sentido aplicar o n.º 2 e, consequentemente, o n.º 3. Pode, no entanto, discutir-se se o reforço é exigível quando o fiador tenha resultado de escolha do credor ou a fiança tenha sido prestada sem o consentimento do devedor (cf. SERRA, 1957: 78 e s., considerando não o ser, e o n.º 5 do art. 8.º, que não passou para o Código). Sobre o reforço, cf., ainda, CORDEIRO, 2015: 476.

Tal como a falta de prestação da fiança (nota I), também a sua insuficiência não colmatada configura um caso especial de perda do benefício do prazo relativo à obrigação garantida (cf., em geral, o art. 780.º, n.º 1). A obrigação a termo torna-se então uma obrigação pura, sendo o seu cumprimento imediatamente exigível, mediante interpelação do devedor (cf. o art. 805.º, n.º 1).

b) Confrontando as regras dos n.ºs 2 e 3 do preceito em análise com a disposição geral do artigo 780.º, VARELA (1997: 50 e s.) conclui: i) se a diminuição da garantia dada pela fiança for imputável ao devedor (hipótese considerada pouco provável), o credor pode exigir o cumprimento imediato da obrigação ou, se preferir, a substituição ou o reforço da mesma (art. 780.º); ii) criando a mudança de fortuna do fiador um justificado receio de insolvência, se essa diminuição for imputável ao fiador ou a terceiro, ou for devia a caso fortuito, «o credor pode exigir o reforço da fiança ou outra garantia idónea e, subsidiariamente , o cumprimento imediato da obrigação».

VII – Acerca da insolvência declarada e da eventual prevenção desta mediante um plano de recuperação aprovado no âmbito de um PER, vejam-se as notas V e VI ao artigo 631.º Acerca da perda do benefício do prazo, cf. também a nota III ao artigo 634.º

EVARISTO MENDES


SUBSECÇÃO II

Relações entre o credor e o fiador

Artigo 634.º

(Obrigação do fiador)

A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: Vejam-se, designadamente, o § 767 do BGB e os artigos 1942 do CCit e 499 do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 79 e ss.

2. Bibliografia nacional selecionada: ABREU, J. M. COUTINHO, CSC em Comentário, n.º 7, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 266-270, Anotação ao artigo 501.º; ALMEIDA, C. FERREIRA, Contratos III, Contratos, 2013, pp. 197 e ss.; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 489 e s.; BASTOS, M. BRITO, «Deveres acessórios de informação - em especial, deveres de informação do credor perante o fiador», RDS V (2013), 1 e 2, pp. 181-281 (cit. M. Bastos); CAMPOS, ISABEL M., «A posição dos garantes no âmbito de um plano especial de revitalização», CDP 46 (2014), 57-67; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, Direito das Obrigações. Garantias, Almedina, 2015, pp. 461 e ss.; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, p. 889; FARRAJOTA, JOANA, Código Civil Anotado, coord. de ANA PRATA, Almedina, Coimbra, 2017, I, pp. 818, 821 e 823; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 116, 136 e ss., 291 e ss., 601 e ss., 941 e ss., «A fiança no quadro das garantias pessoais. Aspetos de regime», Estudos de Direito das Garantias, I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 7-48, «A sociedade com domínio total como garante. Breves notas», Estudos de Direito das Garantias, vol. II, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 255-274, «Sobre os poderes dos credores contra os fiadores no âmbito de aplicação do CIRE. Breves notas», III Congresso de Direito da Insolvência, coord. CATARINA SERRA, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 313-341; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 109; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., com a colaboração de MESQUITA, M. HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 651 e s.; PRATA, ANA, Código Civil Anotado, Almedina, Coimbra, 2017, I, anot. ao art. 780.º, p. 979; PROENÇA, J. C. BRANDÃO, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, 2ª ed., UCE, Porto, 2017, pp. 106-112, 111 e s.; SERRA, A. VAZ, «Algumas questões em matéria de fiança», sep. do BMJ 95 e 96, Lisboa, 1960, pp. 5-99, 17 e ss.; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, p. 488, nota 1.

3. Jurisprudência : Acs.STJ de 27.04.1999, CJ-STJ 1999/ II, pp. 64-66, de 4.12.2003 (03B3909), de 12.10.2006 (06B3353), de 1.07.2008 (08A1583), de 21.01.2014 (6466/05.5TVLSB.L1.S1), de 13.11.2014 (4103/12.0TBSXL-A.L1.S1) e de 31.01.2017 (519/10.5TYLSB-CE.L1.S1); acs.TRL de 4.07.1991, CJ 1991/IV, pp. 167-169, de 3.11.2005, CJ 2005/V, pp. 79 e s., de 12.10.2010 (8183/09.8T2SNT.L1.1), de 21.02.2013 (52506/12.2YIPRT.L1-2), de 7.10.2014 (591/09..0YXLSB.L1-1), de 24.09.2015 (2411-12.0TVLSB.L1-6) e de 12.09.2017 (6691/11.0TBVFX-A.L1-1); acs. TRP de 14.02.2000 (9951450), de 24.09.2007 (0754278) e de 2.07.2013 (2262/12.1YVPRT-A.P1); acs.TRC de 24.05.2011, CJ 2011/IV, pp. 23-26, de 7.03.2012 (1959/11.8T2OVR-A.C), de 8.02.2013 (816/12.5TBTMR-B.C1), de 06.07.2016 (9499/15.0T8CBR.C1), de 12.12.2017 (430/15.3T8MGR.C1) e de 23.01.2018 (954/13.7TBLSA-C.C1).

4. Anotação: I O presente artigo ocupa-se do âmbito natural da fiança. Salvo quando e na medida em que o fiador tenha usado da sua faculdade de limitar os termos da garantia, cobrindo apenas uma parte da obrigação garantida ou estipulando condições menos onerosas (art. 631.º, n.º 1), dispõe este preceito, na 1ª parte, que o conteúdo da sua obrigação se afere pelo da obrigação afiançada. Quer dizer, embora a obrigação do fiador seja distinta da obrigação afiançada, em princípio mede-se por esta (nas palavras de SERRA, 1957: 79, o fiador deve «aquilo que o devedor principal dever»). Trata-se, ainda, de uma manifestação da acessoriedade que caracteriza o instituto (art. 627.º, n.º 2).

Na 2.ª parte, esclarece-se – ou, segundo outra perspetiva, acrescenta-se (CORDEIRO, 2015:440, 462, considera estarmos perante um alargamento do objeto da fiança, embora possa ver-se, ainda, como uma manifestação da acessoriedade) - que, havendo ulteriores consequências resultantes de mora ou culpa do devedor – isto é, uma pena convencional (cf. os arts. 810.º e ss.) ou a obrigação de reparar os danos culposamente causados (cf. os arts. 798.º e s.), incluindo lucros cessantes (cf., por ex., LIMA e VARELA, 1987: 651 e s., nota 1, e VARELA, 1997: 488, nota 1) –, elas também estão cobertas pela fiança. Nas palavras de SERRA (1957: 79), «uma vez que o fiador responde pelo cumprimento pontual, responde pelos juros de mora, como responde pela indemnização por impossibilidade culposa (do devedor) da prestação, ou até por impossibilidade não culposa, se o devedor responder por caso fortuito». Cf. também LIMA e VARELA, 1987: 652, e LEITÃO, 2016: 109. Aqui deve ter-se presente, no entanto, que, se o devedor principal perder o benefício do prazo (cf. arts. 780.º e 781.º), tal perda não se estende ou comunica ao fiador (art. 782.º) (cf., ainda, LIMA e VARELA, 1987: 652, LEITÃO, 2016: 109, e a nota III). Verificando-se a insolvência do devedor afiançado, cf. a nota V.

a) O preceito vale, sem mais, para a fiança de obrigação pecuniária. Não sendo esse o caso, tornam-se necessárias adaptações e justificam-se considerações adicionais (cf. a nota VI e as notas introdutórias IV e XVI).

b) Na jurisprudência, existe um contencioso significativo envolvendo a fiança relativa a contratos de arrendamento. Surge aí tratada, designadamente, a questão de saber se a fiança também abarca a responsabilidade extracontratual relacionada com o locado. Afirmou-se tal responsabilidade no ac.TRP de 24.09.2007 (mas pode questionar-se se a responsabilidade em causa era realmente extracontratual). Negou-se a mesma no ac.TRL de 12.10.2010. Em geral, cf., ainda, entre outros, os acs.TRL de 21.02.2013 e de 7.10.2014 e os acs.TRP de 14.02.2000 e de 2.07.2013.

II – Ainda no que se refere à 2.ª parte do preceito,há um aspeto adicional a assinalar: para além das consequências legais da mora ou culpa do devedor (juros de mora, indemnizações conexas com a prestação principal, etc.), o preceito português, quanto ao mais inspirado no § 767 do BGB, estende a fiança também a eventuais consequências contratuais, como a cláusula penal. Ora, como observa CORDEIRO (2015: 462), as consequências legais são cognoscíveis, mas não as contratuais. Daí que, na linha de GOMES (2000: 608 e s.), a respeito da cláusula penal, entenda que as consequências contratuais, quando mais gravosas do que as legais, devem considerar-se abrangidas pela exigência de declaração de vontade expressa (art. 628.º, n.º 1), sob pena de as finalidades da exigência de forma saírem frustradas (pp. 462 e s.).

III – Nas obrigações a termo, ocorrendo uma perda do benefício do prazo, nos termos dos artigos 780.º e 781.º - salientando-se no primeiro as situações de insolvência de facto do devedor principal (a insolvência declarada encontra-se abrangida, em especial, pelo art. 91.º, n.º 1, do CIRE) -, o credor pode exigir imediatamente o crédito, provocando o seu vencimento antecipado; discutindo-se, no caso do artigo 781.º, se o vencimento é automático (cf., por ex., PROENÇA, 2017: 106 e ss., PRATA, 2017: 979 e s., GOMES, 2015: 328 e s., bem como a anotação a estes preceitos). Todavia, por força do artigo 782.º, a perda do benefício não se estende ao fiador (cf. LIMA e VARELA, 1987: 652, nota 4, LEITÃO, 2016: 109, citando o ac.TRC de 24.05.2011, VARELA, 1997: 488, nota 1, FARRAJOTA, 2017:818, considerando a norma um desvio ao artigo em análise; afirmando também que a perda do benefício do prazo tem caráter pessoal, não se comunicando ao fiador, cf. PROENÇA, 2017: 111 e s.); discutindo-se se, quando o credor provoca o vencimento, esta imunidade subsiste ou não (cf. GOMES, 2015: 329 e 340).

Esta última questão também se coloca quando o vencimento se produz ope legis. É o que sucede com a declaração de insolvência do devedor afiançado, por força do artigo 91.º, n.º 1, do CIRE. Quem entenda que o vencimento provocado pelo credor afasta a aplicação do artigo 782.º, o mesmo concluirá neste caso. Mas é possível defender a não imunidade do fiador quando a insolvência já tenha sido declarada, sem afirmar o mesmo fora do contexto insolvencial. GOMES sustenta a subsistência do artigo 782.º mesmo no caso de insolvência declarada (2015: 328 e s.) e, portanto, contesta também que, sendo aprovado um plano de recuperação de um devedor em situação económica difícil no quadro de um PER (arts. 17.º-A e ss., do CIRE), o fiador seja afetado pela perda do benefício do prazo, já que nem se aplica o artigo 91.º, n.º 1, do CIRE, nem tão pouco se verifica a situação de insolvência a que se refere o artigo 780.º (2015: 338 e ss., contestando a posição de CAMPOS, 2014: 57 e ss.). Nesta tese, o fiador apenas é atingido pelo artigo 91.º, n.º 1, do CIRE se for também ele declarado insolvente. E, em tal caso, não fará sentido aplicar o artigo 782.º Cf., no entanto, além de CAMPOS, PRATA, 2017: 979 (anot. ao art. 780). Nos trabalhos preparatórios, no sentido da conservação do benefício do prazo, cf. SERRA, 1957: 84. Na jurisprudência, cf., por ex., os acs.TRC de 7.03.2012 e de 23.01.2018, bem como o comentário ao artigo 640.º

IV Decidiu-se no ac.TRC de 8.02.2013 que a acessoriedade implica que a obrigação do fiador não possa considerar-se vencida sem estar vencida a obrigação principal. Mas coloca-se, igualmente, a questão de saber se, vencida a obrigação principal, por interpelação realizada pelo credor ou pelo decurso do prazo (estipulado ou fixado pelo tribunal) (cf. o art. 777.º e, quanto à mora, o art. 805.º), na falta de regulação do assunto no negócio de fiança, esse vencimento acarreta, sem mais, o vencimento da obrigação fidejussória (com as inerentes consequências); e, sendo este o caso, sobretudo na falta de prazo, se há um «dever» de avisar o fiador. De algum modo ligada à questão do vencimento existe ainda uma outra, consistente em saber se o não cumprimento da obrigação principal é pressuposto ou condição de exigibilidade da obrigação fidejussória. Ambas são controvertidas, embora a primeira mereça resposta afirmativa (tal como a relativa ao aviso) e a última resposta negativa.

a) A respeito da primeira questão, cabe observar o que se segue. Literalmente, o preceito em análise apenas regula em que termos o fiador se obriga; não quando ou dentro de que pressupostos pode ser chamado a cumprir. Porém, como se trata de um afloramento do princípio da acessoriedade, consagrado no artigo 627.º, n.º 2, numa perspetiva integrada deste pode afirmar-se que, se do negócio de fiança não resultar qualquer limitação (art. 631.º, n.º 1), uma vez vencida a obrigação principal e desencadeadas as consequências da mora ou de outro comportamento culposo do devedor, em princípio, também se vence a obrigação do fiador, com iguais consequências. Como observa GOMES (2004: 29 e s.), se do negócio de fiança não resultar outra coisa, «o vencimento da obrigação principal projeta-se - por via da acessoriedade - na obrigação de fiança», isto é, após o vencimento, conhecido do fiador, o credor pode escolher entre o devedor e o fiador, porque a obrigação deste também se encontra vencida (cf. ainda, mais desenvolvidamente, 2000: 941 e ss.). Vejam-se também LIMA e VARELA, 1987: 652, nota 3, VARELA, 1997: 488, nota 1, e, entre outros, os acs.STJ de 1.07.2008 e de 4.12.2003 e o ac.TRL de 4.07.1991. Porém, noutro sentido, cf., designadamente, o ac.TRL de 24.09.2015 e, antes dele, o ac.TRL de 3.11.2005, citando o ac.STJ de 20.04.1999.

b) Quanto ao dever ou ónus de aviso, a cargo do credor, quando o fiador careça de ser informado acerca do vencimento da obrigação principal, observa GOMES (2000: 941 e ss., 946 e ss., 959 e ss.) que, nas obrigações puras, nas obrigações sujeitas a termo incerto e nas obrigações com termo certo de que é beneficiário único o credor, este tem o ónus, derivado da boa fé, de informar o fiador da ocorrência do vencimento, sob pena de, não o fazendo, ele lhe poder opor a inexigibilidade das consequências do não cumprimento pontual na data do vencimento; podendo acrescer a tal ónus um dever de informação do devedor. Cf., ainda, mais em geral, sem se pronunciar sobre o problema específico em análise, M. BASTOS, 2013: 238 e ss. Afirmando também a existência de deveres de aviso, mas indo mais longe, cf. o citado ac.STJ de 20.04.1999 (dever de aviso ao fiador para cumprir logo que o devedor o não faça), bem como o ac.TRC de 16.04.2002 e o ac.TRL de 12.09.2017.

c) No que toca à questão de saber se o não cumprimento pelo devedor principal é um requisito ou condição de exigibilidade da obrigação fidejussória (ou até um pressuposto da mesma), competindo ao credor a sua prova, de algum modo na linha do artigo 818.º do CC de 1867, ALMEIDA (2013: 197 e s.) entende que sim, e igual entendimento tem FARRAJOTA (2017: 821, nota 5 ao art. 638.º, e 823, nota 2 ao art. 640.º, ressalvando a fiança à primeira solicitação); ambos com fundamento na acessoriedade da fiança. Cf. também, designadamente, o ac.TRC de 16.04.2002 (afirmando que a responsabilidade do fiador é «na medida da do devedor principal e só pode ser exigida quando este não cumpra a obrigação a que se vinculou»). Todavia, cabe observar que da acessoriedade não só não decorre que o incumprimento da obrigação principal seja um requisito de exigibilidade da obrigação fidejussória, como dela pode inferir-se o oposto: na falta de estipulação acerca do vencimento da obrigação fidejussória, como observa GOMES (2000: 979, 2004: 29 e s.), «o vencimento da obrigação principal projeta-se no da obrigação fidejussória» (para maior desenvolvimento, cf. 2000: 977 e ss.). Acerca da distinta situação prevista no artigo 501.º do CSC, cf. por ex., GOMES, 2010: 255 e ss., e ABREU, 2014: 268 e ss., com mais indicações.

V – Em caso de insolvência do devedor afiançado, importa ter presente o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, que dispõe: «As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.» Decorre daqui que, supervenientemente, verificando-se o risco coberto pela fiança, a obrigação fidejussória pode conservar-se como foi constituída, apesar de a obrigação afiançada ser reduzida ou de outro modo modificada num sentido favorável ao devedor principal e, inclusive, de ser extinta. Embora se possa ver aqui uma exceção ao princípio da acessoriedade, o dispositivo insolvencial também é suscetível de se ver como uma concretização do fim de garantia que igualmente caracteriza a fiança (sobre a importância deste, cf. GOMES, 2015: 317 e ss., 322 e s., 2000: 106 e ss., 396 e s., 578 e ss., 714 e ss., 744 e s., e a nota I ao art. 637.º). Acerca do assunto, veja-se a anotação ao artigo 631.º (notas V e VI). No sentido de que aquele artigo 217.º, n.º 4, do CIRE se aplica à fiança, cf. o ac.TRC de 12.12.2017.

VI Assinalou-se nas notas introdutórias que é possível discutir se a fiança – com a extensão que se lhe reconhece, abarcando obrigações pecuniárias e não pecuniárias, incluindo prestações de facto infungível – é um instituto unitário, com um conteúdo moldado pelo da obrigação garantida, como dispõe o presente artigo (cf., em especial a nota XVI). Na verdade, se a obrigação garantida tem por objeto, designadamente, uma prestação de facto infungível, o conteúdo da obrigação fideijussória não coincide com o desta obrigação. Para conservar a unidade do instituto, pode, em tais casos, afirmar-se que o fiador não garante o dever primário a que está adstrito o devedor principal, mas a obrigação secundária de indemnizar. Sobre o assunto, observou SERRA (1957: 60): «qualquer obrigação, de dar, de fazer ou de não fazer, seja qual for a sua fonte, pode ser assegurada por fiança. É claro que, se a obrigação não tiver objeto fungível, não pode a obrigação do fiador consistir, sem o acordo do credor, na prática do facto devido pelo devedor principal, mas sim em prestar indemnização. Não se dando este caso, pode o fiador cumprir, prestando ao credor a coisa ou o facto devidos pelo devedor principal». Na mesma linha, cf. também GOMES (2000: 137 e ss., 140 e ss., 291 e ss., 295 e ss., 2004: 27 e s., 2010: 40), considerando que, quando a prestação principal não tiver caráter pecuniário, mormente se for uma prestação de facto infungível, o normal será a prestação fidejussória ter natureza pecuniária, por a garantia ser prestada não em função do dever de prestar do devedor, mas em função do eventual dever de indemnizar. Isto permite a aplicação direta do regime legal, embora com as necessárias adaptações. Mas não é de excluir uma conceção diferente, distinguindo a comum fiança obrigacional da fiança garantia de resultado tendo naturalmente associado um eventual dever de indemnizar em caso de frustração do resultado garantido. Em especial sobre a fideiussio indemnitatis, cf. GOMES, 2000: 149 e ss. Acerca dos casos, também especiais, da fiança de obrigações condicionais ou futuras, cf. SERRA, 1974/75: 255, GOMES, 2000: 300 e ss.

EVARISTO MENDES


Artigo 635.º

(Caso julgado)

1. O caso julgado entre credor e devedor não é oponível ao fiador, mas a este é lícito invocá-lo em seu benefício, salvo se respeitar a circunstâncias pessoais do devedor que não excluam a responsabilidade do fiador.

2. O caso julgado entre credor e fiador aproveita ao devedor, desde que respeite à obrigação principal, mas não o prejudica o caso julgado desfavorável.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: No CC de 1867, havia disposições sobre a matéria nos artigos 2531.º, n.º 3.º, e 2532.º. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 82 e s., 245.

2. Bibliografia nacional: CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 476 e s.; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, p. 898; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 997 e s., 1028 e ss.; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 652 e s.; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 495 e s.

3. Anotação: I O caso julgado (cf. o art. 628.º do CPC) ocorrido entre o credor e o devedor não é oponível ao fiador (n.º 1, 1ª parte), uma vez que este não interveio no processo a que o caso julgado se refere – e, portanto, não pôde aí exercer o contraditório – e porque a solução oposta se prestaria a conluios desfavoráveis ao fiador (cf., por ex., VARELA, 1997: 495 e s.). Mas o fiador pode, via de regra, invocar o caso julgado em seu benefício, aproveitando da defesa produzida no processo pelo devedor principal. Só o não poderá fazer se o caso julgado respeitar a circunstâncias ou meios de defesa pessoais deste devedor que não excluam a responsabilidade do fiador (n.º 1, 2.ª parte), ou seja, se o respetivo fundamento respeitar pessoalmente ao devedor, de tal modo que não seja invocável pelo fiador (cf., por ex., VARELA, 1997: 496).

a) No sentido de que se compreendem nesta ressalva os casos de anulação do negócio principal pelos motivos e nas condições indicados no artigo 632.º, n.º 2 (incapacidade, erro, etc.), cf. SERRA, 1957: 245, e LIMA e VARELA, 1987: 653. Por exemplo, se o obrigado principal é um menor e o fiador tinha conhecimento disso, vindo o negócio constitutivo da obrigação a ser anulado, a fiança é, apesar da anulação, válida e eficaz (art. 632.º, n.º 2), não aproveitando a sentença de anulação ao fiador.

b) Regras análogas existem para os codevedores solidários. Cf. o comentário ao artigo 522.º e GOMES, 2000: 998.

II Semelhantemente, havendo sentença com trânsito em julgado entre o credor e o fiador, favorável ao primeiro, ainda que respeite à obrigação principal ele não a pode invocar contra o devedor, que não interveio no processo e, portanto, não pôde aí defender-se (n.º 2, 2.ª parte). Sendo o caso julgado relativo à obrigação principal e desfavorável ao credor, o devedor pode invocá-lo em seu benefício (n.º 2, 1ª parte).

EVARISTO MENDES


Artigo 636.º

(Prescrição: interrupção, suspensão e renúncia)

1. A interrupção da prescrição relativamente ao devedor não produz efeito contra o fiador, nem a interrupção relativa a este tem eficácia contra aquele; mas, se o credor interromper a prescrição contra o devedor e der conhecimento do facto ao fiador, considera-se a prescrição interrompida contra este na data da comunicação.

2. A suspensão da prescrição relativamente ao devedor não produz efeito em relação ao fiador, nem a suspensão relativa a este se repercute naquele.

3. A renúncia à prescrição por parte de um dos obrigados também não produz efeito relativamente ao outro.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: O artigo 556.º do CC de 1867 dispunha: «A interrupção da prescrição contra o devedor principal tem iguais efeitos contra o fiador». Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 85 e s., 240 e ss.

2. Bibliografia nacional: CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 477-480; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, p. 898; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 998 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 109 e s.; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 653 e s.; SERRA, VAZ, Anotação ao Ac.STJ de 2.11.1973, RLJ 107, 1974/75, pp. 254-262; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 496 e s.

3. Jurisprudência : Ac.STJ de 2.11.1973, RLJ 107 (1974/75), pp. 252-254, com anotação de SERRA, VAZ.

4. Anotação: I Como manifestação da respetiva acessoriedade e/ou do fim de garantia (cf. o art. 627.º), a fiança extingue-se quando a obrigação principal se extinguir (art. 651.º). Ocorrendo a prescrição da obrigação principal (arts. 300.º e ss.), a situação é distinta: esta obrigação deixa de poder ser exigida em tribunal (art. 304.º, n.º 1) (sendo aqui indiferente saber se se converte ou não numa obrigação natural – cfr. o n.º 2 do art. 304.º e o art. 403.º); o que constitui também um meio de defesa invocável pelo fiador (art. 637.º, n.º 1). Mas a fiança, sendo uma obrigação paralela à obrigação afiançada, que lhe serve de referência (art. 634.º) (cf. a nota introdutória XVI), é igualmente suscetível de prescrição. Por conseguinte, há dois prazos de prescrição, um relativo à obrigação principal e o outro relativo à obrigação do fiador. O presente artigo dispõe sobre a respetiva interrupção (cf. os arts. 323.º a 327.º), suspensão (cf. os arts. 318.º a 322.º) e renúncia (cf. o art. 302.º).

II Segundo o entendimento corrente, o artigo consagra, a este respeito, uma regra de autonomia das duas obrigações; apenas atenuada quanto à interrupção da prescrição em relação ao devedor, que também pode valer como interrupção face ao fiador: se o credor interromper a prescrição em relação ao devedor e der conhecimento do facto ao fiador, interrompe-se igualmente a prescrição contra este, a contar a comunicação (n.º 1, 2ª parte; cf. SERRA, 1957: 242 e s., VARELA, 1997: 496), o que representa um meio termo entre a solução do CC de 1867 e uma oposta afirmação do caráter estritamente pessoal da interrupção. Noutros termos, a lei declara como regra que a interrupção, a suspensão e a renúncia à prescrição têm caráter pessoal, operando separadamente em relação ao devedor principal e em relação ao fiador, o que é suscetível de se visto como um desvio ao princípio da acessoriedade (cf. LEITÃO, 2016: 109 e s., e FARRAJOTA, 2017: 819, mas também a nota VI), mas com esta atenuação.

III – Assim, se o credor interromper a prescrição em relação ao devedor mas não o fizer em relação ao fiador, a obrigação fidejussória poderá vir a prescrever apesar de a obrigação afiançada subsistir intacta (n.º 1) (cf., por ex., SERRA, 1974/75: 262). Se o credor apenas interromper a prescrição em relação ao fiador, a obrigação principal poderá prescrever, deixando de ser exigível (n.º 1); devendo notar-se, no entanto, que, embora a fiança subsista, o fiador pode opor como meio de defesa a prescrição da obrigação afiançada (art. 637.º, n.º 1) (cf. também LIMA e VARELA, 1987: 654, nota 1, VARELA, 1997: 497, GOMES, 2000: 999 e s., e CORDEIRO, 478 e ss., máxime, 479 e s., reforçando a posição com o argumento de que a fiança não pode, segundo o art. 631.º, n.º 1, exceder a obrigação garantida, ou seja, o fiador não pode ficar numa posição mais gravosa que a do afiançado).

IV A regra da independência vale também para a suspensão da prescrição (n.º 2) e a renúncia (nº 3), que pode ser expressa ou tácita e não necessita de aceitação do beneficiário (art. 302.º). Realçando também o caráter pessoal da interrupção, suspensão e renúncia, havendo pluralidade de fiadores, cf. SERRA, 1957: 244.

V a) Juntando o fiador, para satisfação do crédito (art. 627.º, n.º 1), uma segunda obrigação, de caráter acessório (art. 627.º, n.º 2), à obrigação afiançada, coloca-se a questão de saber qual é o seu prazo de prescrição. A resposta parece decorrer ainda da finalidade e da acessoriedade da fiança: sendo a prestação fidejussória distinta mas idêntica à da obrigação principal, o prazo de prescrição da obrigação do fiador é também idêntico ao desta obrigação principal. Garantindo o fiador mais que uma obrigação, haverá tantos prazos de prescrição quantas as obrigações, considerando-se para o efeito haver tantas fianças quantas as obrigações garantidas. Por ex., se a obrigação afiançada for uma obrigação cambiária, como sucedia no caso decidido pelo STJ através do acórdão de 2.11.1973, quer esta quer a obrigação do fiador terão prazos curtos de prescrição (cf. o art. 70 da LULL); sem prejuízo de haver distintos prazos de prescrição para outras obrigações, como também ocorreria no mesmo caso, em que estava em jogo uma fiança omnibus, prestada a favor de uma sociedade, compreendendo todas as obrigações relativas à relação de negócios aparentemente duradoura mantida por esta com o credor (banco). Sendo a fiança ligada ao fornecimento de crédito (ou ao fornecimento de bens ou serviços a crédito), prolongado no tempo, compreendendo uma pluralidade de obrigações, presentes e futuras, são realidades distintas as possíveis causas de extinção do negócio de fiança relativamente a obrigações futuras (cf. o comentário ao art. 654.º) e a prescrição, que se coloca obrigação a obrigação e se circunscreve às obrigações presentes, já constituídas.

b) No caso acabado de referir, decorrera o prazo de prescrição da obrigação afiançada, mas, no decurso do mesmo, a devedora reconheceu, perante o credor, a dívida, o que foi considerado como facto interruptor da prescrição. A obrigação principal não se encontrava, pois, prescrita. Porém, o reconhecimento da dívida não foi comunicado ao fiador e, portanto, nos termos do n.º 1 do artigo em análise, a interrupção da prescrição era ineficaz em relação a ele. Sendo assim, considerou-se que o mesmo podia invocá-la, ao abrigo do artigo 637.º

Esta é, de facto, uma leitura possível. Importa, no entanto, observar que, na realidade, a obrigação afiançada não prescreveu; pelo que não existia na esfera jurídica do devedor principal nenhum meio de defesa, ao alcance do fiador nos termos do artigo 637.º O que sucedeu foi que, não tendo o credor interrompido a prescrição da obrigação do fiador, esta havia prescrito, tendo então este um meio de defesa próprio, que podia opor ao credor (cf. o primeiro trecho do art. 637.º. n.º 1); não um meio de defesa alheio. Vistas as coisas a esta luz, a segunda parte do n.º 1 – que, literalmente, parece refletir a conceção da fiança como obrigação de cumprimento de obrigação alheia (estando em jogo a prescrição desta) – significa que, se o credor interromper a prescrição da obrigação principal e der disso conhecimento ao fiador, tal comunicação vale também como interrupção da prescrição da sua obrigação fidejussória.

c) Tendo sempre presente que estamos perante duas obrigações paralelas destinadas a satisfazer o credor, a obrigação principal e a obrigação fidejussória, quando na primeira parte do n.º 1 se diz que «a interrupção da prescrição relativamente ao devedor não produz efeito contra o fiador», tal significa que o prazo de prescrição da obrigação do fiador continua a decorrer normalmente, se não for autonomamente interrompido; e, portanto, a obrigação fidejussória pode vir a prescrever, apesar de se manter a obrigação afiançada. Diz ainda o preceito que a eventual interrupção relativa ao fiador não tem eficácia contra o afiançado. Afigura-se óbvio: se o credor apenas se dirige ao fiador, interrompendo a prescrição da sua obrigação, não se perceberia que, desse modo, também se interrompesse a prescrição da obrigação do afiançado. Na verdade, o problema é outro: se o credor interrompe o prazo de prescrição da obrigação do fiador e não faz o mesmo relativamente ao devedor, vindo a obrigação afiançada a prescrever, apesar se de manter «viva» a fiança, o fiador pode invocar esta prescrição, nos termos do artigo 637.º, como já se observou (nota III).

d) O que acaba de referir-se vale também, mutatis mutandis, para a suspensão do prazo de prescrição e a renúncia: i) se se suspende o prazo relativo à obrigação principal, decorre do n.º 2 que se trata de uma suspensão pessoal, relativa apenas ao devedor afiançado, sem repercussões no prazo de prescrição da obrigação fidejussória – com a possível consequência de esta vir a prescrever, mantendo-se aquela; se a suspensão respeita ao fiador, o prazo de prescrição da obrigação principal continuará o seu curso normal, com a possível consequência de esta vir a prescrever, mantendo-se a fiança – mas, neste caso, o fiador pode invocar a prescrição da obrigação afiançada, nos termos do artigo 637.º; ii) se o devedor renunciar à prescrição, a prescrição da obrigação fidejussória ocorrerá nos termos gerais, podendo esta vir a prescrever apesar de se manter a obrigação principal; se a renúncia for do fiador, vindo a prescrever a obrigação principal, ele poderá invocar tal prescrição como meio de defesa, nos termos do artigo 637.º, a menos que, juntamente com a renúncia à prescrição da sua obrigação também tenha renunciado à invocação deste meio de defesa (atenuando a acessoriedade da garantia) ou se verifiquem os pressupostos do abuso do direito.

Note-se que, se o fiador a renunciar à prescrição da sua obrigação e não invocar a prescrição da obrigação afiançada (art. 637.º) ou não o puder fazer, vindo a satisfizer o credor apesar de esta ter prescrito, fica prejudicada a sub-rogação legal nos direitos do credor (art. 644.º); «rectius», fica sub-rogado num direito de crédito prescrito, podendo o devedor opor-lhe a prescrição.

e) Existem, no entanto, algumas situações particulares. A primeira relaciona-se, ainda, com esta sub-rogação em crédito prescrito. De facto, o fiador pode ter cumprido a sua obrigação porque não sabia da prescrição da obrigação afiançada; admitiu, por exemplo, que, tendo o credor interrompido a prescrição da sua obrigação, também o terá feito em relação ao afiançado. Daí a questão: tem o fiador, antes de cumprir a sua obrigação, o ónus de se informar junto do devedor acerca de eventuais meios de defesa como o presente? Ou impende sobre o devedor principal, ao menos quanto à prescrição, um dever de aviso, apesar dos termos restritos do artigo 647.º? Veja-se o comentário ao artigo 644.º (nota XI).

A segunda situação respeita à renúncia à prescrição por parte do devedor principal. Decorre do n.º 3 que tal renúncia não produz efeito em relação ao fiador. Quer dizer: a prescrição da obrigação fidejussória segue o seu curso normal. Mas, significa, ainda, que, perante o fiador, apesar dela, a prescrição da obrigação afiançada também continua a correr normalmente? Podendo vir a ser invocada pelo fiador ao abrigo do artigo 637.º, n.º 1? Está em causa, a respeito da prescrição da obrigação afiançada, a afirmação da regra do artigo 637.º, n.º 2? Esse é pelo menos um sentido possível, de resto, suscetível, ainda, de confirmação pelo n.º 1 do artigo 305.º, que dispõe: «A prescrição é invocável pelos credores [do devedor] e por terceiros, com legítimo interesse na sua declaração, ainda que o devedor a ela tenha renunciado». Com efeito, entre estes terceiros com interesse legítimo também se encontra o fiador, beneficiário da prescrição nos termos do artigo 637.º.

A terceira situação tem a ver com as fianças prestadas por sócios gerentes ou administradores. Havendo uma interrupção da prescrição em relação à sua sociedade devedora, não deve considerar-se preenchido o requisito do conhecimento do n.º 1?

VI Em suma,infere-se do preceito analisado, em conformidade com a ideia de que a fiança constitui uma obrigação paralela à obrigação afiançada, que, em matéria de prescrição, a acessoriedade da fiança apenas existe de forma limitada; não podendo, designadamente, afirmar-se que ela tem a sorte da obrigação garantida, prescrevendo quando ela prescrever e só prescrevendo nesse caso. Não se trata propriamente de uma exceção: o princípio apresenta, neste aspeto, uma expressão limitada. Ainda assim, em dois aspetos fundamentais, a acessoriedade existe: a obrigação do fiador tem o mesmo prazo de prescrição da obrigação afiançada e, se esta prescrever, apesar de se manter a obrigação do fiador, este pode invocá-la como exceção do devedor, nos termos do artigo 637.º, tanto mais que, não o fazendo e vindo a cumprir a obrigação, ficando sub-rogado no direito do credor (art. 644.º), o devedor lhe poderá opor tal exceção.

EVARISTO MENDES


Artigo 637.º

(Meios de defesa do fiador)

1. Além dos meios de defesa que lhe são próprios, o fiador tem o direito de opor ao credor aqueles que competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador.

2. A renúncia do devedor a qualquer meio de defesa não produz efeito em relação ao fiador.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: O artigo 854.º do CC de 1867 dispunha: «O fiador pode opor ao credor todas as exceções extintivas da obrigação, que compitam o devedor principal, e lhe não sejam meramente pessoais». Vejam-se também, designadamente, os §§ 767 e 768 do BGB e os artigos 2036 do CCfr (hoje, 2313), 1945 do CCit e 506 do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 87 e ss., 95 e ss.

2. Bibliografia nacional: CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 484-486; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, p. 898; FARRAJOTA, JOANA, Código Civil Anotado, coord. de ANA PRATA, Almedina, Coimbra, 2017, p. 820; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 333 e s., 996 e ss. 1011 e ss., «A fiança no quadro das garantias pessoais. Aspetos de regime», Estudos de Direito das Garantias , I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 7-48, «A sociedade com domínio total como garante. Breves notas», Estudos de Direito das Garantias, vol. II, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 255-274, «Sobre os poderes dos credores contra os fiadores no âmbito de aplicação do CIRE. Breves notas», III Congresso de Direito da Insolvência, coord. de SERRA, CATARINA, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 313-341; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 109; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 654 e s.; SENDIN, PAULO, Letra de Câmbio. L.U. de Genebra, II, Almedina, Coimbra, 1982; SERRA, VAZ, Anotação ao acs.STJ de 2.11.1973,RLJ 107, 1974/75, pp. 254-262; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 493 e ss.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 90

3. Jurisprudência : Acs.STJ de 2.11.1973, RLJ 107, 1974/75, pp. 252-254, com anotação de SERRA, VAZ, de 12.12.1995 (086768), de 17.06.2010 (6686/05.2TBVFX-A.LI.I), de 24.04.2013 (3379/05.4TBVCT.G1.S1) e de 31.01.2017 (519/10.5TYLSB-CE.L1.S1); acs.TRL de 28.06.2007 (4307/2007-6) e de 9.12.2014 (866/12.1TVPRT.L1); acs.TRP de 17.06.2003, CJ 2003/III, pp. 190-195, de 16.11.2015 (62/11.5TBSTS.P1) e de 11.01.2016 (2537/13.2TBGDM-A.P1).

4. Anotação: I – Tal como sucede, designadamente, nos artigos 631.º, 632.º e 634.º, encontramos no n.º 1 deste preceito uma importante manifestação do princípio da acessoriedade consagrado no artigo 627.º, n.º 2. Especificamente, dispõe-se: i) o fiador, como qualquer devedor mas também como obrigado fidejussório, possui os seus próprios meios de defesa e pode opô-los ao credor; e ii) pode, ainda, opor-lhe meios de defesa que não respeitam diretamente à sua obrigação – os que derivam da relação do devedor com o credor e, portanto, podem ser feitos valer pelo devedor (acessoriedade); iii) estes meios de defesa acessórios só são invocáveis na medida em que forem compatíveis com a obrigação do fiador.

a) O primeiro trecho do n.º 1, relativo aos meios de defesa próprios do fiador, tem na base sobretudo a ideia de que, como qualquer pessoa que assume negocialmente um encargo, o fiador autovincula-se em determinados termos, encontrando-se entre os meios de defesa próprios de que dispõe os relativos ao negócio de fiança e à relação entre si e o credor. Existem, no entanto, ainda, meios de defesa próprios derivados da acessoriedade da fiança. Sobre o assunto, veja-se a nota V.

b) A parte nuclear do preceito é constituída pela norma da oponibilidade pelo fiador dos meios de defesa que competem ao devedor (n.º 1, 2.ª parte), cuja importância se encontra realçada pela regra do n.º 2, segundo a qual, mesmo que o devedor renuncie a tais meios de defesa, o fiador continua a poder opô-los ao credor. Sobre eles, veja-se a nota II.

c) Afirma-se na parte final do n.º 1 que os meios de defesa que competem ao devedor - respeitantes à relação entre o devedor e o credor -, para poderem ser invocados pelo fiador, devem ser compatíveis com a obrigação deste. Que significa isto? Há pelo menos dois grupos de casos em que o fim de garantia da fiança justifica a ressalva (cfr. SERRA, 1957: 90 e s., e GOMES, 2015: 318, 2000: 1020 e ss.). São eles: i) falecendo o devedor principal, os herdeiros podem invocar a eventual exceção material de insuficiência do património hereditário para pagar a dívida; mas o fiador não o pode fazer, porque isso seria contrário ao fim de garantia da fiança (já assim, SERRA, 1957: 90, na linha do BGB); e ii) ocorrendo a insolvência do devedor, podem verificar-se situações como, ao tempo do estudo prévio de VAZ SERRA, a concordata forçada entre este e os credores, que o fiador não poderá invocar (cf. SERRA, 1957: 90 e s., considerando, no entanto, excessivo que o fiador não pudesse valer-se de quaisquer exceções do devedor fundadas em dificuldades patrimoniais deste, e GOMES, 2000: 1024 e ss.; atualmente, veja-se o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, bem como as notas V e VI ao artigo 631.º). Note-se, porém, que, se por transação entre o credor e o devedor, a dívida afiançada for reduzida, o fiador poderá invocar esta redução (cf., ainda, SERRA, 1957: 92).

Segundo alguns autores, englobam-se na ressalva os casos do artigo 632.º, n.º 2 (cf. VARELA, 1997: 495, LIMA e VARELA, 1987: 655, FARRAJOTA, 2017: 820), mas, contra este entendimento, pronuncia-se, designadamente, CORDEIRO (2015: 485), porque se trataria de uma repetição do que já decorre desse preceito e o problema nele resolvido respeita à situação do fiador, implicando a invocação da anulabilidade e da anulação um tu quoque ou um venire contra factum proprium. O autor acrescenta como possíveis exemplos de aplicação da ressalva: o fiador de obrigação de alimentos a um filho do devedor não pode, em defesa, vir impugnar a paternidade, como não pode intentar uma ação de divórcio, ainda que o devedor o pudesse fazer.

II – Como meios de defesa do devedor invocáveis pelo fiador, podem apontar-se: i) a prescrição da obrigação principal (o fiador é um terceiro com interesse legítimo na sua invocação, para os efeitos do art. 305.º, n.º 1; cf., por ex., SERRA, 1957: 90, VARELA, 1997: 494, GOMES, 2000: 1013); ii) a exceção de não cumprimento (cf. GOMES, 2000: 1013, e o ac.TRP de 16.11.2015); iii) a nulidade ou anulação do negócio de que provém a obrigação garantida (cf. VARELA, 1997: 494, e o ac.TRL de 28.06.2007); iv) o direito de retenção (cf. GOMES, 2000: 1013); v) a inexigibilidade do crédito principal (cf. GOMES, 2000: 1013); vi) a moratória concedida pelo credor (cf. GOMES, 2000: 1013) e o pactum de non petendo, celebrado entre credor e devedor, incluindo o temporário (cf. GOMES, 2000: 1049 e ss.); vii) a não verificação de condição ou termo apostos à obrigação afiançada (cf. GOMES, 2000: 2010: 270); viii) a impossibilidade de cumprimento ou mora não imputável ao devedor (cf. SERRA, 1957: 133 e s., GOMES, 2010: 270); ix) a extinção da obrigação principal, por cumprimento, remissão, confusão, etc. (cf. o art. 651.º, VARELA, 1997: 494, GOMES, 2000: 1013, 1036, 2010: 270, e o ac.STJ de 24.04.2013); x) o caso julgado entre credor e devedor, favorável a este (cf. o art. 635.º, n.º 1, e VARELA, 1997: 495 e s.); xi) o exercício inadmissível da posição jurídica de credor (cf. GOMES, 2000: 1013); xii) o caráter manifestamente excessivo da cláusula penal (cf. GOMES, 2000: 1013 e 1068); e xiii) a concorrência de culpa do credor na produção ou agravamento do dano, na obrigação de indemnização (cf. GOMES, 2000: 1013). No Ac.STJ de 12.12.1995, decidiu-se ainda: «O fiador pode, em regra, invocar contra o credor, como meio de defesa, a exceção de caducidade do direito de ação, verificada em relação ao devedor principal». Na jurisprudência, cf. também o ac. STJ de 17.06.2010 e o ac.TRP de 11.01.2016.

Nos casos da nulidade e da anulação do negócio principal, bem como da extinção da obrigação afiançada, embora estejamos perante meios de defesa do devedor invocáveis pelo fiador, a lei reconhece também a este um meio de defesa próprio: a ineficácia ou a extinção da fiança (arts. 632.º e 651.º) (cf. a nota V).

III – O n.º 2 tem subjacente a ideia de que o devedor afiançado pode dispor dos meios de defesa que lhe competem, renunciando a algum ou alguns deles (ao seu exercício); e dispõe que, se tal suceder, a renúncia não é oponível ao fiador, que continua, pois, a beneficiar do meio de defesa a que o devedor tenha renunciado (cf., por ex., SERRA, 1957: 91). Pode ver-se um afloramento da regra deste n.º 2 no artigo 636.º, n.º 3: a renúncia pelo devedor principal à prescrição da sua obrigação (renúncia que só é admitida depois de decorrido o prazo prescricional – art. 302.º) não é oponível ao fiador. A ideia subjacente é a de que as modificações da obrigação principal se repercutem na obrigação fidejussória, mas apenas aquelas que se mostrem favoráveis ao fiador, não as que agravam a sua posição (cf. GOMES, 2000: 1018).

IV – Esta manifestação substancial da acessoriedade não se verifica no aval (cf., por ex., os arts. 7 e 32 II da LULL e SENDIN, 1982: 830 e ss.), nem nas garantias autónomas (quanto a estas, cf., por ex., GOMES, 2000: 72 e s., 121, CORDEIRO, 2015: 527, 556 e s., 565 e ss.). Acerca da fiança à primeira solicitação, cf. a nota VI.

V – O fiador, como qualquer devedor – mas também como obrigado fidejussório –, possui os seus próprios meios de defesa e pode opô-los ao credor (início do n.º 1 e nota I). Entre os meios de defesa próprios de que o fiador dispõe – relativos ao negócio de fiança e à relação entre o fiador e o credor – contam-se, designadamente: i) eventuais vícios relativos ao negócio de fiança (nulidade por falta da forma devida ou «ineficácia» do negócio como fiança por falta de manifestação de vontade expressa, incapacidade, erro, etc.), a prescrição da fiança uma vez decorrido o respetivo prazo (cf. os arts. 300.º e ss. e o ac.STJ de 2.11.1973), a compensação, se o fiador for titular de um contracrédito que possa opor ao credor (cf. os arts. 847.º e ss.) (cf., por ex., VARELA, 1997: 493 e s., GOMES, 2000: 997, 998 e ss.); ii) o benefício da liberação consagrado no artigo 638.º, n.º 2, e, na fiança simples, a excussão prévia do património do devedor (cf. os arts. 638.º, n.º 1, e 640.º) (cf. GOMES, 2000: 997); iii) como meios de defesa próprios do fiador derivados da acessoriedade da fiança, avultam a ineficácia desta quando o negócio de que deriva a obrigação afiançada é nulo ou vem a ser anulado, salvos os casos do artigo 632.º, n.º 2, ou se torna definitivamente ineficaz – situações em que o negócio fidejussório é ineficaz, se torna ineficaz ou fica definitivamente ineficaz (cf. o art. 632.º e respetiva anotação), bem como a extinção da obrigação fidejussória provocada pela extinção da obrigação afiançada (art. 651.º). Acrescem, ainda, os meios de defesa dilatórios constantes do artigo 642.º, bem como a «intimação cominatória» prevista no artigo 652.º (cf. GOMES, 2000: 997, 1004 e ss.).

No que respeita à resolução em especial, se o negócio principal for resolvido, extinguindo a obrigação garantida, o fiador pode opor tal meio de defesa; nos termos do artigo 651.º e/ou do presente artigo. Havendo um simples fundamento para o devedor resolver o negócio donde provém a obrigação afiançada (ou seja, sendo o negócio meramente resolúvel), ainda que tenha assumido a posição de principal pagador, não pode o fiador invocar, nos termos do artigo que se comenta, tal meio de defesa do afiançado (cf. o ac.TRP de 17.06.2003, citando no mesmo sentido anteriores acórdãos do TRL). Acerca da possibilidade de invocação do artigo 642.º, veja-se a respetiva anotação.

VI – A fiança à primeira solicitação coloca-se num lugar à parte, porquea acessoriedade resulta nela enfraquecida, dada a impossibilidade de o fiador invocar como exceção eventuais meios de defesa do devedor quando é interpelado para cumprir - evitando-se a dilação que a discussão sobre a obrigação afiançada poderia acarretar - com a possível ressalva daqueles em relação aos quais, pela clareza da situação concreta, a controvérsia estiver afastada, ou seja, se o fiador tiver prova imediata e indiscutível de tais meios de defesa (cf., neste sentido, ALMEIDA, 2013: 202 e 203). Ressalva-se também, tal como sucede nas garantias autónomas, que o fiador pode recusar o cumprimento com base em fraude ou abuso de direito manifestos (cf., ainda, por ex., ALMEIDA, 2013: 202). Cf., ainda, o ac.STJ de 31.01.2017 e, por ex., GOMES, 2000: 107, 717 e ss., em especial, 735 e ss., LEITÃO, 2016: 119 e s., bem como a nota introdutória XI e a nota I ao artigo 640.º No ac.STJ, considerou-se, designadamente: i) que uma fiança à primeira solicitação coloca o fiador numa posição mais gravosa do que a de um fiador típico, tal como a lei a configura, porque o regime da acessoriedade é provisória e temporariamente afastado; e ii) que, por isso, tendo ela que resultar de estipulação dos interessados, em caso de dúvida acerca do sentido a dar às declarações negociais, deve entender-se que se trata de uma fiança simples ou típica.

EVARISTO MENDES


Artigo 638.º

(Benefício da excussão)

1. Ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito.

2. É lícita ainda a recusa, não obstante a excussão de todos os bens do devedor, se o fiador provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do credor.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: No CC de 1867, o artigo 830.º, compreendendo doutrina análoga à do n.º 1 do presente artigo e à do art. 640.º, dispunha: «O fiador não pode ser compelido a pagar ao credor, sem prévia excussão de todos os bens do devedor, exceto: 1.º Se o fiador se obrigou como principal pagador; 2.º Se renunciou ao benefício da excussão; 3.º Se o devedor não pode ser demandado dentro do reino». Vejam-se também, designadamente, o § 771 do BGB e os artigos 2021 do CCfr (hoje, 2298 e 2299), 1944 do CCit. e 945 do CO suíço. Quanto aos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 96 e ss.

2. Bibliografia nacional: ALMEIDA, C. FERREIRA DE (2013), Contratos III, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 197 e s.; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 444 e s., 486-488; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, pp. 895 e ss.; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 964 e ss., 1094 e ss., 1112 e ss., 1122 e ss. (também 1096 e ss.), «A fiança no quadro das garantias pessoais. Aspetos de regime», Estudos de Direito das Garantias, I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 7-48, «Sobre os poderes dos credores contra os fiadores no âmbito de aplicação do CIRE. Breves notas», III Congresso de Direito da Insolvência, coord. de SERRA, CATARINA, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 313-341; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 108, 110 e s.; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 655 e s.; RAMOS, ELISABETE, CSC em Comentário, n.º 3, coord. de ABREU, COUTINHO DE, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 21 e 22; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 487 e ss.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 88-90;

3. Jurisprudência : Ac.STJ de 20.04.1999 (99A162); ac.TRP de 23.03.2013 (1068/11.0TJPRT-B.P1); acs.TRC de 20.04.2010 (899/08.2TJCBR-C.C1), de 29.03.2011 (792/10.9TBCBR-B.C1) e de 12.12.2017 (430/15.3T8MGR.C1).

4. Anotação: I – O preceito consagra no n.º 1 um segundo princípio geral da fiança, para além do da acessoriedade (art. 627.º, n.º 2) – o princípio da subsidiariedade. Na realidade, o legislador civil não configura a fiança como uma obrigação subsidiária da obrigação afiançada. Mas reconhece ao fiador, ainda que com limites e em termos supletivos (cf. o art. 640.º), o direito de recusar licitamente o cumprimento da sua obrigação enquanto houver no património do devedor afiançado bens suscetíveis de responder pela obrigação deste (n.º 1). Mais rigorosamente, o fiador pode opor-se à penhora e execução do seu património enquanto não tiver havido a excussão total dos bens do devedor principal (cf. o art. 745.º do CPC e, por ex., VASCONCELOS, 2013: 88) ou, noutros termos, «enquanto o credor não tiver executado, inutilmente, o devedor» (SERRA, 1957: 97; ainda na mesma linha, mas justificando o teor a lei e chamando a atenção para a presunção do art. 641.º, cf. VARELA, 1997: 488 e s.). Com efeito, o que está em causa não é saber se o fiador pode recusar licitamente o cumprimento da sua obrigação fidejussória - que é moldada pela do afiançado e cobre designadamente as consequências da mora deste (art. 634.º), até à total satisfação do credor, indo-se, portanto, agravando até esta satisfação ocorrer - mas tão-só impedir a efetivação coerciva da sua garantia patrimonial (cf. o art. 641.º e a nota II). Estando em causa um simples benefício, de que o fiador pode prevalecer-se ou não, tendo o ónus de o invocar, pode dizer-se, com GOMES (2000: 1172 e ss., 2014: 29 e s., 2015: 321 e s.), que, à partida, a subsidiariedade é tão só potencial ou virtual.

a) O benefício da excussão prévia pode não se circunscrever ao património do devedor. Na verdade, se houver garantias reais prestadas pelo devedor afiançado, o fiador tem naturalmente o benefício da prévia efetivação das mesmas, como parte do benefício da excussão prévia em apreço. Havendo garantias reais prestadas por terceiro, o artigo 639.º distingue, designadamente, consoante tais garantias sejam ou não posteriores à fiança.

b) Especialmente relevante, no regime estabelecido no preceito em análise, é a ideia de que, em rigor, a subsidiariedade é, à partida, tão só potencial ou virtual, uma vez que só funcionará se o fiador invocar o benefício que lhe é reconhecido pelo preceito em análise. Como observa GOMES (v. g., 2004: 29 e s.), se do negócio de fiança não resultar outra coisa, «o vencimento da obrigação principal projeta-se - por via da acessoriedade - na obrigação de fiança», isto é, após o vencimento, conhecido do fiador, o credor pode escolher entre o devedor e o fiador, porque a obrigação deste também se encontra vencida; mas o mesmo, se tiver o benefício da excussão, pode invocá-lo, tornando subsidiária a sua obrigação, protelando desse modo o momento da exigibilidade da prestação fidejussória. Sobre a necessidade ou não de interpelação do fiador para cumprir, cf. o comentário ao artigo 634.º (nota IV).

c) Quanto ao aspeto em apreço (benefício da excussão), a fiança civil - na sua configuração legal supletiva - distingue-se da fiança comercial, em relação à qual se estabelece, nas relações com o credor, o caráter solidário das obrigações do devedor afiançado e do fiador (art. 101.º do CCom) (cf. a nota V). Acerca da possibilidade de configurar também a fiança civil como solidária, veja-se o artigo 640.º Note-se que, com a unificação - e em grande medida a comercialização - do direito privado italiano, operada pelo CC vigente de 1942, a regra legal passou aí a ser a da solidariedade, embora se trate de regra supletiva (art. 1944). O legislador português manteve, no entanto, a distinção entre a fiança civil e a fiança mercantil.

d) Embora o assunto seja discutível, no sentido de que, afiançando o fiador apenas um de uma pluralidade de codevedores solidários, apenas terá o benefício de excussão relativamente a ele, cf. SERRA, 1957: 125 e s., LIMA e VARELA, 1987: 659 (anotação ao art. 641.º), e GOMES, 2000: 1099 e s. Havendo um subfiador, cf. o artigo 643.º e GOMES, 2000: 1100 e ss.

II Como se pôs em evidência, a subsidiariedade respeita apenas à execução do património do fiador; não à demanda em ação declarativa. E não opera automaticamente: trata-se de um mero benefício, que o fiador pode invocar ou não, só funcionando se ele o fizer.

a) Na verdade, mesmo que goze do benefício em apreço, o fiador pode ser demandado pelo credor, em ação declarativa, só ou acompanhado do devedor (cf. o art. 641.º e, por ex., LIMA e VARELA, 1987: 655, nota 1, VARELA, 1997: 489, GOMES, 2004: 29 e s., LEITÃO, 2016: 111, e VASCONCELOS, 2013: 88). Sucede, inclusive, que, se o fiador for demandado sozinho e não chamar o devedor à demanda, o benefício se considera perdido por renúncia, salvo se ele declarar expressamente no processo que pretende, apesar disso, mantê-lo (art. 641.º, n.º 2).

b) Em ação executiva proposta contra o fiador, este pode invocar o benefício da excussão prévia como exceção; cabendo-lhe o ónus da sua invocação. Sobre o benefício como exceção (material) dilatória e sobre a possibilidade de o qualificar também como ónus, cf., por ex., GOMES, 2000: 1179 e ss., 1192 e ss., e ALMEIDA, 2013: 198. Acerca do respetivo modus operandi, veja-se o artigo 745.º do CPC ( penhorabilidade subsidiária).

c) Embora o fiador tenha o ónus de invocar o benefício da excussão, não é claro como se reparte o encargo da prova. Concretamente, trata-se de saber se cabe também ao fiador o ónus de provar a eventual existência no património do devedor de bens executáveis. Na hipótese contemplada no n.º 2 (veja-se a nota III), a lei diz expressamente que o ónus de prova pertence ao fiador. Na hipótese vertente, nem o n.º 1 do preceito em análise nem o artigo 745.º do CPC esclarecem o problema, embora se afigure razoável, como regra, fazer recair sobre o credor a prova em causa, como parte da justificação do seu direito de ação (executiva) (cf. SERRA, 1957: 102, 118 e s., e o art. 14.º, n.º 1).

III – Desempenhando a fiança a função de assegurar ao credor a satisfação do seu crédito (n.º 1 do art. 627.º), dispõe-se no n.º 2 que, se tal satisfação não ocorrer por culpa do credor, também neste caso o fiador pode recusar-se a cumprir, mesmo que já não haja no património do devedor afiançado bens utilizáveis para esse efeito. Tal será o caso, por exemplo, se, à data do vencimento da obrigação principal, o devedor possuía bens suficientes, mas o credor não exigiu, por inércia, o cumprimento, verificando-se uma posterior insuficiência de bens. O fiador não tem que suportar as consequências deste comportamento culposo do credor (cf., por ex., VARELA, 1997: 490, considerando estarmos perante um afloramento do princípio da boa fé). O ónus de prova, como resulta do texto da lei, pertence ao fiador (cf., por ex., GOMES, 2000: 1118 e s.). Sobre o tema, cf., ainda, SERRA, 1957: 123 e s., VASCONCELOS, 2013: 88, e, mais desenvolvidamente, GOMES, 2000: 1112 e ss., considerando estarmos perante um benefício conatural à fiança civil distinto do benefício da excussão – um benefício de liberação. Note-se, também, que o fiador pode, em certas situações de inércia do credor, provocar a caducidade da fiança, nos termos do artigo 652.º

IV – A fiança cumpre um papel que se pode revelar crucial em caso de insolvência do devedor afiançado (cf. as notas I e III ao art. 627.º e a nota V ao art. 631.º).Porém, a regra da excussão prévia do património do devedor encontra dificuldades quando este é sujeito e/ou beneficia de medidas de recuperação. Com efeito, se o devedor ficar insolvente e for aprovado um plano de insolvência, prolongando prazos de vencimento, reduzindo créditos, etc., dispõe o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE: «As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos». Por conseguinte, nas relações entre o fiador e o credor, tudo se passa como se não tivesse havido a aprovação do plano: a obrigação fidejussória mantém-se e vence-se como se o plano não existisse, podendo o credor exigir o seu cumprimento (cf. a nota V ao art. 631.º).

a) Sucede, porém, que, precisando o credor de executar o fiador, ele lhe pode opor o benefício da prévia excussão do património do devedor afiançado, excussão que poderia ter ocorrido no processo de insolvência, mas foi, justamente, afastada pelo plano de insolvência, aprovado ou não pelo credor afiançado. Daí a questão de saber qual o exato alcance do n.º 1 do preceito em análise. O que nos remete também para o artigo 640.º, em especial para a respetiva al. b). No ac.TRC de 29.03.2011, seguindo a posição de GOMES (2000: 1027 e s.), entendeu-se que, uma vez aprovada uma medida de recuperação que impeça o credor de executar o devedor ou uma vez declarada a sua insolvência, que impede uma execução singular do devedor insolvente, o fiador deixa de poder invocar o benefício da excussão, por haver uma grave situação de impedimento à execução, que cabe na al. b) do artigo 640.º, diretamente, fazendo deste uma interpretação racional, ou por analogia. Veja-se o comentário a este artigo 640.º (nota III).

b) Situação semelhante ocorre quando haja a aprovação de um plano de recuperação do devedor afiançado no quadro de um PER, pelo menos se se considerar aplicável o mesmo artigo 217.º, n.º 4, do CIRE (veja-se a nota VI ao artigo 631.º). Note-se que, via de regra, o problema é discutido, em especial nos tribunais, a respeito do aval em branco. Quanto à fiança, no sentido de que tal preceito insolvencial se lhe aplica, cf., designadamente, o ac.TRC de 12.12.2017.

c) Também no contexto da insolvência (e pré-insolvencial), discute-se se o vencimento antecipado das obrigações do insolvente (ou pré-insolvente), ao abrigo do artigo 780.º ou do artigo 91.º, n.º 1, do CIRE, faz perder o benefício do prazo ao fiador. A orientação dominante é, no entanto, no sentido de que não perde. Cf. a nota III ao artigo 634.º e o comentário ao artigo 640.º

d) Assinala-se, por fim, que, como se decidiu no ac.TRP de 23.03.2013, o benefício da excussão prévia não constitui fundamento de oposição à declaração de insolvência do fiador. No que respeita à posição do fiador que cumpre a sua obrigação, sendo aplicável o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE ou solução equivalente, cf. também o comentário ao artigo 644.º

V – Já se referiu que a regra civil consagrada no preceito em análise contrasta com a correspondente regra do direito comercial (art. 101.º do CCom) da «solidariedade» do devedor afiançado e do fiador perante o credor (solidariedade nas relações externas), embora ambas tenham caráter supletivo. Na verdade, o comércio (profissional) é constituído por uma teia dinâmica de transações interdependentes em grande medida alimentada pelo crédito, comummente considerado a sua seiva. Por isso, o direito comercial encontra-se desde a origem centrado na tutela do credor e tem como missão facilitar a concessão de crédito e a correspondente recuperação pontual dos valores disponibilizados. No caso concreto, isso significa uma proteção do credor contra o risco comercial do não cumprimento pontual e não apenas contra o risco de insolvência do devedor afiançado. As delongas processuais da prévia excussão do património deste são naturalmente incompatíveis com a celeridade e a segurança do tráfico mercantil e do crédito nele envolvido; mormente sendo o credor um profissional. Também por isso, no tráfico bancário, o benefício em apreço se encontra sistematicamente afastado pelos bancos, via de regra com base em CCG. Não raro, a eficácia destas, no caso concreto, é contestada. Mas, mesmo quando tal sucede com êxito, sobra quase sempre a solidariedade da fiança enquanto fiança mercantil por parte do banco credor. Veja-se o comentário ao artigo 640.º

EVARISTO MENDES


Artigo 639.º

(Benefício da excussão, havendo garantias reais)

1. Se, para segurança da mesma dívida, houver garantia real constituída por terceiro, contemporânea da fiança ou anterior a ela, tem o fiador o direito de exigir a execução prévia das coisas sobre que recai a garantia real.

2. Quando as coisas oneradas garantam outros créditos do mesmo credor, o disposto no número anterior só é aplicável se o valor delas for suficiente para satisfazer a todos.

3. O autor da garantia real, depois de executado, não fica sub-rogado nos direitos do credor contra o fiador.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: Vejam-se, designadamente, o § 772 (2) do BGB e o artigo 495 II do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 103 e ss.

2. Bibliografia nacional: BASTOS. J. RODRIGUES, Notas ao Código Civil, vol. III, Lisboa, 1993, p. 103; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 488 e s.; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 895 e s.; FARRAJOTA, JOANA, Código Civil Anotado, coord. de PRATA, ANA, Almedina, Coimbra, 2017, p. 822; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida , Almedina, Coimbra, 2000, pp. 1094 e ss.; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 656 e s.; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 490 e ss.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 88 e s.

3. Jurisprudência : Ac.TRC de 21.02.2006, CJ 2006/I, pp. 32-38.

4. Anotação: I – O presente artigo ocupa-se do benefício da excussão prévia, havendo garantias reais. Mas apenas dispõe sobre a hipótese de a garantia real (i) ser constituída por terceiro (sobre os bens de terceiro) e (ii) ser anterior à fiança ou contemporânea desta. Neste caso, em que pelo menos tipicamente o fiador contará com a sua existência – ou seja garante a satisfação de um crédito com risco atenuado pela garantia real -, o n.º 1 estende, supletivamente (cf. o art. 640.º, al. a)), o benefício da excussão prévia dos bens do devedor afiançado (cf. o art. 638.º) aos bens sobre que recai a garantia. O princípio da subsidiariedade possui, portanto, este âmbito alargado. Considera-se que, havendo garantias deste género, o fiador não quis responsabilizar-se pela dívida senão depois de excutidos os bens onerados (cf., por ex., SERRA, 1957: 104, LIMA e VARELA, 1987: 656, nota 1, VARELA, 1997: 491, GOMES, 2000: 1096 e s., e VASCONCELOS, 2013: 89).

a) Pode discutir-se se estamos perante uma presunção em sentido técnico, ilidível pelo credor. É esta uma interpretação plausível da posição de SERRA (1957: 104), ao referir que se presume ter o fiador querido obrigar-se a pagar apenas quando as garantias reais não chegarem (cf. também LIMA e VARELA, 1987: 656, nota 1), mas importa notar que o autor acrescentava a possibilidade de prova de que a fiança fora prestada sem esta restrição, segmento que não passou para o Código plausivelmente porque esta hipótese já se encontra contemplada na al. a) do art. 640.º Considerando não se tratar de uma verdadeira presunção, apenas sendo permitido ao credor provar que houve renúncia ao benefício, se tal tiver sido o caso, cf. GOMES, 2000: 1096 e s. Realçando também o caráter supletivo do regime legal, cf. VASCONCELOS, 2013: 89.

De fora do preceito ficam as situações em que existe uma garantia real posterior à fiança, com a qual o fiador não terá contado (cf., por ex., VARELA, 1997: 491). Neste caso, não há legalmente o benefício da excussão dos bens dados em garantia. Note-se, no entanto, que o contrário pode resultar da interpretação do negócio de fiança, mormente quando ao fiador tenha sido dito que haveria uma garantia real a constituir, em curso de negociação e/ou a formalizar ainda (cf. também GOMES, 2000: 1097).

b) Se a fiança civil for solidária porque assim foi estipulado - prescindindo o fiador genericamente do benefício da excussão prévia, designadamente através de uma cláusula de «principal pagador» - ou ocorrendo uma renúncia ao benefício em termos análogos (art. 640.º, al. a)), é uma questão de interpretação do negócio saber se o benefício concedido pelo presente artigo também se encontra excluído. Tratando-se de fiança comercial, legalmente solidária (art. 101.º do CCom), isto é, sem o benefício da excussão prévia, pode discutir-se se o sentido da lei comercial, havendo garantias reais de terceiros, é o de que ele não existe também quanto ao objeto destas. Entendendo-se que sim, sobra a questão da interpretação do negócio de fiança: na verdade, nada impede que um fiador mercantil, havendo garantias reais, apenas se disponha a assegurar a satisfação do crédito na medida em que estas se revelem insuficientes.

c) De fora do preceito encontra-se, ainda, a hipótese de a fiança ser solidária, mas haver paralelamente uma ou mais garantias reais sobre bens do devedor principal. Será também um problema de interpretação saber se a convenção de solidariedade ressalva ou não a prévia execução dessas garantias. Problema semelhante surge a respeito da interpretação do artigo 101.º do CCom.

II O n.º 1 é claro no sentido de que o que está em jogo são garantias reais de terceiros, sobre bens de terceiros (consignação de rendimentos, penhor ou hipoteca – arts. 656.º, 666.º, 686.º e ss.). Coloca-se, no entanto, a questão de saber se apenas as garantias constituídas (voluntariamente) pelos terceiros estão englobadas, excluindo portanto garantias legais como o direito de retenção (cf. arts. 754.º e ss.), os privilégios creditórios (arts. 733.º e ss.) e as hipotecas legais (arts. 704.º e ss), bem como, porventura, as hipotecas judiciais (arts. 710.º e 711.º) e a consignação de rendimentos judicial (art. 658.º). Literalmente, só as garantias constituídas pelos terceiros contam (assim, LIMA e VARELA, 1987: 656, nota 1; FARRAJOTA, 2017: 822, nota 1; BASTOS, 1993: 103, embora em tom crítico). Considerando não haver razão para tal interpretação literal do preceito, cf. GOMES, 2000: 1098. Considerando o preceito não imperativo e admitindo a extensão do que nele se dispõe, por via da interpretação do negócio fidejussório, às garantias legais, cf. COSTA, 2012: 896, nota 1.

III – No n.º 2, limita-se a aplicação da regra do n.º 1, quando o objeto onerado com a garantia real garanta também outros créditos do credor afiançado (cf. SERRA, 1957: 105 e notas 168-c e 168-d). Suponha-se que a garantia real, por exemplo uma hipoteca, respeita ao crédito afiançado (100.000 €) e a outros créditos do mesmo credor (um de 150.000 e outro de 200.000 €). Se o valor realizável do objeto da hipoteca for de 450.000 € ou mais, há benefício de excussão prévia; caso contrário, não haverá. A razão deste n.º 2 é a seguinte, indicada por LIMA e VARELA (1987: 657, nota 2): «Se o fiador pudesse exigir o cumprimento de um dos créditos (o que lhe disser respeito) pelo valor dos bens onerados, não chegando o valor destes para o pagamento de todos, poderia liberar-se da sua responsabilidade como fiador, em prejuízo do credor, o qual, em relação aos outros créditos, não teria já bens suficientes para executar» (cf. também VARELA, 1997: 491). Note-se, no entanto, que a limitação apenas funciona em relação a garantias reais existentes à data da fiança, não posteriores (cf. GOMES, 2000: 1098 e s.).

Existe um segundo limite à aplicação do n.º 1: se, por facto posterior à constituição da fiança, o dono dos bens onerados com a garantia não puder ser demandado ou executado em Portugal, o fiador também não pode invocar o benefício da excussão prévia desses bens (art. 640.º, b)).

IV – O n.º 3 versa sobre as relações do autor da garantia real com o fiador, dispondo que o terceiro cuja garantia real tenha sido executada – apesar de ficar sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor garantido (cf. os arts. 592.º e ss.) – não fica sub-rogado nesses direitos contra o fiador; ou seja, sendo o credor afiançado satisfeito desse modo, a fiança extingue-se. Mesmo que esta seja anterior à garantia real ou o dono dos bens soubesse da sua existência futura, este não tem o direito de contar com ela. Trata-se de um afloramento da ideia, presente no n.º 1, de que o autor da garantia real é o primeiro responsável (assim, LIMA e VARELA, 1987: 657, nota 3).

Em conformidade com a mesma ideia, nos casos em que o fiador não tiver o benefício ou, tendo-o, não o invocar, pagando ao credor, aplicam-se as regras gerais; ou seja, o fiador ficará sub-rogado nos direitos do credor, incluindo na posição de beneficiário da garantia real (art. 644.º). O Código afasta-se, assim, da solução proposta no estudo prévio para as situações de prestação da fiança antes da constituição das garantias reais (cf. SERRA, 1957, art. 23.º, n.º 2).

V No ac.TRC de 21.02.2006, decidiu-se que – sendo uma sociedade devedora de certa importância a um banco, obrigação essa afiançada pelos três sócios e os cônjuges de dois deles, na condição de «fiadores solidários e principais pagadores» – o sócio confiador que, interpelado para o efeito, saldou a dívida, ficando desse modo sub-rogado na posição do credor (art. 644.º), tornou-se igualmente titular de um direito de regresso contra os demais confiadores; e que estes, acionados para o efeito, não podiam opor-lhe a prévia excussão de um penhor de depósito bancário por ele dado em garantia, juntamente com a fiança. Na verdade, havendo todos eles assumido perante o credor uma responsabilidade solidária, como principais pagadores, não pode afirmar-se que aqueles que não constituíram o penhor prestaram a sua fiança tendo em consideração a existência desta garantia real, sendo sua intenção assegurar apenas o remanescente da obrigação afiançada; a isso se opõe o artigo 640.º, al. a), que afasta o benefício constante do artigo que se anota. E, sendo assim, o mesmo deve valer nas relações internas, em via de regresso. Cf. também o comentário ao artigo 250.º

EVARISTO MENDES


Artigo 640.º

(Exclusão dos benefícios anteriores)

O fiador não pode invocar os benefícios constantes dos artigos anteriores:

a) Se houver renunciado ao benefício da excussão e, em especial, se tiver assumido a obrigação de principal pagador;

b) Se o devedor ou o dono dos bens onerados com a garantia não puder, em virtude de facto posterior à constituição da fiança, ser demandado ou executado no território continental ou das ilhas adjacentes.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios : No CC de 1867, o artigo 830.º, compreendendo doutrina análoga à do n.º 1 do artigo 638.º e à do presente artigo, dispunha: «O fiador não pode ser compelido a pagar ao credor, sem prévia excussão de todos os bens do devedor, exceto: 1.º Se o fiador se obrigou como principal pagador; 2.º Se renunciou ao benefício da excussão; 3.º Se o devedor não pode ser demandado dentro do reino». Vejam-se também, designadamente, o § 773 do BGB e os artigos 2021 do CCfr (hoje, 2298) e 496 do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 106 e ss.

2. Bibliografia nacional: ALMEIDA, C. FERREIRA DE, Contratos III, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 197 e ss.; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 489 e s.; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 896 e s.; FARRAJOTA, JOANA, Código Civil Anotado, cood. de PRATA, ANA, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 821 e 823; GOMES, JANUÁRIO GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 520 e s., 714 e ss., 1027 e s., 1141 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 110 e s.; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 657 e s.; MARTINEZ, P. ROMANO / PONTE, P. FUZETA DA, Garantias de cumprimento, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pp. 89, 110 e s.; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 492 e s.

3. Jurisprudência : Ac.STJ de 13.08.2008 (08A1287); acs.TRL de 17.11.2011 (1156/09.2TBCLD-D.L1-2), de 11.02.2014 (12878/09.8T2SNT-A.L1-7), de 28.05.2015 (1859/11.1TBVFX-A.L1.-2), de 11.08.2016 (5559/07.9TBOER-B.L1-7) e de 13.07.2017 (2351/12.2TBTVD-A-7); acs.TRP de 26.06.2012 (416/08.4TBBAO.P1), de 28.04.2014 (7815/10.0TBMTS.P1), de 29.06.2015 (1453/12.0TBGDM-B.P1), de 14.06.2016 (4570/08.7TBVNG-A.P2), de 21.02.2017 (2577/14.4TBMAI-B.P1) e de 27.04.2017 (2903/06.0TBGDM-A.P1); acs. TRC de 20.03.2001, CJ 2001/II, pp. 23-26, de 21.02.2006, CJ 2006/I, pp. 32-38, de 29.03.2011 (792/10.9TBCBR-B.C1), de 4.04.2017 (1049/11.3TBPMS.C1) e de 23.01.2018 (954/13.7TBLSA-C.C1); acs.TRE de 12.10.2017 (3150/15.5T8ENT-A.E1), de 21.12.2017 (963/13.6TBVRS-A.E1) e de 25.01.2018 (1533/16.2T8PTG-A.E1); acs.TRG de 15.11.2007 (1583/07-1) e de 8.02.2018 (3416/14.1T8GMR-A.G1).

4. Anotação: I – O fiador não pode invocar o benefício da prévia excussão do património do devedor afiançado (art. 638.º) e, se for o caso, também não pode invocar o benefício da prévia execução de garantia real prestada por um terceiro contemporânea da fiança ou anterior a ela (art. 639.º), nas situações seguintes: i) se houver «renunciado» a tal benefício (al. a)); ii) se, designadamente, tiver assumido a obrigação de principal pagador, como é frequente na prática negocial (al. a)); iii) se o devedor afiançado não puder, em virtude de facto posterior à constituição da fiança, ser demandado ou executado em Portugal continental ou nas Regiões autónomas (al. b)); e iv) no que respeita ao benefício da excussão prévia de garantia real prestada por terceiro, se este terceiro não puder, em virtude de facto posterior à constituição da fiança, ser demandado ou executado no mesmo território (al. b)). No n.º 2 do artigo seguinte, contempla-se uma hipótese em que o fiador tem o benefício da excussão, mas perde-o por renúncia (veja-se o respetivo comentário).

a) Na realidade, o artigo trata de dois aspetos distintos do princípio da subsidiariedade – na modalidade de benefício da excussão prévia, legalmente reconhecido ao fiador na fiança civil. Na al. b), contém-se uma limitação ao princípio. Embora a lei não o diga, esta limitação deve valer também para os raros casos em que se atribua negocialmente tal benefício ao fiador de fiança mercantil, afastando a regra legal do artigo 101.º do CCom. Sobre o assunto, veja-se a nota III.

Na al. a) contêm-se duas normas: i) por um lado, resulta da mesma que as regras que consagram o benefício da excussão prévia (arts. 738.º e 739.º) têm caráter supletivo (a subsidiariedade é tão só uma característica natural da fiança civil), podendo o benefício ser afastado, designadamente, através de fórmulas como as de que o fiador assume uma responsabilidade solidária, renuncia expressamente ao benefício da excussão ou assume a posição ou a obrigação de principal pagador, não raro utilizadas na prática de forma cumulativa, reforçando pleonasticamente o afastamento da regra legal; ii) por outro lado, admite-se a possibilidade de, na fiança simples (ou com benefício da excussão), o fiador vir a renunciar ao benefício de que é titular (cf. também ALMEIDA, 2013: 198), consagrando-se, inclusive, no artigo 641.º, n.º 2, um caso de «renúncia presumida». Nesta medida, o CC de 1867 era mais rigoroso, distinguindo o momento da configuração negocial da fiança e a posterior renúncia (cf., no entanto, SERRA, 1957, 107, nota 170, considerando ambos os casos recondutíveis à renúncia).

Note-se que a regra da subsidiariedade comporta gradações, podendo os interessados reforçá-la (estabelecendo, por ex., que o fiador apenas poderá ser executado depois da completa excussão do património do devedor, o que tornará a fiança verdadeiramente subsidiária, ou só poderá ser executado após a liquidação universal do património do devedor, para satisfação do crédito remanescente), atenuá-la (por ex., admitindo a execução do fiador logo que se demonstre a insuficiência do património do devedor ou logo que este seja declarado insolvente) ou suprimi-la, como é mais frequente, aproximando a fiança civil da comercial. No ac.STJ de 13.08.2008, afirmou-se que a assunção da condição de principal pagador contém uma renúncia tácita ao benefício da excussão, o que se compreende, dentro da terminologia adotada no Código. Tecnicamente, porém, estávamos perante a configuração da fiança como garantia solidária. Sobre os diversos problemas que a al. a) suscita, veja-se a nota IV.

b) Dispondo o artigo 101.º do CCom que, na fiança de obrigação mercantil, o fiador, comerciante ou não, será solidário com o respetivo afiançado, e podendo a obrigação ser mercantil por parte do devedor, do credor ou de ambos (cf. os arts. 2.º e 99.º do CCom), mesmo que o fiador seja um particular, numa grande parte dos negócios afiançados não se torna necessário o afastamento do benefício. Apesar disso, mormente no tráfico bancário, tal constitui uma prática usual. Em geral, entende-se que fiança solidária, tanto na prática negocial como naquele artigo 101.º do CCom, é a fiança sem o benefício da excussão (cf., por ex., GOMES, 2000: 269 e s., VASCONCELOS, 2013: 89, nota 215, e o ac.TRP de 28.04.2014).

c) O benefício da excussão encontra-se, naturalmente, afastado se a fiança for configurada como uma fiança à primeira solicitação. Na verdade, nesta ocorre não apenas esse afastamento, mas a própria acessoriedade resulta enfraquecida, dada a impossibilidade de o fiador invocar como exceções eventuais meios de defesa do devedor (cf. o art. 637.º) quando é interpelado para cumprir - evitando-se a dilação que a discussão sobre a obrigação afiançada poderia acarretar - com a possível ressalva daqueles em relação aos quais, pela clareza da situação concreta, a controvérsia estiver afastada, ou seja, se tiver prova imediata e indiscutível de tais meios de defesa (cf., neste sentido, ALMEIDA, 2013: 202 e 203). Ressalva-se também, tal como sucede nas garantias autónomas, que o fiador pode recusar o cumprimento com base em fraude ou abuso de direito manifestos (cf., por ex., ALMEIDA, 2013: 202, e LEITÃO, 2016: 120). Acerca da figura, cf., ainda, a nota introdutória XI e a nota VI ao artigo 637.º

d) Quer o fiador goze do benefício da excussão prévia do património do devedor afiançado quer não goze, o credor pode demandá-lo, na instância judicial ou arbitral competente, sozinho ou juntamente com o devedor. Nesse caso, aplica-se o disposto no artigo 641.º

II – Quando o benefício não existir, por força da lei ou da vontade das partes, afirma ALMEIDA (2013: 198) que da acessoriedade da fiança decorre que o cumprimento apenas pode ser exigido ao fiador depois de o credor ter verificado o incumprimento do devedor principal e, se necessário, depois de o provar. Nesta medida, a solidariedade a que alude o artigo 101.º do CCom seria imperfeita: apenas se revelaria após o incumprimento do devedor (pp. 198 e s.; note-se que o autor define, mesmo, a fiança como «um negócio jurídico obrigacional de garantia, em que o evento que desencadeia a obrigação eventual (do garante, do fiador) consiste no incumprimento de uma obrigação cujo credor é o benefíciário da garantia» – p. 197). Na mesma linha, afirma FARRAJOTA (2017: 821, nota 5 ao art. 638.º, 823, nota 2 ao art. 640.º) que, em virtude do caráter acessório da fiança, o fiador apenas pode ser chamado a cumprir depois de o devedor principal ter incumprido – mesmo que a fiança seja solidária ou o benefício da excussão tenha deixado de existir ou não possa ser invocado; ressalvando-se apenas a fiança à primeira solicitação (cf. também o que esta autora afirma na p. 811, nota 3 ao art. 627.º).

Acerca do tema, com perspetiva distinta da destes autores, cf. a nota IV ao artigo 634.º Na jurisprudência, para além das indicações aí dadas, declarou-se no ac.TRC de 20.03.2001 que, embora o fiador solidário seja distinto de um codevedor solidário, equipara-se a este, do ponto de vista do credor, o que justifica a aplicação ao mesmo, por analogia, do artigo 519.º Cabe, em todo o caso, notar que nada impede a estipulação de uma cláusula segundo a qual os fiadores apenas ficam obrigados após o decurso de certo prazo a contar de aviso feito pelo credor relativo às importâncias em dívida, depois de comprovada a mora do devedor principal, etc.

III – Centrando a análise na al b), existem aspetos de pormenor a esclarecer, mas a questão com maior alcance é a seguinte: pode o mesmo ser estendido para além do seu texto? O problema respeita, mais concretamente, às situações de impossibilidade jurídica de executar o património do devedor quando este se encontra insolvente ou numa situação próxima da insolvência e fica sujeito, para evitar a liquidação universal do seu património ou a insolvência, a medidas de recuperação que atingem o crédito afiançado, extinguindo-o, reduzindo-o e/ou fixando-lhe um vencimento diferido; e merece resposta positiva. Vejamos.

a) O preceito ocupa-se de situações em que, (i) após a constituição da fiança, (ii) a excussão dos bens do devedor ou dos bens do terceiro dados em garantia se tornou especialmente difícil, por razões relativas ao devedor ou à localização dos bens (cf. SERRA, 1957: 109 e ss., e GOMES, 2000: 1146 e s., relativizando a expressão legal «não puder … ser demandado ou executado»). Assim sucederá, quanto ao devedor, se ele nem sequer se consegue demandar no território nacional, porque alterou o domicílio ou a sede para o estrangeiro, porque está em fuga ou ausente em parte incerta, etc. O mesmo acontece se deixou de ter bens em Portugal, ou deslocou uma parte da sua fortuna para o estrangeiro, tornando a execução mais difícil e dispendiosa (porém, neste caso, havendo bens no país, é defensável que a execução tenha que começar por eles - cf. SERRA, 1957: 110). Havendo, além da fiança, garantias reais em relação às quais o benefício existiria, nos termos do artigo 639.º, o problema respeita sobretudo aos bens inicialmente existentes no país, mas suscetíveis de serem deslocados para o estrangeiro e que sofreram tal deslocalização. Tal pode acontecer, designadamente, com bens móveis (incluindo instrumentos financeiros) e bens imóveis desmontáveis, como fábricas, casas pré-fabricadas, etc., mas também com bens sub-rogados no lugar de imóveis que se destruíram, com o estabelecimento mercantil dado em penhor, etc. A justificação para o primeiro requisito – a superveniência da situação de considerável maior dificuldade da demanda ou execução – é a dada por SERRA no estudo prévio (1957: 110): sendo a mesma contemporânea da fiança, «o credor podia contar com ela, e, se quisesse precaver-se contra o incómodo e as despesas daí resultantes, podia ter procurado obter um fiador que se obrigasse sem o benefício da excussão» (cf. também LIMA e VARELA, 1987: 657 e s., nota 1, VARELA, 1997: 493, e FARRAJOTA, 2017: 823, nota 1).

b) Como se observou (nota I), no estudo prévio considerou-se que a declaração de insolvência do devedor afiançado não deveria provocar a perda do benefício em análise, apesar de essa ser a solução nalguns direitos estrangeiros (SERRA, 1957: 112 e s.). E, na verdade, a insolvência não é sinónimo de ausência de bens executáveis (cf. o art. 3.º do CIRE), sendo o respetivo processo destinado, justamente, à liquidação universal do património do devedor em benefício dos credores, se a opção não for pela recuperação deste (dificilmente concebível sem um ativo mais ou menos significativo) (art. 1.º, n.º 1, do CIRE). Todavia, o contexto atual não é o que existia na altura em que esse estudo prévio foi elaborado nem à data da aprovação do Código, em 1966. A grande diferença está em que, embora a finalidade seja a satisfação dos credores, o processo de insolvência passou a ter como fim alternativo à liquidação a recuperação do devedor titular de uma organização produtiva (empresa), sendo este inclusive o seu fim prioritário (art. 1.º, n.º 1, do CIRE). E favorece-se, igualmente, esta recuperação através de processo tendente a evitar que a insolvência se consuma (o PER, regulado nos arts. 17.º-A e ss. do CIRE).

Ora, em ambos os casos, aprovando-se um plano de recuperação – vinculativo mesmo para os credores que o não votem (mas, note-se, dominado pelos princípios da par conditio creditorum, que está na própria origem do instituto da insolvência, e de que um credor não deve ficar com uma posição menos favorável do que aquela que previsivelmente teria na ausência de aprovação desse plano, cf. o art. 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE) –, em consequência da verificação do risco do crédito garantido pelo fiador (cf. o art. 627.º, n.º 1) atestada pelo tribunal, o credor afiançado pode ficar impedido de fazer valer o seu crédito, no todo ou em parte, ou de o poder exigir imediatamente. O que constitui um obstáculo superveniente equiparável ao da al. b) do artigo em análise (assim, o ac.TRC de 29.03.2011, citando GOMES, 2000: 1027 e s.). Mais do que isso, tendo-se verificado o risco coberto pela fiança, no caso da insolvência, decorre do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, na sua primeira parte, que a posição do credor em face do fiador não é atingida pelas medidas do plano. Afigura-se contrário ao sentido desta norma que, no caso da fiança simples, o fiador mantenha o benefício de uma excussão prévia insuscetível de se efetivar (note-se, aliás, que, se o crédito foi extinto, a excussão está em absoluto excluída, pelo que, a manter-se o benefício, estaríamos perante uma simples «fiança de papel», insuscetível de ser efetivada). E, como é jurisprudência maioritária, tal norma aplica-se, igualmente, ao PER; ou pelo menos o resultado deve ser análogo. Vejam-se as notas V e VI ao artigo 631.º, a nota V ao artigo 634.º e a nota IV ao artigo 638.º

Não se aceitando, no todo ou em parte, este ponto de vista, será pelo menos possível convencionar uma solução deste tipo no negócio de fiança, ao abrigo do disposto na al. a).

IV – Como se viu (nota I), a al. a) ocupa-se genericamente da renúncia ao benefício da excussão, importando distinguir a própria configuração da fiança como fiança solidária ou sem tal benefício, ao abrigo da liberdade de estipulação implícita no preceito, e, tendo sido constituída uma fiança simples (com benefício), a posterior renúncia ao benefício, como negócio jurídico especificamente dirigido a esse fim, distinto da simples não invocação do mesmo, quando da execução do fiador. Tendo em conta a realidade prática, revelada pela jurisprudência, a análise subsequente centra-se no primeiro aspeto. Acerca da renúncia propriamente dita, tenham-se presentes, designadamente, os artigos 221.º e 222.º, 393.º e 394.º

No estudo prévio (SERRA, 1957: 107 e ss.), aceitava-se que a renúncia pudesse ser meramente tácita, carecendo apenas de ser clara, embora ficasse sujeita às mesmas exigências de forma da fiança (segundo o articulado proposto, a fiança teria que revestir sempre a forma escrita - art. 5.º). Em face do regime do Código - que admite a fiança oral (art. 628.º) –, dada razão de ser do artigo 628.º, n.º 1, esta solução não parece, no entanto, de acolher, mormente quando falte um documento escrito: o afastamento do benefício deve ser expresso. Estando a fiança sujeita a forma escrita, o mesmo vale para este afastamento. Cf., nesta linha, GOMES, 2000: 1144, e CORDEIRO, 2015: 490. Acerca da exigência de uma clara e esclarecida manifestação de vontade, cf. o ac.TRL de 11.08.2016. Sendo utilizadas CCG, cf., ainda, o ac.TRP de 14.06.2016 e o ac.TRG de 8.02.2018.

Tem-se também colocado a questão de saber se das fórmulas usadas, literalmente, para afastar o benefício da excussão se pode, adicionalmente, retirar um afastamento do benefício do prazo, quando este é perdido pelo devedor principal (arts. 780.º e 781.º) ou quando ocorre o vencimento antecipado da obrigação afiançada nos termos do artigo 91.º, n.º 1, do CIRE. O entendimento dominante é no sentido de que este afastamento não ocorre. Cf., designadamente, o ac.TRL de 13.07.2017, o ac.TRC de 4.04.2017, o ac.TRP de 21.02.2017 e os acs.TRE de 12.10.2017 e de 21.12.2017.

EVARISTO MENDES


Artigo 641.º

(Chamamento do devedor à demanda)

1. O credor, ainda que o fiador goze do benefício da excussão, pode demandá-lo só ou juntamente com o devedor; se for demandado só, ainda que não goze do benefício da excussão, o fiador tem a faculdade de chamar o devedor à demanda, para com ele se defender ou ser conjuntamente condenado.

2. Salvo declaração expressa em contrário no processo, a falta de chamamento do devedor à demanda importa renúncia ao benefício da excussão.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: No CC de 1867, estabelecia o artigo 831.º: «O credor pode demandar simultaneamente o devedor principal e o fiador, salvo regresso que fica ao fiador contra aquele». Dispunha, ainda, o artigo 832.º: «Sendo demandado o fiador, quer seja como simples fiador, quer como principal pagador, pode fazer citar o devedor, para com ele se defender, ou ser condenado conjuntamente». E o artigo 833.º rematava: «Condenados conjuntamente o devedor e o principal pagador, sendo este compelido a pagar, pode nomear à penhora bens do devedor, se ele os tiver livres e desembargados, e situados na mesma comarca». Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 113 e ss., 165 e s.

2. Bibliografia nacional: BASTOS. J. RODRIGUES, Notas ao Código Civil, vol. III, Lisboa, 1993, p. 105; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, p. 490; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 897; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 1135 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 111; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 658 e s.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 90.

3. Jurisprudência : Acs.STJ de 24.07.1973, BMJ 229, 1973, pp. 146 e ss., e de 26.10.1973, BMJ 230, 1973, pp. 100 e ss.

4. Anotação: I – O credor afiançado que pretenda efetivar a garantia pode optar: i) pela instauração de ação apenas contra o fiador; ou ii) pela instauração de ação conjuntamente contra o devedor afiançado e o fiador (n.º 1, 1.ª parte), obtendo um título executivo contra qualquer dos dois (cf., por ex., LEITÃO, 2016:111). Isto é assim mesmo que o fiador tenha o benefício da excussão prévia do património do devedor (n.º 1, 1.ª parte).

II – Se o fiador for acionado sozinho, pode chamar à demanda o devedor afiançado (através do incidente de intervenção provocada, regulado nos arts. 316.º e ss. do CPC), para com ele se defender e, se for o caso, ser com ele conjuntamente condenado (n.º 1, 2ª parte). Com efeito, ele tem em geral interesse neste chamamento à demanda, seja em virtude do disposto no n.º 2 (cf. a nota III), seja para melhorar a sua defesa (o devedor pode, designadamente, conhecer factos relevantes para ela que ele desconhece), seja para obter, com a condenação do devedor, um título contra ele, quanto ao exercício dos seus direitos de sub-rogado na posição jurídica do credor (cf. o art. 644.º). Esta faculdade é-lhe reconhecida quer tenha quer não tenha o benefício da excussão prévia do património do devedor (ou seja, inclusive, quando a fiança seja solidária).

III – Tendo o fiador o benefício da excussão prévia do património do devedor, se for demandado sozinho, tem o ónus: i) de chamar à demanda o devedor afiançado; ou ii) de, no processo, declarar expressamente que a omissão de chamamento não significa renúncia a esse benefício. Se o não fizer, considera-se que «renunciou» ao mesmo (n.º 2).

a) Resolveu-se, assim, uma questão discutida no domínio do CC de 1867 (cf., por ex., LIMA e VARELA, 1987: 658 e s., nota 2, e BASTOS, 1993: 105, nota 2, SERRA, 1957: 114 e s., 120 e s.). Note-se que, carecendo o credor da sentença para executar o crédito, quando o fiador beneficia da excussão prévia do património do devedor principal, a proposição da ação apenas contra ele carecerá de utilidade, só por si. O n.º 2 atenua este inconveniente, mas apenas em parte. Na verdade, como a renúncia ao benefício da excussão prévia por falta de chamamento do devedor à demanda apenas se «presume», podendo ser afastada por declaração expressa no processo, em geral, o credor não poderá executar a sentença contra o fiador sem primeiro obter nova sentença contra o devedor principal e executar, com base nela, o património deste (cf., ainda, LIMA e VARELA, 1987: 658 e 659, nota 2).

b) É discutível que se trate de uma verdadeira renúncia tácita. Contra tal qualificação da situação, considerando que é o próprio legislador que associa ao desinteresse processual a renúncia ao benefício, de modo a não tornar demorado e prejudicial para o credor o processo de realização da garantia patrimonial, cf. CORDEIRO, 2015: 490.

c) O fiador demandado pode reservar-se o direito de invocar o benefício da excussão, mas pode também invocá-lo logo, operando a subsidiarização da obrigação fidejussória. Neste caso, a sentença que venha a ser proferida deve refletir este dado. Assim, GOMES, 2000: 1138 e ss.

IV Se o fiador afiançar apenas um de dois ou mais devedores solidários, observam LIMA e VARELA (1987: 659, nota 3) que ele goza do benefício da excussão prévia apenas em relação a esse devedor; mas pode chamar à demanda os outros codevedores para defesa do seu eventual direito de regresso. Citam neste sentido, SERRA, p. 125. Cf., no entanto, deste autor, a p. 126 (claramente em tal sentido quanto ao benefício da excussão, mas não quanto ao chamamento à demanda).

V – No ac.STJ de 24.07.1973, decidiu-se que o incidente do chamamento à demanda não é admissível na ação executiva. No acórdão de 26.10.1973, considerou-se inadmissível o chamamento à demanda do aceitante de uma letra, pelo respetivo avalista, por não ser aplicável o preceito em análise.

EVARISTO MENDES


Artigo 642.º

(Outros meios de defesa do fiador)

1. Ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o direito do credor puder ser satisfeito por compensação com um crédito do devedor ou este tiver a possibilidade de se valer da compensação com uma dívida do credor.

2. Enquanto o devedor tiver o direito de impugnar o negócio donde provém a sua obrigação, pode igualmente o fiador recusar o cumprimento.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: Veja-se o § 770 do BGB. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 92 e ss., 127 e ss.

2. Bibliografia nacional: BASTOS. J. RODRIGUES, CORDEIRO, Notas ao Código Civil, vol. III, Lisboa, 1993, p. 106; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, p. 486; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 897; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 989 e ss., 1059 e ss., «A sociedade com domínio total como garante. Breves notas», Estudos de Direito das Garantias, vol. II, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 255-274; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 111; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 659 e s.; PINTO, F. FERREIRA, «Resolução dos contratos duradouros», Edição comemorativa do cinquentenário do Código Civil, coord. de SEQUEIRA, ELSA, e SÁ, FERNANDO, UCE, Lisboa, 2017, pp. 463-480; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 91 e s.

3. Anotação: I – Além dos meios de defesa do devedor invocáveis pelo fiador, nos termos do artigo 637.º (cf. também os arts. 632.º e 651.º), pode o mesmo recusar o cumprimento se e enquanto for possível ao credor ou ao devedor afiançado operar a compensação (n.º 1) ou enquanto este devedor puder impugnar o negócio constitutivo da respetiva obrigação (n.º 2). Trata-se, portanto, de exceções dilatórias: o fiador pode provisoriamente recusar-se a satisfazer o credor enquanto alguma destas situações durar.

a) O n.º 1, relativo à compensação – como causa de extinção de obrigações além do cumprimento -, tem na base o regime desta estabelecido nos artigos 847.º e ss., em especial, a circunstância de ela não operar automaticamente, mas carecer de ser declarada por um dos credores-devedores ao outro (art. 848.º). Uma vez verificados os respetivos requisitos (cf. o art. 847.º), ela torna-se, portanto, uma simples possibilidade; não se efetiva ipso iure. É esta possibilidade que justifica a atribuição ao fiador da faculdade – não de se substituir ao credor ou ao devedor no direito a efetivá-la (operando a extinção ou redução da obrigação afiançada) – mas de recusar o cumprimento que lhe seja exigido, enquanto o credor ou o devedor, podendo torná-la efetiva, não o façam.

Especificamente, a possibilidade de compensação é invocável como meio de defesa (dilatório) pelo fiador: i) se e enquanto o credor puder obter a satisfação do crédito mediante declaração de compensação do mesmo com contracrédito do devedor sobre si (isto é, com uma dívida sua para com ele); ii) se e enquanto o devedor – sendo simultaneamente credor do seu credor – puder opor-lhe o seu contracrédito em compensação (n.º 1).

b) O n.º 2 respeita a uma obrigação afiançada cujo negócio constitutivo é suscetível de impugnação. O fiador não pode substituir-se ao devedor no exercício do direito de impugnar o negócio. Porém, tendo o devedor essa possibilidade, enquanto ela existir, pode recusar o cumprimento que lhe seja solicitado, invocando, não um meio de defesa do devedor (art. 637.º), mas esta exceção. Veja-se a nota III.

c) Note-se que, ocorrendo o eventual exercício com êxito de algum dos direitos em causa pelo devedor principal – de compensação ou impugnação -, por virtude do princípio da acessoriedade, isso aproveita ao fiador (cf. os arts. 631.º, 632.º, 637.º e 651.º, bem como GOMES, 2000: 1062 e 1064). Sendo os mesmos apenas exercitáveis, enquanto a situação durar, é que terá aplicação a exceção dilatória concedida pelo preceito em análise ao fiador. É pacífico que o direito de recusa do cumprimento da obrigação fidejussória constitui um meio de defesa dilatório (cf., por ex., BASTOS, 1993: 106, nota 1, GOMES, 2000: 992 e 1062 – exceção material dilatória).

d) No caso da exceção de compensabilidade pelo credor, estamos, ainda, perante uma manifestação da subsidiariedade da fiança ou um meio de defesa na linha desta. Nesta medida, o preceito pode ser afastado pelos contraentes, sem a descaracterizar.

e) Se a faculdade de compensar é do devedor e no caso do direito de impugnação, que também cabe ao devedor, estamos perante um reflexo do princípio da acessoriedade, que aqui não pode operar sem mais, nos termos do artigos 632.º e 637.º, porque na esfera jurídica do devedor existem simples direitos potestativos (de compensar e impugnar), de exercício pessoal (substancialmente neste sentido, cf. GOMES, 2000: 992 e s., 1061 e s.). A situação é, portanto, distinta, designadamente, da prevista neste artigo 637.º (cf. também o art. 606.º). E é-o, ainda, num outro aspeto. Diferentemente do que dispõe o n.º 2 deste artigo 637.º, se o devedor afiançado renunciar a algum dos direitos que servem de fundamento ao meio de defesa do fiador em apreço (a recusa do cumprimento), este deixa de beneficiar da exceção, a menos que a renúncia haja sido relevantemente influenciada pelo credor, com vista à sua inutilização (assim, GOMES, 2000: 1063). O mesmo sucede, naturalmente, se, por exemplo, no caso de o negócio ser anulável, o devedor o confirmar ou ele for convalidado (cf. GOMES, 2000: 1064).

f) Em geral, entende-se que o meio de defesa em análise (recusa temporária do cumprimento) se justifica porque seria injusto forçar o fiador a cumprir algo que não é certo vir a ser devido (cf., por ex., SERRA, 1957: 128, BASTOS, 1993: 106, nota 1, aludindo à doutrina alemã, e GOMES, 2000: 992, 1060 e s.), a que acresce, no caso da compensabilidade pelo credor, a circunstância de ele ter disponível outro meio de satisfação do crédito (embora lhe caiba a ele decidir se o exerce ou não). Na sua base encontram-se sobretudo meios de defesa do devedor (direito de operar a compensação e direitos de impugnação) que o fiador não pode invocar como tais, nos termos do artigo 637.º, porque, atento o seu caráter estritamente pessoal, isso representaria uma intromissão inadmissível na sua esfera jurídica (cf., por ex., SERRA, 1957, 92 e s.)

II A lei não circunscreve a aplicação do preceito à fiança simples; dele beneficiando, portanto, também o fiador solidário, mesmo no caso de a compensação poder ser operada pelo credor (cf. GOMES, 2000: 993 e s.). E, diferentemente do que resulta do § 770 (2) do BGB, uma das suas fontes inspiradoras (e visto como uma manifestação da subsidiariedade da fiança) (cf. GOMES, 2000: 989), também não se limita às hipóteses de compensação invocável pelo credor afiançado, compreendendo, ainda, por influência do artigo 121 do CO suíço, aquelas em que é o devedor principal que tem o direito de o fazer (cf., ainda, GOMES, 2000: 990 e s.).

a) Problema distinto do regulado no preceito é o de saber se o credor pode operar a compensação com um crédito do fiador, quando este tenha o benefício da excussão prévia. Sobre o assunto, cf. GOMES, 2000: 1003 e s. (considerando possível e eficaz a declaração de compensação, mas sendo o efeito suscetível de ser paralisado pelo fiador, mediante a invocação do benefício).

b) Sobre a aplicação da norma à situação regulada no artigo 501.º do CSC, cf. GOMES, 2010: 270 e s.

III – Como se observou (nota I), se e enquanto o devedor afiançado tiver o direito de impugnar o negócio donde provém a sua obrigação, existe também um meio de defesa (dilatório) invocável pelo fiador para recusar o cumprimento da obrigação fidejussória (n.º 2). Este não pode exercer o direito de impugnação que pertence ao devedor principal, que se considera um direito pessoalíssimo, mas reconhece-se-lhe o direito de - provisoriamente, enquanto a impugnação for possível – recusar o cumprimento ao credor. O direito de impugnar o negócio a que alude o preceito pressupõe o caráter estritamente pessoal do mesmo. Assim, se o negócio donde provém a obrigação garantida é nulo, sendo a nulidade invocável por qualquer interessado (286.º), nula («rectius», ineficaz – cf. a nota I ao art. 632.º) será também a fiança (art. 632.º, n.º 1). Neste caso, o fiador pode invocar a própria nulidade (melhor, a ineficácia). Não se aplica o preceito em análise.

Se o negócio fonte da obrigação afiançada é anulável - incluindo por erro, incapacidade acidental, coação moral, usura, etc. - e o vício era desconhecido do fiador no momento em que prestou a fiança, vindo ele a ser anulado, a obrigação afiançada desaparece, o que torna ineficaz a fiança (cf. a nota II ao art. 632.º). Enquanto a ação de anulação puder ser proposta ou, havendo-o sido, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado, aplica-se o n.º 2 do preceito em análise, ou seja, o fiador pode recusar o cumprimento. Se o fiador conhecia o vício, a fiança é válida e eficaz e esta eficácia não é afetada pela eventual anulação do negócio afiançado (art. 632.º, n.º 2; cf., no entanto, a discussão relativa a este preceito na respetiva nota IV). Por isso, o fiador não pode invocar benefício concedido pelo artigo em análise (cf. também GOMES, 2000: 1064).

IV – A impugnabilidade do negócio de que provém a fiança não se circunscreve aos casos de anulabilidade. No estudo prévio, previam-se, ainda, o direito de redibição (ou «resolução redibitória», na venda de coisa defeituosa; cf. os atuais arts. 913.º e ss.), o direito de resolução (mormente por impossibilidade da prestação ou mora do devedor, mas também sendo ele convencional, neste caso com diferenciações) e o direito de escolha da prestação sendo a obrigação alternativa (cf. SERRA, 1957: 93, 133 e ss.). Porém, no caso da venda de coisa defeituosa, o direito à redução do preço já seria invocável qua tale, por não ter caráter pessoal (cf. SERRA: 1957: 133 e s.; cf., a respeito do art. 637.º, a exceção de cumprimento defeituoso). Outro caso possível será o do direito à redução equitativa de cláusula penal.

a) Ocorrendo um cumprimento defeituoso por parte do vendedor – credor afiançado do preço – suscetível de justificar a redução do preço (cf. os arts. 913.º, n.º 1, e 911.º), entende GOMES (2000: 1068) que o fiador pode recusar a prestação na medida da redução, enquanto o devedor tiver o correspondente direito. Na verdade, justifica-se aqui a aplicação do preceito em apreço, em vez de reconhecer ao fiador a possibilidade de exercer o direito à redução, ao abrigo do artigo 637.º

b) No que respeita à redução de cláusula penal manifestamente excessiva – faculdade reconhecida ao devedor no artigo 812.º -, parece justificar-se também uma recusa de cumprimento quanto ao excesso (sobre o tema, cf. GOMES, 2000: 1068 e s.). Igualmente justificada se mostra a posição constante do estudo prévio de VAZ SERRA a respeito do direito de escolha (cf. GOMES, 2000, 1069). Acerca da resolução, cf. nota a seguir.

V – Como se observou (notas I, III e IV), havendo fundamento para resolver o negócio de que provém a dívida afiançada, o fiador não pode ele próprio exercer o direito de resolução. Mas pode recusar o cumprimento ao abrigo do presente artigo, enquanto o devedor o puder fazer (cf. GOMES, 2010: 271, 2000: 1066 e ss., considerando irrelevante, para o efeito, que o direito de resolução seja legal ou convencional e que seja de exercício extrajudicial ou apenas judicial). A resolução suscita, no entanto, dificuldades, mormente a resolução por alteração de circunstâncias: cf. GOMES, 2000: 1068, 1071 e ss. Quanto à resolução por justa causa ou inexigibilidade da manutenção do vínculo num contrato duradouro, cf. a nota VII.

VI – Se o negócio afiançado é provisoriamente ineficaz – designadamente por falta de poderes de representação de quem nele interveio por parte do devedor ou do credor, enquanto não ocorrer a sua eventual ratificação, ou por falta de um requisito exterior ao negócio ainda suscetível de se vir a verificar –, a situação parece de reconduzir, ainda, ao n.º 2 do artigo em análise. Vindo o negócio a tornar-se definitivamente ineficaz (por falta definitiva do requisito de eficácia), pode o fiador invocar a ineficácia, nos termos do artigo 637.º

VII – Se o devedor afiançado apenas tiver o direito de revogar o negócio de que provém a obrigação principal ou, sobretudo nos contratos duradouros, o direito de o denunciar, o artigo não se aplica (cf. GOMES, 2000: 1067). Se a fiança respeitar às obrigações de uma das partes num contrato duradouro e a manutenção deste se tiver tornado inexigível, havendo fundamento para o resolver por este motivo (cf. PINTO, 2017: 463 e ss.), a posição do fiador encontra-se, em boa medida, salvaguardada pelos artigos 648.º e 654.º Mas não parece de excluir, sem mais, a aplicação do preceito em análise.

VIII – Ao exercer o direito concedido pelo presente artigo, o fiador recusa licitamente o cumprimento da obrigação fidejussória. Porém, que sucede se, por exemplo, tanto a obrigação principal como a obrigação fidejussória se encontram vencidas e o negócio principal não vem a ser impugnado, nem a compensação a tornar-se efetiva? O fiador suporta ou não o risco da dilação que provoca, traduzido no agravamento da sua obrigação por não ter sido pontualmente cumprida (cf. o art. 634.º)? O princípio, decorrente da função de garantia da fiança, é este: perante o credor, o risco corre por conta do fiador (cf. também GOMES, 2000: 1069 e ss.). Quanto às relações entre o fiador e o devedor, cf. GOMES, 2000: 1071.

EVARISTO MENDES


Artigo 643.º

(Subfiador)

O subfiador goza do benefício da excussão, tanto em relação ao fiador como em relação ao devedor.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios : No CC de 1867, o artigo 837.º dispunha: «O abonador do fiador goza do benefício da excussão, tanto contra o fiador, como contra o devedor principal». Veja-se também, designadamente, o artigo 1948 do CCit. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 126 e s.

2. Bibliografia nacional selecionada: GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, 1104 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 117; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 660.

3. Jurisprudência : Ac.TRP de 29.04.1999, BMJ 486, 1999, p. 368.

4. Anotação: I – Se o fiador for, por sua vez, afiançado por outrem (subfiador – cf. o art. 630.º), via de regra – ou seja, tratando-se de fiança civil, na falta de convenção em contrário (cf. o art. 640.º) – o subfiador goza de um duplo benefício de excussão: em relação aos bens do devedor principal e em relação ao fiador (cf. o art. 638.º) (cf., por ex., LEITÃO, 2016: 117). São aplicáveis, ainda, os artigos 639.º (benefício de excussão havendo garantias reais de terceiro), 641.º (chamamento do devedor à demanda) e 642.º (outros meios de defesa do fiador).

a) Apesar de, no direito anterior, se poder entender que a responsabilidade do subfiador era uma responsabilidade subsidiária em sentido próprio (tendo ele contra o credor uma exceção de inexigibilidade da sua obrigação até que se verificasse a insolvência do devedor e do fiador), em face do preceito em análise o subfiador apenas goza de um benefício de excussão prévia, que pode invocar ou não (cf. GOMES, 2000: 1104 e ss.).

b) À primeira vista, poderá interpretar-se o preceito no sentido de que, se o fiador abonado goza do benefício da excussão prévia em relação ao devedor principal, o subfiador deve ter o duplo benefício, da excussão prévia dos bens do fiador (devedor fidejussório) e desse devedor. Porém, observa GOMES (2000: 1107 e s.) que, resultando para ele, em geral, o benefício da excussão prévia dos bens do fiador abonado dos artigos 630.º e 638.º, sendo esta regra para qualquer fiança civil, incluindo a subfiança, o sentido específico da norma será o seguinte: ainda que o fiador abonado não goze do benefício em causa, na falta de convenção em sentido diferente, o subfiador terá esse benefício. Veja-se também a nota III.

II – Resulta daqui que, se a obrigação afiançada for comercial e, portanto, a fiança for solidária (cf. o art. 101.º do CCom) ou se de outro modo o fiador não gozar do benefício da excussão prévia, pode discutir-se se o subfiador, ainda assim, por força do preceito em análise, goza de tal benefício. No caso da fiança civil, faz sentido a posição de GOMES: a exclusão do benefício concedido pelo artigo 638.º tem caráter pessoal; podendo ocorrer, numa pluralidade de fiadores, em relação a uns e não a outros e podendo também ocorrer em relação ao fiador e não ao subfiador. Todavia, no caso de a obrigação ser comercial, afiançando o subfiador o fiador perante o credor (art. 630.º), já se justifica a não aplicação do preceito, ou seja, a solidariedade comunica-se ao subfiador, por força do artigo 101.º do CCom (cf. também LEITÃO, 2016: 117, e VASCONCELOS, 2013: 99; contra, GOMES, 2000: 1108). Valem aqui mutatis mutandis as observações constantes da anotação ao artigo 638.º (nota VII). Sobre o assunto, cf. VASCONCELOS, 2013: 99, com mais indicações.

III – Note-se, ainda, que, por força do artigo 631.º, a obrigação do subfiador não pode ser contraída em condições mais onerosas do que a do fiador afiançado. Embora o preceito seja relativo à acessoriedade da obrigação fidejussória, não à subsidiariedade, numa interpretação rigorosa do mesmo, se este fiador afiançado gozar do benefício da excussão prévia dos bens do devedor, não pode convencionar-se coisa diferente para o subfiador (assim, GOMES, 2000: 108 e s. e nota 106).

IV – Acerca da especificidade da posição do subfiador, cf. também o artigo 650.º, n.º 4. Sobre o possível acionamento do subfiador uma vez vencida a obrigação, apesar de ele gozar do benefício em apreço, cf. GOMES, 2000: 1109. Havendo uma pluralidade de fiadores, um dos quais subafiançado, cf. LIMA e VARELA, 1987: 669, anot. 3 (o benefício também existe em relação aos confiadores que respondam pela totalidade da prestação) e a anotação ao artigo 630.º

V No ac.TRP de 29.04.1999, decidiu-se que o preceito não tem aplicação ao fiador de um avalista, por não se tratar de subfiança, e afirmou-se também o caráter renunciável do benefício.

EVARISTO MENDES


SUBSECÇÃO III

Relações entre o devedor e o fiador

Artigo 644.º

(Sub-rogação)

O fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios : No CC de 1867, dispunha o artigo 839.º: «O fiador que pagou ao credor fica sub-rogado em todos os direitos que o mesmo credor tinha contra o devedor. § único. Se o fiador, porém, transigiu com o credor, não pode exigir do devedor senão o que na realidade desembolsou, exceto se o credor lhe fez doação de qualquer abatimento feito na dívida». Vejam-se também, designadamente, os o § 774 do BGB e os artigos 2029 do CCfr (hoje, 2306), 1949 do CCit e 505 do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 135 e ss.

2. Bibliografia nacional: BASTOS. J. RODRIGUES, CORDEIRO, Notas ao Código Civil, vol. III, Lisboa, 1993, pp. 107 e s.; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado , X, 2015, pp. 491 e s.;COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 899 e s.; CUNHA, CAROLINA, «Aval em branco e plano de insolvência»,RLJ 145 (2016), pp. 201-232, 204 e ss., 212 e ss., Aval e Insolvência, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 111 e ss., «A execução do avalista após homologação do plano de revitalização do avalizado», anotação ao Ac.STJ de 4.05.2017, RLJ 147, 2017, pp. 119-138 (cit. 2017a); FERNANDES, L. CARVALHO / LABAREDA, JOÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2015, pp. 792 e ss. (anotação ao art. 217.º do CIRE); GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 904 e ss., «Pluralidade de fiadores e liquidação das situações fidejussórias», Estudos de Direito das Garantias, II, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 31-53, 55 e s., «Sobre os poderes dos credores contra os fiadores no âmbito de aplicação do CIRE. Breves notas», III Congresso de Direito da Insolvência, coord. de SERRA, CATARINA, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 313-341; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 105, 111 e s.; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 660-662; MARTINEZ, P. ROMANO / PONTE, P. FUZETA DA, Garantias de cumprimento, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, p. 92; RAMALHO, TIAGO, Código Civil Anotado, coord. de PRATA, ANA, Almedina, Coimbra, 2017, anotação ao artigo 594.º, pp. 767-769; SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras afins», Anotação ao ac.STJ de 28.11.1972, RLJ 106, 1973-74, pp. 363-367, 373-383; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 352, 497 e ss.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 92.

3. Jurisprudência : Assento do STJ n.º 2/78, de 9.11.1977 (066378), BMJ 271, 1977, pp. 100-104; acs.STJ de 2.06.1998, BMJ 478, 1978, pp. 268-273, de 4.12.2008 (8B3597), de 29.03.2012 (3300/07.5TBBCL.G1.S1), de 27.09.2012 (663/09.1TVLSB.L1.S1), de 14.01.2014 (261/09.0TCGMR.G1.S1), de 31.01.2017 (519/10.5TYLSB-CE.L1.S1) e de 25.05.2017 (3958/07.5TVLSB.L2.S1); acs.TRL de 10.11.1992, CJ 1992/V, pp. 119 e s., de 10.01.2013 (1998/11.9TBALM.L1-2) e de 23.11.2017 (165/13.1T2AMD.L1-2); ac. TRP de 5.06.2014 (1596/06.9TBVRL-A.P1); acs.TRC de 21.02.2006, CJ 2006/I, pp. 32-38, e de 13.09.2013, CJ 2013/IV, pp. 5 e ss.; ac.TRG de 31.03.2016 (85/09.4TBBGC-A.G1).

4. Anotação: I - Estabelece este artigo, que, se o fiador «cumprir a obrigação» - no todo ou em parte -, fica sub-rogado nos direitos do credor perante o devedor, na medida da satisfação do credor. Quer dizer, a posição jurídica do credor passa, nessa medida (transmissão total ou parcial), para o fiador (art. 593.º, n.º 1), com as eventuais garantias ( v.g., penhor ou hipoteca) e demais acessórios (v.g., juros, se for o caso) que não sejam inseparáveis da pessoa do credor (art. 582.º, por força do art. 594.º). Verifica-se, assim, uma modificação subjetiva na relação obrigacional a que se refere a fiança: o credor é substituído na sua posição de credor pelo fiador; o crédito transmite-se, por sub-rogação, para um novo credor, o fiador (cf., por ex., SERRA, 1957: 135 e ss., LIMA e VARELA, 1987: 661, nota 2). E transmite-se para este tal como existe, com todas as garantias e acessórios; mas também com os respetivos limites (cf. a nota II).

a) O fiador – cumprindo a sua obrigação fidejussória ou satisfazendo de outro modo o credor – fica investido na posição deste contra o devedor principal «porque realizou o resultado prático do cumprimento, mas também porque tinha interesse (jurídico) legítimo no cumprimento efetuado» (cf. LIMA e VARELA, 1987: 662, nota 3). Via de regra, estará em causa o direito de crédito originário, com eventuais juros (quer os pagos pelo fiador quer aqueles a que o credor teria direito desde a data em que o fiador cumpriu), despesas suportadas pelo credor com a apresentação infrutífera a pagamento ao devedor, penas convencionais, garantias reais e demais atributos ou qualidades do direito (cf., por ex., COSTA, 2012: 899, VARELA, 1997: 498 e s.). No sentido de que a transmissão se dá com as pertinentes garantias e demais acessórios, cf., por ex., o ac.STJ de 25.05.2017 e o ac. TRP de 5.06.2014. Sublinhando que mesmo direitos de natureza não substancial, como os relativos à competência do tribunal, ficam envolvidos, cf. SERRA, 1957: 171. Ainda assim, isto pode não ser suficiente (cf. «infra», nota VII) e requer adicionais considerações se a dívida garantida não tiver caráter pecuniário (ou outra coisa fungível) (cf. «infra», nota VIII). Se a transmissão for parcial, cf. o art. 593.º, n.º 2 (cf. também SERRA, 1957: 176 e s.).

b) A sub-rogação só se dá com a satisfação do crédito (na medida da mesma), embora esta possa ocorrer por qualquer meio, não apenas através do cumprimento (cf. SERRA, 1957: 174, GOMES, 2000: 898, nota 671, e «infra», nota IX). Havendo vários fiadores, se um deles satisfizer o crédito, cf. SERRA, 1957: 178 e ss., GOMES, 2000: 914 e ss., e o artigo 650.º

c) Nos casos do artigo 632.º, n.º 2, uma vez anulada a obrigação afiançada, o devedor fica desvinculado e, portanto, apesar de sub-rogado no crédito, o fiador não lhe pode exigir o que prestou ao credor. Porém, se o credor tiver prestado algo que deva ser restituído, nos termos do artigo 289.º, a sub-rogação do fiador na sua posição jurídica também compreende o correspondente direito à restituição (cf. o 592.º, n.º 1, GOMES, 2000: 357 e ss.). Cf. também a nota IV ao artigo 232.º

d) Comummente, entende-se que o preceito em análise contém uma especificação da regra geral do artigo 592.º, n.º 1 (cf., por ex., LIMA e VARELA, 1987: 660). Importa, no entanto, observar que o fiador não satisfaz o credor na qualidade de terceiro, interessado nessa satisfação: fá-lo enquanto obrigado fidejussório, via de regra, cumprindo a sua obrigação.

II – Estando em causa uma transmissão sub-rogatória do crédito para o fiador (não um autónomo direito de regresso deste), operada ope legis, nos termos do artigo 585.º (aplicável por força do art. 588.º), o devedor pode, em princípio, opor-lhe os meios de defesa (ou exceções) que podia opor ao credor originário (cf. SERRA, 1957: 162 e ss., LIMA e VARELA, 1987: 661, nota 2, RAMALHO, 2017: 768, nota 2 ao art. 594.º; defendendo o mesmo resultado, apesar de o artigo 594.º não remeter para o art. 585.º, cf. VARELA, 1997: 352, nota 1, 499, COSTA, 2012: 900, LEITÃO, 2016: 112, e VASCONCELOS, 2013: 92, com mais indicações). Ressalva-se o disposto no artigo 647.º (cf. SERRA, 1957: 164 e s., GOMES, 2000: 1075 e ss., e a anotação a este artigo).

III – Se o devedor ficar insolvente e for aprovado um plano de insolvência, prolongando prazos de vencimento, reduzindo créditos, etc., o fiador não beneficia da moratória concedida ao devedor e continua a responder pela totalidade do crédito afiançado. Cumprindo a obrigação, fica sub-rogado na posição do credor contra o devedor insolvente, com as limitações decorrentes do plano da insolvência. Com efeito, dispõe o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE: «As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.» Acerca dele, cf., designadamente, com mais indicações: FERNANDES e LABAREDA, 2015: 792 e ss.; GOMES, 2015: 330 e ss., 336 e ss.; CUNHA, 2016: 204 e ss., 212 e ss., 2017: 111 e ss., 2017a: 123 e ss., 220 e ss.; bem como a anotação ao artigo 631.º (nota V). Havendo a aprovação de um plano de recuperação no âmbito de um PER, cf. a nota VI ao artigo 631.º Na jurisprudência, vejam-se, designadamente, o ac.TRG de 31.03.2016 e, a respeito da conjugação do preceito em análise com o artigo 91.º, n.º 2, do CIRE ( interusurium), o ac. STJ de 31.01.2017.

IV – A satisfação do direito adquirido pelo fiador mediante sub-rogação (via de regra, o direito de crédito originário, com eventuais juros, despesas com apresentação infrutífera a pagamento ao devedor, etc.), pode ser garantida por outro fiador (retrofiança) (cf., por ex., GOMES, 2000: 362, nota 329, CORDEIRO, 2015: 481, e LEITÃO, 2016: 118, bem como a nota introdutória VIII).

V – O fiador que cumprir a sua obrigação (a obrigação fidejussória) deve avisar o devedor, sob pena de, não o fazendo, poder perder o seu direito de agir contra ele (cf. o artigo seguinte e, por ex., VARELA, 1997: 499 e s.).

VI – Havendo dois ou mais codevedores principais solidários, se o fiador os afiançou a todos, por força da sub-rogação legal em apreço beneficia da preexistente solidariedade passiva, como acontecia com o credor originário; ou seja, o fiador pode exigir de qualquer deles o cumprimento da obrigação. Se o fiador afiançou apenas um deles, contra ele fica sub-rogado na totalidade do crédito. Contra os demais codevedores, que não afiançou, a solução presta-se a discussão, como sucedia no domínio do CC de 1867, uma vez que no estudo prévio se propôs certa solução – a de considerar tais codevedores responsáveis, perante o fiador sub-rogado, apenas na medida das respetivas quotas de responsabilidade (cf. SERRA, 1957: 138 e ss., e art. 18.º, n.º 2, com uma ulterior distinção, no entanto) -, mas a mesma não passou para o Código vigente (cf., sobre o assunto, LIMA e VARELA, 1987: 661, nota 1, e BASTOS, 1993: 108, nota 2). Todavia, em face disto e do teor do artigo 644.º, vem-se defendendo que o fiador se substitui ao credor na plenitude da sua posição jurídica; ou seja, podendo o credor satisfeito exigir o cumprimento da totalidade da obrigação a cada um dos codevedores, também o poderá fazer o fiador sub-rogado na sua posição (assim, LIMA e VARELA, 1987: 661, nota 1, VARELA, 1997: 498, e BASTOS, 1993: 108, nota 2). Acerca da oponibilidade ao fiador sub-rogado de exceções pelos codevedores não afiançados, cf. SERRA, 1957: 141 e s. e o correspondente artigo 18.º, n.º 3.

VII – Pode suceder que o fiador tenha sofrido algum prejuízo (incorrido em despesas, suportado danos emergentes ou sido privado de lucros cessantes), mostrando-se neste caso insuficiente a sub-rogação legal na posição do credor. Embora em termos que podem suscitar dúvidas, o CC de 1867 contemplava esta situação no artigo 838.º Defendendo uma possível integração da existente lacuna do CC com apelo à boa fé, cf. CORDEIRO, 2015: 492. Cf., ainda, COSTA, 2012: 899, e GOMES, 2000: 909 e ss. Aparentemente restritivo, cf. ac.STJ de 4.12.2008.

VIII – Se a fiança não respeitar a um crédito pecuniário ou equivalente (máxime, tiver por objeto uma prestação de facto ou a entrega de bem específico pertencente ao devedor principal), surgem dificuldades. Note-se, por exemplo, que, estando em causa uma prestação de facto fungível e ao alcance do fiador, pode este ter realizado a prestação, colocando-se naturalmente a questão de saber que direito adquire contra o devedor afiançado. Em geral, acerca da sub-rogação quando o conteúdo da obrigação principal nãoé igual ao da obrigação fidejussória, cf. GOMES, 2000: 136 e s. Vejam-se, ainda, a nota introdutória XVI e a nota VI ao artigo 634.º

IX – Embora o assunto seja controvertido, como, noutro contexto, se decidiu no assento do STJ n.º 2/78, de 9.11.1977, o fiador só fica sub-rogado quando pagar o crédito afiançado e na medida em que o fizer - não se verificando a sub-rogação em relação a prestações futuras; cf. também o ac.STJ de 27.09.2012. A simples penhora de bens do fiador não é equiparável ao pagamento: cf. os acs.TRL de 10.01.2013 e de 23.11.2017 (em ambos estes casos, houve a penhora de parte do vencimento do fiador). Cf., ainda, o ac.TRC de 13.09.2013, que negou a sub-rogação num caso em que o fiador entregou os meios de cumprimento ao devedor, não ao credor, e o ac.STJ de 2.06.1998, relativo à existência de título executivo para o fiador que cumpre executar o afiançado.

X – Se o fiador cumprir a sua obrigação sem ter que o fazer por esta já se encontrar prescrita, não poderá exigir ao credor a repetição do indevido (art. 403.º). É possível discutir se se verifica a sub-rogação legal em apreço ou apenas poderá ter lugar uma sub-rogação voluntária, nos termos dos artigos 589.º e 590.º O texto da lei sugere, em todo o caso, que, apesar da prescrição, a sub-rogação ocorre, ope legis, ficando o fiador investido na titularidade do crédito principal, que o devedor, em princípio, terá que satisfazer.

Quer a obrigação fidejussória se encontre prescrita, quer não, pode, no entanto, suceder que a obrigação afiançada haja prescrito (cf. o art. 636.º). Neste caso, cumprindo o fiador, a sub-rogação dá-se num crédito prescrito, podendo o devedor, em regra, opor-lhe esta exceção (cf. os arts. 585.º e 588.º e a nota II). Assim, o disposto no artigo 636.º, na medida em que permite a prescrição da obrigação principal sem a correspondente prescrição da obrigação fidejussória, gera um resultado gravoso para o fiador. O problema encontra-se substancialmente minorado pelo artigo 647.º, donde decorre, para o devedor, um ónus de informar o fiador acerca da existência de meios de defesa como o presente, desde que este o avise de que pretende cumprir. Mas é possível ir mais longe. Como se verá na anotação a este preceito, da comum (embora não necessária – cf. o art. 628.º, n.º 2) relação existente entre devedor e fiador pode resultar um mais amplo dever de informação a cargo do primeiro.

EVARISTO MENDES


Artigo 645.º

(Aviso do cumprimento ao devedor)

1. O fiador que cumprir a obrigação deve avisar do cumprimento o devedor, sob pena de perder o seu direito contra este no caso de o devedor, por erro, efetuar de novo a prestação.

2. O fiador que, nos termos do número anterior, perder o seu direito contra o devedor pode repetir do credor a prestação feita, como se fosse indevida.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: O artigo 842.º do CC de 1867 dispunha: «Se o devedor pagou de novo, ignorando o pagamento, por falta de aviso do fiador, não tem este regresso contra o devedor, mas só contra o credor». Vejam-se também, designadamente, os artigos 2031 do CCfr. (hoje 2308), 1952 do CCit. e 507 do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 137 e s., 154 e ss., e artigo 19.º, n.ºs 4 e 5.

2. Bibliografia nacional: CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, p. 493; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 112; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 662 e s.; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 499 e s.

3. Anotação: I Se o fiador satisfizer ao credor o seu crédito (rectius, se cumprir a sua obrigação fidejussória ou a extinguir por algum dos meios previstos nos arts. 837.º e ss., satisfazendo desse modo o credor), adquire, em princípio, por sub-rogação, este crédito (art. 644.º), passando ele a ser o credor do devedor. Porém, este, se não souber dessa satisfação, pode, também ele, efetuar a sua prestação ao credor. Daí a existência de um dever acessório de aviso: o fiador que cumprir deve informar o devedor do cumprimento (n.º 1) (qualifica a situação como um dever acessório de conduta, cujo incumprimento tem a consequência específica indicada no preceito, e não como mero ónus, por ex., VARELA, 1997: 500). Não se exige forma especial para o aviso (cf. também LIMA e VARELA, 1987: 663, nota 3), pelo que o mesmo, na falta de forma convencionada (cf. o art. 223.º), pode ser feito nos termos gerais, verbalmente ou por escrito (art. 219.º), expressa ou tacitamente (art. 217.º).

II Se o fiador avisar o devedor e, apesar disso, este realizar a sua prestação – após o credor haver sido satisfeito e o crédito ter passado para o fiador –, a prestação é entregue a quem já não é o credor e, portanto, pode ser repetida, ou seja, o devedor pode exigir a sua devolução, nos termos do enriquecimento sem causa (art. 476.º, n.º 1). Se não efetuar o aviso, conserva, apesar disso, em princípio, o direito adquirido por sub-rogação. Todavia, perde-o se o devedor, por falta desse aviso, também realizar a sua prestação (n.º 1).

III – Ocorrendo esta perda do direito de crédito, adquirido por sub-rogação, por parte do fiador, tem ele o direito de exigir do credor a repetição (restituição) da prestação por si realizada, como se fosse indevida (n.º 2), ou seja, nos termos do enriquecimento sem causa. Com efeito, como observam LIMA e VARELA (1987:663, nota 2), embora não haja, em rigor, um cumprimento indevido (o fiador era devedor acessório da prestação quando a realizou), há um enriquecimento à custa alheia (segundo LEITÃO, 2016:112 e nota 280, não há um enriquecimento por prestação, mas por intervenção) e, «portanto, igual fundamento para a restituição daquilo com que o credor se enriqueceu à custa do fiador».

IV – O dever de aviso tem como função, nos termos deste preceito, evitar um duplo pagamento: primeiro pelo fiador e depois pelo devedor. Daí que, na falta dele, ocorrendo este pagamento do devedor, por falta de conhecimento do pagamento já efetuado pelo fiador, o fiador perca o direito que adquiriu por sub-rogação. Sendo assim, se, apesar de não avisado, o devedor teve conhecimento do cumprimento pelo fiador, cumprindo também, fá-lo a seu risco, podendo o fiador, na qualidade de credor sub-rogado, exigir-lhe a prestação e sendo a ele que cabe pedir a repetição do indevido (cf. VARELA, 1997: 500).

V – Recebendo o credor a prestação em duplicado, do devedor principal e do fiador (n.º 1), além do dever de restituição do indevidamente recebido, a quem isso for devido, pode ser obrigado a indemnizar pelos danos causados, se, ao receber duas vezes, atuou em desconformidade com a boa fé (cf. também CORDEIRO, 2015: 493).

EVARISTO MENDES


Artigo 646.º

(Aviso do cumprimento ao fiador)

O devedor que cumprir a obrigação deve avisar o fiador, sob pena de responder pelo prejuízo que causar se culposamente o não fizer.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71 (1957), pp. 167 e ss., art. 21.º

2. Bibliografia nacional selecionada: BASTOS. J. RODRIGUES, CORDEIRO, Notas ao Código Civil, vol. III, Lisboa, 1993, 109; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, p. 493; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida , Almedina, Coimbra, 2000, p. 1078, nota 587; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 663; VARELA, J. M. ANTUNES, Das obrigações em geral, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, p. 500; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 93.

3. Anotação: I Dispõe-se no artigo anterior que o fiador que satisfaça o crédito deve avisar o devedor. No presente artigo estabelece-se também um dever, a cargo do devedor que cumpra a obrigação, de avisar o fiador. Se o não fizer, é obrigado a indemnizar este do prejuízo que culposamente lhe causar.

II Designadamente, por falta desse aviso, pode o fiador realizar também a prestação, a favor de quem já teve o crédito satisfeito e, portanto, já não é credor (cf. o art. 651.º). Neste caso, o fiador tem direito à repetição da prestação indevidamente efetuada (art. 476.º, n.º 1), mas ficou temporariamente privado do respetivo valor, pode ter despesas com esta repetição e, em caso de insolvência, pode nem conseguir, no todo ou em parte, reaver o que prestou. Se a falta de aviso foi culposa, o devedor é responsável por estes danos. Cf., por ex., SERRA, 1957: 168 e s., VARELA, 1997: 500, e VASCONCELOS, 2013: 93. No sentido de que compete ao credor informar o fiador de que o devedor já cumpriu, pelo que o recebimento da prestação do fiador dá lugar não apenas ao direito à repetição do indevido, mas, ainda, pelo menos sendo o recebimento de má fé, a um direito de indemnização contra ele, cf. GOMES, 2000: 1078 e s., nota 587.

III O dever de aviso existe, mesmo que a fiança tenha sido prestada sem o conhecimento ou, inclusive, contra a vontade do devedor principal (cf. o art. 628.º, n.º 2). Todavia, em tais situações, pode suceder que este a desconheça sem culpa, o que afasta a sua responsabilidade (cf. também LIMA e VARELA, 1987: 663, e CORDEIRO, 2015: 493). A mensagem da lei é de que, se cumprir, conhecendo a existência da fiança e o fiador, deve avisar este, sob pena de vir a ter que reparar os danos culposamente causados. Manifestando reservas a tal entendimento, cf. GOMES, 2000: 1078, nota 587.

IV – Resulta do exposto que a função primordial do aviso é, como no caso regulado no artigo anterior, evitar um duplo cumprimento, agora primeiro pelo devedor e depois pelo fiador. Mas trata-se de preceito novo, sem correspondência no CC de 1867 e também sem antecedentes conhecidos em ordenamentos estrangeiros (cf. BASTOS, 1993:109, considerando o dever mais difícil de justificar que no caso do artigo anterior); porventura dispensável, dado o princípio da boa fé.

EVARISTO MENDES


Artigo 647.º

(Meios de defesa)

O devedor que consentir no cumprimento pelo fiador ou que, avisado por este, lhe não der conhecimento, injustificadamente, dos meios de defesa que poderia opor ao credor fica impedido de opor esses meios contra o fiador.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios : O artigo 841.º do CC de 1867 dispunha: «O devedor, enquanto não consente no pagamento voluntariamente feito pelo fiador, pode opor-lhe todas as exceções, que, ao tempo do pagamento, poderia opor ao credor. § único. O mesmo pode fazer, se o fiador, tendo pago em consequência de ação contra ele intentada pelo credor, não fez citar o devedor para essa ação». Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, art. 20.º

2. Bibliografia nacional selecionada: BASTOS. J. RODRIGUES, CORDEIRO, Notas ao Código Civil, vol. III, Lisboa, 1993, p. 110; CORDEIRO, 2015: 493; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 900; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 1075 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 112; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 663 e s.

3. Anotação: I – O devedor afiançado pode ter eventualmente meios de defesa (ou exceções) oponíveis ao credor; meios esses que o fiador também poderá, em geral, invocar (art. 637.º) ou, pelo menos, pode corresponder-lhes uma exceção material dilatória, nos termos do artigo 642.º Satisfazendo o fiador a sua obrigação e ficando portanto sub-rogado na posição do credor originário contra o devedor (art. 644.º), este conserva, em princípio, esses meios de defesa, que poderá opor agora ao fiador-credor (cf. o art. 585.º, aplicável por força do art. 588.º, apesar do âmbito do art. 594.º, e a anotação II ao art. 644.º). Todavia, o preceito em análise limita esta possibilidade em dois casos: i) quando o devedor, apesar da existência de tais meios de defesa, tiver consentido no cumprimento pelo fiador; e ii) quando o fiador o avisar de que vai cumprir, se, injustificadamente, lhe não der notícia desses meios de defesa.

a) Havendo um consentimento (sem reservas) do devedor, justifica-se a solução legal, de resto já constante do artigo 841.º do CC de 1867, porque, neste caso, ocorrendo um cumprimento indevido, é ele o responsável (cf. LIMA e VARELA, 1987: 663, nota 1) ou a concordância «significa que o devedor entende não haver meios de defesa oponíveis», não podendo portanto, mais tarde, vir a «desencantá-los» contra ao fiador (GOMES, 2000: 1082). Cf. também LEITÃO, 2016: 112 (a «solução justifica-se por razões de tutela da boa fé do fiador, evitando-se que este seja surpreendido com a invocação pelo devedor de exceções com que não contava quando decidiu cumprir a obrigação»).

b) Sobretudo quando a fiança seja solidária, pode também o fiador avisar o devedor de que tenciona ou vai cumprir, seja porque o credor lho exigiu, seja porque quer evitar as consequências da mora ou o seu agravamento, seja por motivos reputacionais ou outras razões. Neste caso, resulta da segunda parte do preceito em análise que o devedor tem o ónus de lhe dar conhecimento de eventuais meios de defesa oponíveis ao credor. Caso o não faça, injustificadamente, uma vez adquirido o crédito pelo fiador mediante sub-rogação, o devedor fica impedido de fazer valer contra ele tais meios de defesa.

c) O devedor tem o ónus de informar o fiador não apenas da existência de meios que tanto ele como o fiador, este nos termos do artigo 637.º, poderiam opor ao credor, mas também de direitos de impugnação que conferem ao fiador uma exceção dilatória, nos termos do artigo 642.º, n.º 2 (cf. GOMES, 2000: 1080).

II – Embora a lei não o diga expressamente, é possível afirmar que sobre o fiador impende também – em geral, quer a fiança tenha sido prestada com o consentimento ou o conhecimento do devedor, quer não tenha – um ónus: o de avisar o devedor da sua intenção de cumprir a obrigação fidejussória (cf. GOMES, 2000: 1077 e s.). Com efeito, se o não fizer, fica privado da informação relativa à existência de eventuais meios de defesa do devedor suscetíveis de serem opostos por si ao credor (art. 637.º) ou que lhe permitiriam recusar o cumprimento (art. 642.º), meios esses que lhe podem ser opostos mais tarde pelo devedor quando pedir a este o cumprimento. É, portanto, satisfazendo esse ónus que faz nascer na esfera jurídica do devedor o assinalado ónus legal de o informar acerca de tais meios de defesa (cf. GOMES, 2000: 1080 e 1081).

III – Numa grande parte das fianças (fora os casos previstos no art. 628.º, n.º 2, 1ª parte), existe, contudo, uma relação especial entre o fiador e o devedor, porventura recondutível ao mandato (cf., por ex., GOMES, 2000: 360 e ss., 1076 e s.). Neste caso, o regime constante do artigo em análise deve ser integrado com o que dela resulta.

a) A primeira questão que tal integração suscita consiste em saber se sobre o fiador impende apenas o ónus de aviso referido na nota anterior ou se, antes de cumprir, ele tem o dever de avisar o devedor, para este lhe dar conhecimento de eventuais meios de defesa oponíveis ao credor. Pelo menos em geral, sendo tais meios de defesa oponíveis quer ao credor originário quer ao fiador sub-rogado na respetiva posição credora (cf. o art. 585.º, aplicável por força do art. 588.º), é no mínimo duvidosa a existência de semelhante dever (no sentido de que, mesmo quando existe uma relação especial entre o fiador e o devedor, este dever não existe, cf. GOMES, 2000: 1077).

b) A segunda questão consiste em saber se, apesar da falta de aviso por parte do fiador, o ónus que o artigo em análise faz recair, em geral, sobre o devedor pode, neste contexto especial e à luz da boa fé, derivar do simples conhecimento de que o credor reclamou ou pretende reclamar o crédito ao fiador e/ou de que o fiador tenciona cumprir a obrigação fidejussória. Pode, inclusive, com aviso ou com este simples conhecimento, questionar-se se sobre o devedor não recairá um dever de comunicação dos meios de defesa. A resposta afigura-se positiva. Existem, até, meios de defesa, como a prescrição da obrigação afiançada, consumada ou iminente, que o devedor pode ter que comunicar ao fiador, independentemente de qualquer aviso da parte deste de que tenciona cumprir ou de ter obtido aquele conhecimento por outra via. O mesmo vale para um acordo de recuperação do devedor concluído ao abrigo do RERE (criado pela Lei 8/2018, de 2 de março) – o qual, ocorrendo uma redução da obrigação afiançada, implica, em princípio, uma correspondente redução da obrigação fidejussória (art. 19.º, n.º 7).

Na verdade, atendendo ao sentido normal da prestação de uma fiança não profissional (máxime, a pedido do devedor), à boa fé e ao que eventualmente haja sido acordado, como observa GOMES (2000: 1079 e s.), desta relação especial decorre – ou poderá decorrer –, inclusive, um dever contratual do devedor afiançado com um conteúdo mais vasto: o «de colocar o fiador em posição de não ter de cumprir com os seus próprios meios» ou «de diligenciar no sentido de o fiador não ter que cumprir», máxime satisfazendo o credor ou acordando com este a sua liberação (cf. também o art. 648.º); e, não sendo viável essa liberação, de o informar dos meios de defesa que poderia opor ao credor. O incumprimento do dever é suscetível de gerar uma obrigação de indemnizar, nos termos gerais (cf., ainda, GOMES, 2000: 1079).

IV O fiador pode, por sua vez, dispor de meios pessoais oponíveis ao credor, como sucederá, por exemplo, se for titular de um contracrédito compensável. Se não fizer uso deles, nem por isso pode o devedor, quando o fiador sub-rogado lhe reclamar o cumprimento da obrigação, opor-lhe qualquer exceção relacionada com o assunto. Mas admite-se a existência de exceções respeitantes à fiança que, não tendo caráter pessoal, poderão ser invocadas pelo devedor. Assim sucederá, por exemplo, se a prestação fidejussória dependia do preenchimento de certa condição e este preenchimento não ocorreu, porque, neste caso, o fiador cumpre sem estar obrigado a isso (cf., neste sentido, SERRA, 1957: 167, LIMA e VARELA, 1987: 664, nota 2). O assunto merece ser repensado, verificando, designadamente, se, em casos como estes, existe ou não sub-rogação legal, nos termos do artigo 644.º; e, não havendo, se há pelo menos, in casu, sub-rogação voluntária pelo credor, nos termos do artigo 589.º Cumprindo o fiador obrigação prescrita (mantendo-se não prescrita a obrigação afiançada), cf. a nota X ao artigo 644.º

EVARISTO MENDES


Artigo 648.º

(Direito à liberação ou à prestação de caução)

É permitido ao fiador exigir a sua liberação, ou a prestação de caução para garantia do seu direito eventual contra o devedor, nos casos seguintes:

a) Se o credor obtiver contra o fiador sentença exequível;

b) Se os riscos da fiança se agravarem sensivelmente;

c) Se, após a assunção da fiança, o devedor se houver colocado na situação prevista na alínea b) do artigo 640.º;

d) Se o devedor se houver comprometido a desonerar o fiador dentro de certo prazo ou verificado certo evento e já tiver decorrido o prazo ou se tiver verificado o evento previsto;

e) Se houverem decorrido cinco anos, não tendo a obrigação principal um termo, ou se, tendo-o, houver prorrogação legal imposta a qualquer das partes.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios : O artigo 844.º do CC de 1867 estabelecia: «O fiador pode, ainda antes de haver pago, exigir, que o devedor pague a dívida, ou o desonere da fiança, nos seguintes casos: 1.º Se for demandado judicialmente pelo pagamento; 2.º Se o devedor decair de fortuna, e houver risco de insolvência; 3.º Se o devedor pretender ausentar-se do reino; 4.º Se o devedor se tiver obrigado a desonerar o fiador em tempo determinado, que já tenha decorrido; 5.º Se a dívida se tornar exigível pelo vencimento do prazo; 6.º Se houverem decorrido dez anos, não tendo a obrigação principal termo prefixo, e o fiador o não for por título oneroso. § único. No caso do n.º 5.º, poderá também o fiador exigir, que o fiador proceda contra o devedor, ou contra ele próprio, admitindo-lhe o benefício da excussão; e se o credor assim o não fizer, não responderá o fiador pela insolvência do devedor». Vejam-se também, designadamente, o § 755 do BGB e os artigos 2032 do CCfr (hoje, 2309) e 1953 do CCit. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 193 e ss. (e art. 24.º), 222 e ss.

2. Bibliografia nacional: BASTOS, J. RODRIGUES, Notas ao Código Civil, Lisboa, 1993, pp. 110 e s.; BASTOS, M. BRITO, «Deveres acessórios de informação. Em especial, os deveres de informação do credor perante o fiador»,RDS V, 2013, 1-2, pp. 181-281 (cit. M. BASTOS); CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 493-498; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 900 e s.; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 835 e ss., 852 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 112 e s.; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 664-666; SERRA, VAZ, Anotação ao Ac.STJ de 31.05.1968, RLJ 102, 1969/70, 213-224;VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 501 e ss.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 93 e s.

3. Jurisprudência : Acs.STJ de 31.05.1968, RLJ 102, 1969/70, 212 e s., com anotação de SERRA, VAZ, e de 5.03.2002 (01A3971); ac.TRE de 11.12.2003 (2131/03-2).

4. Anotação: I A presente subsecção relativa às relações do devedor com o fiador termina com adicionais salvaguardas deste último, reconhecendo-lhe o preceito, em certas circunstâncias, o direito de exigir do devedor que o libere da sua obrigação de garantia - nomeadamente satisfazendo o credor ou convencendo-o a prescindir da fiança - ou que lhe preste caução (cf., v.g., SERRA, 1969/70: 223, COSTA, 2012: 901, GOMES, 2000: 851, e a nota II). Antes de mais, pode o devedor ter-se comprometido para com o fiador, expressa ou tacitamente (GOMES, 2000: 862), a desonerá-lo da fiança até ao termo de certo prazo ou ocorrendo certo evento. Sendo esse o caso, o fiador, uma vez transcorrido o prazo ou uma vez verificado o evento, pode exigir-lhe a sua liberação [al. d)]. Em alternativa, ou se a liberação se mostrar inviável, pode exigir-lhe que preste caução (cf. o art. 623.º), para garantir o seu direito contra ele se vier a satisfazer o credor ficando sub-rogado na posição jurídica deste (cf. o art. 644.º) (cf. também a nota II). No caso da al. e), está em causa uma proteção do fiador contra uma vinculação temporalmente indefinida ou excessiva. Nos restantes casos (als. a) a c)), o direito justifica-se porque o risco assumido pelo fiador se tornou mais real e concreto, havendo a possibilidade de ter que cumprir efetivamente a sua obrigação fidejussória passado «do plano das hipóteses para o da crua realidade» (cf. GOMES, 2000: 835). Porém, apesar disso, o preceito tem caráter dispositivo, podendo a sua aplicação ser limitada ou arredada, sem pôr em causa a qualificação da garantia como fiança (tal apenas acarreta uma fiança com maior risco, se elenco for restringido) (assim, GOMES, 2000: 843, 852 e s., 870); e nada impede também uma renúncia ao exercício do direito ou a verificação de circunstâncias que tornem este abusivo.

a) O preceito, que segue em boa medida o disposto no artigo 844.º do CC de 1867, embora com diferenças, aplica-se tanto à fiança onerosa como à fiança gratuita (cf. GOMES, 2000: 845 e s., e, ainda, SERRA, 1957: 225 e s.) e quer o fiador tenha ou não o benefício da excussão (cf. GOMES, 2000: 836 e s., 854 e s.), embora a fiança profissional (onerosa) apresente especificidades (cf. GOMES, 2000: 857). Mas há casos em que a sua aplicação fica excluída (cf. a nota VII). Sobre a aplicação ao subfiador, cf. GOMES, 2000: 871 e ss.

b) O direito existe quer a obrigação afiançada esteja vencida quer não esteja (cf. GOMES, 2000: 851), embora tal influa nas modalidades de efetivação do mesmo (cf., por ex. SERRA, 1969/70: 223, e a nota II), e é um direito contra o devedor, não contra o credor; respeita às relações internas entre fiador e devedor, diferentemente do que sucede, por ex., no artigo 653.º, que prevê uma liberação do fiador por impossibilidade de sub-rogação, e no artigo 654.º, respeitante à possibilidade de liberação quando a obrigação afiançada é futura.

c) Quanto ao conteúdo do direito, decorre da lei que, verificada alguma das situações especificadas nas suas alíneas, o fiador pode exigir ao devedor a sua liberação ou a prestação de caução (cf. SERRA, 1957: 227 e ss.). Sendo ambas as soluções – liberação e prestação de caução - viáveis, o texto da lei não é inteiramente claro no sentido de que a opção pertence ao fiador; embora essa seja a sua interpretação mais natural e também aquela que tem sido defendida na doutrina (cf. GOMES, 2000: 850).

d) Pode pôr-se, ainda, a questão de saber se a enunciação legal dos casos em que o direito existe é taxativa ou constitui uma tipologia delimitativa, admitindo extensão por analogia caso a caso ( analogia legis). No sentido de que há taxatividade, embora se admita a interpretação extensiva, cf. BASTOS, 1993: 111, nota 2 (solução também preferível para SERRA, 1957: 226, mas expressa em termos dubitativos). Afirmando também o caráter excecional da ação do fiador contra o devedor antes do pagamento e circunscrevendo-a aos casos indicados no preceito, sem prejuízo de poder ser acordada a sua ampliação, redução ou supressão, cf. GOMES, 2000: 870.

II – A lei não indica de que modo poderá ocorrer a liberação. Compete ao devedor a escolha dos meios para a efetivar. Genericamente, estando a dívida já vencida ou gozando o devedor do benefício do prazo (cf. o art. 779.º) (ou se o credor aceder a receber a prestação antecipadamente), ela pode consistir na satisfação do direito de crédito (por cumprimento da obrigação garantida ou por outro modo). Mas pode também, estando a obrigação vencida ou não, resultar de um acordo com o credor, mormente «em troca» da substituição da fiança por outra garantia (fiança ou não), da assunção pelo devedor de adicionais compromissos, etc. (cf. SERRA, 1969/70: 223, LIMA e VARELA, 1987: 664, nota 1, GOMES, 2000: 846 e 851, COSTA, 2012: 901, que refere ainda a hipótese de o devedor conseguir que um terceiro satisfaça o credor sem ficar sub-rogado no direito deste, e FARRAJOTA, 2017: 827, nota 2).

Na hipótese da al. d), havendo um prazo dentro do qual o devedor se obrigou a liberar o fiador (ou, em alternativa, a prestar caução), findo o prazo o fiador pode, em princípio, exigir ao devedor a imediata liberação ou a prestação de caução (cf. GOMES, 2000: 846). Se o dever de liberar resultar da ocorrência de certo evento ou ocorrer uma das situações contempladas nas restantes alíneas, o fiador deve conceder ao devedor um prazo razoável (cf., ainda, GOMES, 2000: 846 e s.).

Não cumprindo o devedor o dever de liberação em apreço, a sua efetivação coerciva pode ser difícil, mormente quando a obrigação afiançada não esteja vencida (cf. GOMES, 2000: 847 e ss., indicando vias possíveis de satisfazer o interesse do fiador). Daí a importância do «sucedâneo» da prestação de caução. Quanto a esta, importa ter presente, designadamente, o artigo 625.º e o artigo 912.º do CPC.

III – Como se observou (nota I), aquilo que está em causa, na al. d), é, designadamente, o decurso de um prazo no termo do qual surge o direito do fiador contra o devedor, a exonerá-lo ou a prestar caução (cf. SERRA, 1957: 201 e s.). Trata-se, portanto, de uma situação distinta da que ocorrerá quando a fiança é prestada por certo prazo, findo o qual caduca (cf. LIMA e VARELA, 1987: 665, nota 5). Sobre ela, para maiores desenvolvimentos, cf. GOMES, 2000: 861 e ss. Observou-se igualmente que, no caso da al. e), está em causa uma proteção do fiador contra uma vinculação temporalmente indefinida ou excessiva. Sobre ele, veja-se a nota V. Além destes casos, a lei ainda reconhece ao fiador o direito a exigir ao devedor principal a sua liberação – ou, em alternativa, o direito de exigir a prestação de caução – em situações, nas quais a sua posição de fiador sofre um agravamento substancial, que torna inexigível a manutenção, sem mais, da sua vinculação (cf. também FARRAJOTA, 2017: 828, nota 2).

Pertence a este terceiro grupo de casos, em primeiro lugar, a situação em que o credor já tenha obtido contra o fiador uma sentença executável (al. a)). Com efeito, nesta situação, a efetivação da garantia está iminente. Compreendem-se, ainda, aquelas situações em que o devedor se tiver colocado em condições de não poder ser demandado ou executado no território nacional continental ou insular (al. c)) e em que os riscos da fiança se tenham agravado sensivelmente (al. b)).

IV – Como observam, por exemplo, GOMES (2000: 856 e ss.) e FARRAJOTA (2017: 828, nota 3), o CC de 1867, a respeito dos riscos, apenas aludia à diminuição da fortuna do devedor e ao seu risco de insolvência (cf. o art. 844.º), pelo que, neste caso, o âmbito da lei vigente (al. b)) é maior, abrangendo também circunstâncias alheias à situação patrimonial do devedor, como a desvalorização de garantias prestadas por terceiros, a invalidação de outras garantias prestadas conjuntamente com a fiança em causa, etc. (cf. também SERRA, 1957: 197 e s., considerando a anterior exigência de risco de insolvência excessiva e a relevância de fatores alheios à fortuna do devedor). O agravamento sensível dos riscos pode decorrer de circunstâncias alheias ao devedor, não sendo necessária a verificação de um comportamento culposo deste (cf., por ex., GOMES, 2000: 857 e s., LIMA e VARELA, 1987: 665, nota 3, VARELA, 1997: 502, FARRAJOTA, 2017: 828, nota 3). Salienta-se, no entanto, que, apesar de o leque de circunstâncias a considerar ser maior, a principal causa do agravamento sensível do risco continua a ser a da deterioração fora do normal da situação patrimonial do devedor, havendo, em virtude dela, objetivamente, um justificado receio (i) de o fiador vir a ter de cumprir, por ser provável não vir o devedor a estar em condições de o fazer (dado relevante nas fianças não profissionais), e/ou (ii) de, satisfazendo o crédito, não conseguir recuperar o que teve que prestar (cf. GOMES, 2000: 856 e s.; acerca de outros riscos para além desta impossibilidade/dificuldade de recuperação do prestado, cf. também pp. 870 e s.). Sobre os deveres de informação relativos a este agravamento do risco, cf. o ac.STJ de 5.03.2002 e, mais em geral, CORDEIRO, 2015: 454 e ss., GOMES, 2000: 578 e ss., M. BASTOS, 2013: 238 e ss. Sobre a justificação e um possível âmbito alargado da hipótese legal, cf. GOMES, 2000: 857 e 868.

V No caso da al. e), está em causa, como se observou (nota I), a proteção do fiador contra uma vinculação temporalmente indefinida ou excessiva (cf., por ex., VARELA, 1997: 503); proteção que é completada, noutro plano, com a conferida pelo artigo 654.º, 2ª parte. Reconhece-se aqui ao fiador o direito de exigir ao devedor que o libere da fiança ou que preste caução em duas situações: i) se a obrigação principal não tiver termo, uma vez decorridos 5 anos (a contar da data da constituição da fiança – GOMES, 2000: 865); ii) se a obrigação principal tiver termo, mas o prazo for prorrogado por força de disposição legal, impondo-se a prorrogação a qualquer das partes. A este respeito, escreveu SERRA (1957: 223): «A razão por que se admite o direito de liberação do fiador, quando tenha decorrido certo prazo e a obrigação principal não tenha um termo, é que, se a obrigação tem um termo, o fiador sabe, se não limitou a fiança, que esta dura como a obrigação principal, e, se aquela obrigação não tem um termo, não é razoável que o fiador tenha de se sujeitar indefinidamente ao encargo da fiança, com os inerentes riscos». Dada a razão de ser da norma, a mesma não tem aplicação se a fiança possui uma duração determinada, caducando findo o prazo estipulado ou após certo número de prorrogações da obrigação garantida (GOMES, 2000: 863).

Discute-se se o «termo» a que alude o preceito pode ser não apenas um termo certo, mas também um termo incerto (pense-se, por ex., na fiança de uma obrigação vitalícia). GOMES (2000: 864 e s.) entende que esse termo deve ser um termo fixo. Contra, cf., por ex., LIMA e VARELA, 1987: 665 e s., VARELA, 1997: 503, SERRA, 1957: 225 e artigo 24.º, n.º 1, 6.º Embora haja argumentos favoráveis a ambas as soluções, importa observar que as situações concretas podem ser muito diversas e que, em algumas delas, também se justificam as preocupações de defesa do fiador subjacentes à norma, exceto se este for um profissional, máxime um banco (cf., ainda, GOMES: 865 e s.).

VI As fianças prestadas por sócios a favor de financiadores da sociedade, mormente sócios controladores, gerentes ou administradores, requerem análise especial. Com efeito, por um lado, assinala CORDEIRO (2015: 495) que, na Alemanha, há o entendimento de que o correspondente § 775 do BGB é aplicável sobretudo às fianças emitidas por sócios, a pedido da sociedade ou no interesse desta; situação em que existe uma especial e forte relação entre fiador e devedor. Por outro lado, a perda da qualidade de sócio é um fator relevante a ponderar e não é de excluir que, em certos casos, o exercício do direito contenda com o dever de fidelidade ou lealdade do sócio. Em parte sobre o tema, veja-se o ac.TRE de 11.12.2003.

VII Há casos em que o direito à liberação em apreço deve considerar-se excluído. Assim sucede: i) se entre o devedor e o fiador não existir uma especial relação que o justifique, como sucede quando a fiança é prestada sem o conhecimento ou contra a vontade do devedor (cf., por ex., GOMES, 2000: 837 e ss., 843 e s.); ii) se a fiança tiver sido prestada animo donandi ou animo solvendi (salvo, neste caso último caso, se apenas a vinculação fidejussória tiver sido assumida deste modo) (cf. GOMES, 2000: 844 e s.); e iii) no caso do fideiussor in rem suam (cf. GOMES, 2000: 845). Além disso, justifica-se uma redução teleológica do preceito nas situações previstas no artigo 632.º, n.º 2 (cf., ainda, GOMES, 2000: 855 e s.). Sobre o tema, além de GOMES, cf. . SERRA, 1957: 226 e s., CORDEIRO, 2015: 496, COSTA, 2012: 901, VASCONCELOS, 2013: 93 e s., e LEITÃO, 2016: 113, nota 282.

EVARISTO MENDES


SUBSECÇÃO IV

Pluralidade de fiadores

Artigo 649.º

(Responsabilidade para com o credor)

1. Se várias pessoas tiverem, isoladamente, afiançado o devedor pela mesma dívida, responde cada uma delas pela satisfação integral do crédito, exceto se foi convencionado o benefício da divisão; são aplicáveis, naquele caso, com as ressalvas necessárias, as regras das obrigações solidárias.

2. Se os fiadores se houverem obrigado conjuntamente, ainda que em momentos diferentes, é lícito a qualquer deles invocar o benefício da divisão, respondendo, porém, cada um deles, proporcionalmente, pela quota do confiador que se encontre insolvente.

3. É equiparado ao fiador insolvente aquele que não puder ser demandado, nos termos da alínea b) do artigo 640.º

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios : No CC de 1867, o artigo 835.º dispunha: «Sendo vários os fiadores do mesmo devedor, e pela mesma dívida, cada um deles responde pela totalidade, não havendo declaração em contrário; mas, sendo demandado só algum deles, pode fazer citar os outros para com ele se defenderem ou serem conjuntamente condenados, cada um na sua parte; e, só neste caso, responderá na falta deles. § único. O benefício da divisão, entre os confiadores, não se verifica nos casos em que se não dá excussão contra o principal devedor». Cf., ainda, o artigo 836.º Vejam-se também, designadamente, o § 769 do BGB e os artigos 1946 e 1947 do CCit e 497 do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 29 e ss.

2. Bibliografia nacional: CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 482 e s.; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 901-903; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 912 e s., «Pluralidade de fiadores e liquidação das situações fidejussórias», Estudos de Direito das Garantias, II, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 31-53, 45 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 113 e s.; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 666 e s.; MARTINEZ, P. ROMANO / PONTE, P. FUZETA DA, Garantias de cumprimento, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, p. 95; VARELA, J. M. ANTUNES, Das obrigações em Geral, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 503 e ss.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 96.

3. Jurisprudência : Acs.TRP de 9.05.1996 (9420948) e de 26.06.2012 (69506/11.2YIPRT.P1); ac.TRC de 21.02.2006, CJ 2006/I, pp. 32-38; ac.TRG de 11.09.2012 (5088/10.3TBBRG-A.G1).

4. Anotação: I A presente subsecção ocupa-se da pluralidade de fiadores (arts. 649.º e 650.º, nºs 1 a 3) e da eventual existência de um subfiador (ou seja, alguém que abona ou afiança um fiador perante o credor – art. 630.º) (art. 650.º, n.º 4). Regula-se no artigo em análise a corresponsabilidade dos fiadores perante o credor (plano externo) e no artigo seguinte as relações entre eles (plano interno). Conceito central em ambos os artigos é o de «benefício da divisão». Trata-se da possibilidade reconhecida a cada fiador de limitar o cumprimento da respetiva obrigação fidejussória, aferida em princípio pela obrigação principal (art. 634.º), a uma parte da mesma, tendo em conta a existência de mais fiadores.

a) Note-se que, havendo dois ou mais fiadores, em regra, cada um deles responde, perante o credor, pela totalidade da dívida afiançada (cf. os arts. 631.º, n.º 1, e o art. 634.º). Tal como sucede com o privilégio da excussão prévia (art. 638.º), a lei apenas lhes reconhece, em certos termos, este benefício da divisão da obrigação por cabeça, que eles podem invocar ou não (cf., por ex., VARELA, 1997: 505, GOMES, 2010: 50 e ss.). Daí que, por um lado, se um confiador satisfizer plenamente o direito de crédito (cf. o art. 627.º, n.º 1) ou o fizer numa medida superior à que lhe caberia se invocasse o benefício, adquire por sub-rogação este direito (art. 644.º) e não pode exigir do credor a repetição do que pagou em excesso (cf., por ex., SERRA, 1957: 39 e s., VARELA, 1997: 505, GOMES, 2010: 53 e 60, e VASCONCELOS, 2013: 96). Por outro lado, isso permite compreender o disposto na parte final do n.º 2 do artigo em análise (cf., ainda, GOMES, 2010: 47, 52 e s., e «infra», nota V).

b) Note-se também que um confiador que possui este benefício tanto pode beneficiar, cumulativamente, do privilégio da excussão prévia (será a regra na fiança civil - art. 638.º), como responder solidariamente com o devedor afiançado perante o credor (cf. o art. 640.º e o art. 101.º do CCom). E vice-versa: um confiador que responda perante o credor pela totalidade da dívida, sem poder invocar o benefício da divisão, pode ter ou não o benefício da excussão prévia (cf. também GOMES, 2010: 50). A solução do Código é, portanto, distinta da do CC de 1867 (cf. SERRA, 1957: 40 e s.).

c) Note-se, ainda, que, como em geral acontece, o regime legal está pensado para a fiança de obrigações pecuniárias. Não sendo esse o caso, mormente tratando-se de fianças relativas a obrigações indivisíveis (cf. o art. 535.º), torna-se necessária uma leitura condizente (cf. SERRA, 1957: 35, GOMES, 2010: 40 e s.).

II No artigo que se analisa, o segundo conceito relevante a esclarecer é o de atuação dos confiadores «isoladamente» ou «conjuntamente», uma vez que, no primeiro caso, a regra legal (supletiva) é a de que não há benefício da divisão (n.º 1); e, no segundo caso, a regra é a inversa (n.º 2). A distinção não existia no CC de 1867 (cf. «supra»). Os conceitos têm de ser objeto de interpretação conjugada, uma vez que fiança isolada é aquela que não é conjunta e vice-versa. E, estando em causa o modo ou a medida da responsabilidade de cada fiador perante o credor, como observa GOMES (2010: 47 e s.), a perspetiva de análise deve ter em conta não apenas os fiadores, mas também este.

Pode dizer-se que os fiadores atuam isoladamente se prestam cada qual a sua fiança de forma independente, cada um por si, através de declarações verbais ou escritas separadas, sem o acordo ou a comparticipação dos demais e/ou sem haver um conhecido interesse ou motivo comum para a prestação das garantias; quer dizer, em circunstâncias em que, pelo menos aparentemente e aos olhos do credor, cada um deles ignora e/ou não tem em conta a existência de outras fianças. Atuam conjuntamente quando o fazem de forma concertada, movidos por um interesse ou causa comuns e tendo em conta as declarações negociais uns dos outros; havendo uma presunção de facto de que isso é assim quando tais declarações são emitidas uno actu, designadamente, quando todos assinam o mesmo documento, contemporaneamente ou em momentos sucessivos. Cf., mais desenvolvidamente, GOMES, 2010: 47 e ss. (considerando pertinentemente, inter alia, indícios de prestação conjunta a circunstância de as fianças serem prestadas por sócios nesta qualidade ou num mesmo documento), e, ainda, LIMA e VARELA, 1987: 666 e s., nota 1, VARELA, 1997: 505, e VASCONCELOS, 2013: 96, estes aparentemente mais exigentes quanto às fianças conjuntas, na medida em que aludem à existência de uma relação negocial ou atuação concertada entre os fiadores (na linha de SERRA, 1957: 35, nota 43).

III Embora a lei ligue à atuação isolada dos confiadores uma responsabilidade de cada um pela totalidade do crédito (se a fiança não foi limitada – art. 631.º, n.º 1), sem benefício da divisão deste por cabeça, e à atuação conjunta este benefício, a regra é supletiva (cf., por ex., LIMA e VARELA, 1987: 667, nota 1, GOMES, 2010: 48 e s.); e, portanto, só intervém se, aplicando as regras gerais da interpretação dos negócios jurídicos (arts. 236.º a 238.º), não for possível determinar se cada fiador se responsabilizou com ou sem o benefício da divisão.

Assim, quanto às fianças que se enquadram no conceito legal de fianças «isoladas», ou seja, de fianças independentes umas das outras, nada impede que algum ou todos os fiadores, para a eventualidade de haver mais fiadores, se reserve o benefício da divisão. Não será uma hipótese frequente, mas é possível; e por isso o legislador ressalvou-a (n.º 1). Além disso, para se apurar, em concreto, se estamos perante fianças juridicamente independentes, deve ter-se em conta, designadamente, que a prestação de fianças de forma separada, mesmo havendo um interesse comum dos fiadores na sua prestação, pode haver resultado de uma exigência do credor, justamente, para assegurar uma responsabilidade total e sem reservas de cada fiador; daí que este dado formal seja um importante indício nesse sentido.

Sendo as fianças conjuntas, embora a lei não o diga, nada impede também, tendo em conta os princípios gerais, um afastamento convencional da regra legal que concede aos confiadores o benefício da divisão (cf., ainda, por ex., LIMA e VARELA, 1987: 667, nota 1, GOMES, 2010: 48 e s.). Pode, inclusive, defender-se que, se se convenciona o afastamento do benefício da excussão, o sentido natural da estipulação é, igualmente, o do afastamento do benefício da divisão (cf. GOMES, 2010: 49). Na jurisprudência, embora versando diretamente sobre o artigo 650.º, cf. o ac.TRC de 21.02.2006. Veja-se também o ac.TRP de 26.06.2012.

IV Quando as fianças são independentes umas das outras, sem o benefício da divisão, manda-se aplicar, mutatis mutandis, o regime das obrigações solidárias (n.º 1; cf. os arts. 512.º e ss.); ou seja, o credor tem, designadamente, a faculdade de exigir a totalidade da obrigação a cada um dos fiadores, podendo demandá-los a todos conjuntamente ou escolher quem demanda, e o cumprimento por um deles libera os demais perante o credor (arts. 512.º, n.º 1/1ª parte, 517.º, n.º 1, e 523.º).

V Havendo uma pluralidade de confiadores que se obrigaram conjuntamente (em vez de um feixe de fianças independentes) – como sucede tipicamente com as fianças prestadas por sócios a favor de credores da sociedade, pelos pais a favor dos filhos, etc. – a regra legal vai, em certa medida, na linha da que se estabelece para as obrigações plurais, que é a da conjunção ou parciariedade (cf. os arts. 513.º e 534.º, bem como no campo mercantil, o art. 100.º do CCom; distinguindo os conceitos, cf. GOMES, 2010: 36 e ss.): cada um pode invocar o benefício da divisão, isto é, mesmo que lhe seja exigido o cumprimento integral da obrigação, pode opor-se a tal pretensão do credor, limitando a sua responsabilidade a uma quota-parte da mesma (n.º 2). Presume-se que cada um dos confiadores, mormente quando entre eles exista uma relação negocial, só se quis responsabilizar por uma parte da obrigação.

Nada impede, porém, apesar do silêncio da lei, que se convencione uma corresponsabilidade «solidária» dos confiadores (cf. a nota anterior). Além disso, ficando insolvente um dos confiadores – ou se um deles, por facto posterior à fiança, deixar de poder ser demandado ou executado no território nacional continental ou insular (cf. o n.º 3) – tal responsabilidade reparte-se pelos demais (n.º 2) (cf. SERRA, 1957: 36 e ss., 41, afirmando que isto significa de certo modo considerar cada fiador como abonador dos outros, justificando-se tal porque, se assumem conjuntamente a fiança, sem fazerem restrições, dão ao credor a impressão de que a dívida fica garantida por eles, responsabilizando-se, nestes casos, uns pelos outros; mesmo que o insolvente tenha um subfiador, isso não será, sem mais, de excluir). Se o confiador insolvente tiver um subfiador, este responde pela quota do mesmo, perante o credor (cf. LIMA e VARELA, 1987: 667, nota 2, acrescentando que também responde perante os confiadores que pagaram além da sua quota; quanto este aspeto, cf., no entanto, o artigo 650.º).

VI – Se for demandado apenas um dos fiadores e este quiser fazer intervir os demais, para com ele se defenderem ou serem conjuntamente condenados (tenha-se presente o disposto no artigo 650.º), tem à sua disposição o incidente da intervenção provocada (arts. 316.º e ss. do CPC). Se a obrigação garantida for indivisível, observa GOMES (2010: 40 e s.) que haverá uma situação de conjunção em sentido próprio: o credor terá que demandar conjuntamente todos os fiadores, aplicando-se o regime das obrigações indivisíveis (cf. o art. 535.º; cf. também a ressalva de SERRA, 1957: 35).

VII – O credor pode liberar um dos confiadores. Sobre este caso dispõe o artigo 866.º, n.º 2. Veja-se o respetivo comentário.

VIII No caso das fianças prestadas pelos sócios de certa sociedade em garantia de responsabilidades desta, sucede frequentemente a prestação de fiança também pelos respetivos cônjuges. Via de regra, pretende-se com isso, nos casos de comunhão conjugal, evitar dúvidas acerca dos bens que respondem pela dívida. Cf., no entanto, o ac.TRP de 9.05.1996. Acerca dos bens que respondem por fianças prestadas por ambos os cônjuges casados no regime de comunhão de bens, cf., ainda, o ac.TRG de 11.09.2012. Quanto ao problema da responsabilidade dos confiadores, nas relações internas, havendo cônjuges envolvidos, cf., no comentário ao artigo seguinte, a nota V.

EVARISTO MENDES


Artigo 650.º

(Relações entre fiadores e subfiadores)

1. Havendo vários fiadores, e respondendo cada um deles pela totalidade da prestação, o que tiver cumprido fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor e, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, contra os outros fiadores.

2. Se o fiador, judicialmente demandado, cumprir integralmente a obrigação ou uma parte superior à sua quota, apesar de lhe ser lícito invocar o benefício da divisão, tem o direito de reclamar dos outros as quotas deles, no que haja pago a mais, ainda que o devedor não esteja insolvente.

3. Se o fiador, podendo embora invocar o benefício da divisão, cumprir voluntariamente a obrigação nas condições previstas no número anterior, o seu regresso contra os outros fiadores só é admitido depois de excutidos todos os bens do devedor.

4. Se algum dos fiadores tiver um subfiador, este não responde, perante os outros fiadores, pela quota do seu afiançado que se mostre insolvente, salvo se o contrário resultar do ato da subfiança.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: O artigo 845.º do CC de 1867 dispunha: «Sendo dois ou mais os fiadores do mesmo devedor, e pela mesma dívida, o que houver pago a dívida na sua totalidade poderá exigir de cada um dos outros a parte que lhes cabe proporcionalmente. § 1.º Se algum se achar insolvente, recairá a sua quota sobre todos proporcionalmente. § 2.º A disposição deste artigo só é aplicável, quando o pagamento é pedido judicialmente, ou quando o devedor principal se acha falido». O artigo 847.º estabelecia: «O abonador do fiador é responsável para com os outros confiadores, no caso de insolvência do fiador, a quem abonou, nos mesmos termos em que o seria o fiador». Vejam-se também, designadamente, o § 774 do BGB e os artigos 2033 do CCfr. (hoje, 2310), 1948 e 1954 do CCit. e 497 do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 178 e ss.

2. Bibliografia nacional selecionada: CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, p. 483; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 902 e s.; CUNHA, CAROLINA, Manual de Letras e Livranças, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 127-137, e «Pluralidade de avalistas e direito de regresso», Anotação ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 7/2012, Cadernos de Direito Privado n.º 40 – outubro/dezembro de 2012, pp. 41-67; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 912 e ss., «Pluralidade de fiadores e liquidação das situações fidejussórias», Estudos de Direito das Garantias, II, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 31 e ss., 53 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 113 e ss., 117; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 668 e s.; MARTINEZ, P. ROMANO / PONTE, P. FUZETA DA, Garantias de cumprimento, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, p. 96; SERRA, A. VAZ, Anotação ao ac.STJ de 28.01.1969 RLJ 103, 1970/71, pp. 108-112, Anotação ao ac.STJ de 11.05.1971, RLJ 105, 1972/73, pp. 111-121, e Anotação ao ac.STJ de 28.11.1972, RLJ 106, 1973/74, pp. 363-367 e 373-383; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 505 e ss.; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 96 e s.; VASCONCELOS, PEDRO PAIS, «Pluralidade de avales por um mesmo avalizado e Regresso do avalista que pagou sobre aqueles que não pagaram», AAVV, Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais, vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 947-978, e «Avales dos sócios de sociedades comerciais», DSR 11, 2014, pp. 13-34, em especial, pp. 17-19. Veja-se também o artigo anterior.

3. Jurisprudência : AcUJ (STJ) n.º 7/2012, de 17.07.2012 (aval), DR de 17.7.2012; acs.STJ de 11.05.1971, RLJ 105, 1972/73, pp. 106-111, com anotação de SERRA, VAZ, de 28.11.1972, RLJ 106, 1973/74, pp. 360-363, com anotação de SERRA, VAZ, de 30.10.2002 (02B2739), de 27.01.2005 (04B4067) e de 25.05.2017 (3958/07.5TVLSB.L2.S1); ac.TC n.º 204/04, de 24.03.2004; ac.TRC de 21.02.2006, CJ 2006/I, pp. 32-38.

4. Anotação: I – Como se assinala na anotação ao artigo anterior, a presente subsecção (arts. 649.º e 650.º) ocupa-se da pluralidade de fiadores e da eventual existência de um subfiador – ou seja, alguém que abona ou afiança um fiador perante o credor (art. 630.º). Regula-se no artigo precedente a corresponsabilidade dos fiadores perante o credor (plano externo). O artigo que agora se comenta rege as respetivas relações internas.

Contemplam-se três situações fundamentais. Primeira: a da existência de uma pluralidade de fiadores que respondem individualmente pela totalidade da prestação – seja porque prestaram de forma independente as respetivas fianças e não foi convencionado o benefício da divisão (cf. o art. 649.º, n.º 1), seja porque legal ou convencionalmente a sua co-obrigação fidejussória é solidária – quando a prestação devida haja sido realizada por um deles (n.º 1) (veja-se a nota II). Segunda: a da existência de uma pluralidade de fiadores que têm o benefício da divisão - seja porque, apesar de as fianças terem sido prestadas isoladamente, se convencionou este benefício (cf. o art. 649.º, n.º 1), seja porque os fiadores se obrigaram conjuntamente (cf. o art. 649.º, n.º 2) – subdistinguindo a lei duas hipóteses, (i) a de ter havido o cumprimento integral da obrigação por um dos confiadores (ou um cumprimento em parte superior ao que lhe cabia) após haver sido judicialmente demandado para o efeito (n.º 2) (veja-se a nota III) e (ii) a de o confiador haver cumprido voluntariamente, isto é, sem ter sido demandado (n.º 3) (veja-se a nota IV). Terceira: a da existência de uma subfiança (n.º 4) (veja-se a nota V).

Pode suceder, na segunda situação, que o credor exija a cada confiador apenas a sua parte ou que, exigindo a totalidade, seja invocado com sucesso o benefício da divisão. A lei não se ocupa desta hipótese, aplicando-se as regras gerais; ou seja, cada um dos fiadores, cumprindo a sua parte, ficará sub-rogado na posição do credor contra o devedor (art. 644.º). Entre os fiadores não há outras relações (assim, LIMA e VARELA, 1987, 668, nota 2).

II Havendo uma responsabilidade dos confiadores pela totalidade da prestação e a realização desta por um deles, dispõe o n.º 1: i) que o mesmo fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor (reafirmando o que já resultava do art. 644.º); e ii) que fica também sub-rogado nesses direitos do credor contra os outros fiadores, de harmonia com as regras das obrigações solidárias – cabendo salientar nestas regras a da igualdade de responsabilidades dos co-obrigados (art. 516.º).

a) Pode discutir-se se o legislador se exprimiu em termos adequados ou se aquilo que o fiador adquire contra os demais fiadores é um direito de regresso, como sucede no regime das obrigações solidárias (art. 524.º). Neste segundo sentido, podem ver-se, designadamente, COSTA, 2012: 902 e nota 2, bem como VARELA, 1997: 506, LIMA e VARELA, 1987: 668, nota 1, LEITÃO, 2016: 114, e FARRAJOTA, 2017: 830, nota 1; cf., igualmente, a alusão ao direito de regresso no n.º 3 do preceito. GOMES (2010: 55 e ss., 2000: 915 e ss.) defende, no entanto, na linha de SERRA (1972/73: 113, nota 2, e 1973/74: nota 1 da p. 381, pp. 281 e s.), com argumentos ponderosos, a tese de que em ambos os casos há sub-rogação (podendo o fiador, em alternativa, exercer direito de regresso contra os demais confiadores); e o mesmo parece suceder no ac.STJ de 27.01.2005. Por conseguinte, embora nos refiramos, a seguir, a um direito de regresso dos fiadores entre si, fazemo-lo com esta ressalva.

b) O confiador que pagou pode optar por exercer o direito de crédito contra o devedor principal, em que fica encabeçado por sub-rogação, ou pelo exercício do «direito de regresso», contra os confiadores. Obtendo satisfação pela primeira via, a dívida principal extingue-se e, com ela, as fianças existentes (art. 651.º), ficando precludida a segunda. Se a satisfação for parcial, poderá exercer o direito de regresso quanto à parte em falta, suportando apenas a sua quota-parte de responsabilidade. Se exercer com êxito o direito de regresso, o seu direito contra o devedor fica reduzido à parte restante (cf., por ex., COSTA, 2012: 902). Neste caso, quanto ao que os outros confiadores satisfizeram, ficam eles sub-rogados no crédito contra o devedor (cf. GOMES, 2010: 59).

c) No ac.STJ de 30.10.2002, decidindo um caso em que havia uma pluralidade de fiadores solidários (solidariedade perante o credor), considerou-se que esta solidariedade também se verificava nas relações internas dos fiadores, pelo que, pagando um deles, não estaria, no seu direito de regresso, limitado a agir contra cada um dos demais pela respetiva quota (seria, "por força da lei, titular de um «direito» de regresso perante os confiadores solidários, não se encontrando onerado com o «dever» de demandar todos os esses confiadores solidários, e muito menos tão-somente pela sua quota-parte na dívida afiançada como sugerem os ora recorridos"). Considerando tal solução sem fundamento, cf. GOMES, 2010: 58, nota 76. No sentido de que a responsabilidade dos confiadores perante aquele deles que satisfez o credor respeita à sua quota-parte, cf. o ac.STJ de 25.05.2017.

III – Se um confiador que tem o benefício da divisão foi acionado judicialmente para cumprir e, apesar desse benefício, realiza a prestação integral – obstando a que o processo judicial prossiga, no seu próprio interesse e no interesse presumível dos demais fiadores (máxime, confiadores que prestaram as fianças movidos por um interesse comum) –, determina o n.º 2 que ele tem o direito de reclamar a cada um desses outros confiadores a quota que lhes cabe; se tiver realizado apenas uma parte da prestação mas o houver feito numa medida superior à que lhe cabia, poderá reclamar o que tiver pago a mais. E possui este direito de reclamação mesmo que o devedor esteja solvente; ou seja, mesmo que possa obter deste, efetivamente, a prestação no exercício do direito de sub-rogação que lhe cabe nos termos do artigo 644.º

Como resulta do confronto com o n.º 3, não tem que obter a prévia excussão do património do devedor (cf. GOMES, 2010: 60 e s., aludindo à razão de ser da solução legal). Mas a norma em apreço não é imperativa; podendo designadamente, por convenção, cada um dos confiadores gozar não apenas do benefício da divisão, mas também do benefício da excussão prévia do património do devedor. Neste caso, se o confiador demandado não invocar nenhum dos benefícios, satisfazendo o credor, sujeita-se a que os demais lhe oponham o benefício da excussão prévia, que, se acionados, poderiam invocar contra o credor (cf. GOMES, 2010: 61).

IV Se um confiador que tem o benefício da divisão cumprir voluntariamente, realizando a prestação na sua totalidade ou numa medida superior à que lhe competia, estabelece o n.º 3 que o seu direito de regresso contra os outros confiadores só é admitido depois de excutidos todos os bens do devedor. A solução é, portanto, diferente da prevista para a hipótese anterior (cf. a nota III).

a) O texto da lei suscita dúvidas. Literalmente, a excussão do património do devedor é um requisito da ação contra os demais confiadores (responsabilidade subsidiária), não um mero benefício de excussão entre confiadores; interpretação sustentada por GOMES, 2010: 61 e s. No sentido de que está em causa apenas um tal benefício, cf. LIMA e VARELA, 1987: 669. Também a razoabilidade da solução se presta a discussão. A favor da mesma, cf. GOMES, 2010: 62. Contra, SERRA, 1969/70: 112.

Seja como for, o benefício pode ser afastado convencionalmente - podendo resultar da própria cláusula que afasta o benefício da excussão em geral. Cf. o ac.TRC de 21.02.2006, que também se ocupa da questão de saber como se reparte a responsabilidade entre os confiadores nas fianças prestadas por sócios e respetivos cônjuges, considerando, no caso, que tal deveria ocorrer apenas entre os primeiros, em função das respetivas participações, como terá sido perspetivado entre eles, o que se afigura razoável.

V – No n.º 4, estabelece-se uma regra relativa à subfiança. Prevê-se que o fiador abonado pelo subfiador fique insolvente. Neste caso, o subfiador responde perante o credor (cf. o art. 630.º e a nota V ao art. 649.º). Mas, salvo se outra coisa resultar do ato de subfiança, não responde perante os outros fiadores pela quota do seu afiançado. A sua responsabilidade é, portanto, apenas para com o credor (externa); não perante os demais fiadores, se os houver. O regime diverge do que constava do artigo 847.º do CC de 1867. Cf. SERRA, 1957: 185 e ss., LIMA e VARELA, 1987: 669, nota 3, VASCONCELOS, 2013: 99, e LEITÃO, 2016: 117, bem como a anotação ao artigo 630.º. Considerando que este n.º 4, para tutela do subfiador, contém uma norma que afasta a consequência normal da sub-rogação, sendo repetitivo no quadro de um direito de regresso, cf. GOMES, 2000: 915 e s., 2010: 59.

VI – É controvertido saber se o presente artigo se aplica aos coavalistas. No AcUJ n.º 7/2012, fixou-se a seguinte jurisprudência: «Sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias». Sobre o tema, podem ver-se, designadamente, P. VASCONCELOS (2007: 947 e ss., 2014: 17 e ss.) e CUNHA (2015: 127 e ss.; 128 e ss. acerca da inadequação do regime da pluralidade de fiadores), com mais indicações.

Note-se que, mesmo havendo fianças material e juridicamente independentes umas das outras, relativas a uma dada obrigação afiançada, o artigo em análise manda aplicar às relações entre os fiadores as regras das obrigações solidárias (n.º 1). Por conseguinte, apesar de os avales prestados em conjunto, com referência a certa operação cambiária, serem juridicamente independentes (art. 7 da LULL), neste ponto há analogia das situações, capaz de justificar a doutrina do AcUJ. Considerando conforme à Constituição a norma do n.º 1 do artigo 650.º do CC, quando interpretada no sentido de permitir impor a um avalista a obrigação de pagar a outro avalista parte da quantia que este tenha desembolsado a favor do credor da obrigação cambiária, sem que exista um negócio jurídico entre eles no qual se funde essa imposição, cf. o ac.TC n.º 204/04, de 24.03.2004.

EVARISTO MENDES


SUBSECÇÃO V

Extinção da fiança

Artigo 651.º

(Extinção da obrigação principal)

A extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: No CC de 1867, dispunha o artigo 848.º: «A obrigação do fiador extingue-se com a extinção da obrigação principal, e pelas mesmas causas por que ela se pode extinguir, salvo o que fica disposto no § 1.º do artigo 822.º» [relativo à incapacidade pessoal do devedor principal]. Vejam-se também, designadamente, os artigos 2034 do CCfr. (hoje, 2311) e 509 II do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 234 e ss.

2. Bibliografia nacional: CORDEIRO, 2015, p. 499 (nº 241); COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 903-906; CUNHA, CAROLINA, «Aval em branco e plano de insolvência»,RLJ 145 (2016), pp. 201-232, 204 e ss., 212 e ss., Aval e Insolvência, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 111 e ss., «A execução do avalista após homologação do plano de revitalização do avalizado», anotação ao ac.STJ de 4.05.2017, RLJ 147, 2017, pp. 119-138 (cit. 2017a); FERNANDES, L. CARVALHO / LABAREDA, JOÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2015, pp. 792 e s.;GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 1036 e ss., «A fiança no quadro das garantias pessoais. Aspetos de regime», Estudos de Direito das garantias, I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 7-48; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 115; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 669 e s.; RAMALHO, TIAGO, Código Civil Anotado, coord. de PRATA, ANA, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 1058 e s.; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 494 e 497, 507 e ss.

3. Jurisprudência : Acs.STJ de 4.01.1974 (064888), BMJ 233, 1974, pp. 157-161, de 17.02.1983 (070520) e de 27.04.1999, CJ-STJ 1999/ II, pp. 64-66; ac. TRP de 25.11.2008 (0825839).

4. Anotação: I Se a obrigação afiançada se extingue, por cumprimento ou por modo de extinção legalmente equivalente (dação em cumprimento, compensação, etc.), a obrigação do fiador também se extingue, porque deixa de cumprir a função socioeconómica e jurídica (causa) que a justifica – assegurar ao credor a satisfação do direito de crédito (cf. o art. 627.º, n.º 1, e SERRA, 1957: 68 e s. e, sobretudo, 234, para quem está em causa um efeito decorrente de o fiador apenas assegurar o resultado do cumprimento da obrigação afiançada). Na verdade, tal satisfação já ocorreu, de forma normal, sem que se tenha verificado o risco que a fiança se destinava a cobrir e, portanto, sem que a obrigação fidejussória tenha precisado de ser cumprida. E, tendo ocorrido, dada a sua função ancilar, esta extingue-se. Noutra ótica, vendo a obrigação do fiador como uma obrigação de cumprir obrigação alheia, ela fica sem objeto (cf. LEITÃO, 2016: 115). A própria novação opera, em princípio, tal extinção (art. 861.º). Com efeito, havendo novação da obrigação afiançada, como esta se extingue, sendo substituída por outra, a fiança em princípio também se extingue; mas admite-se reserva expressa em sentido contrário (mesmo art. 861.º). Cf. a este respeito o ac.STJ de 27.04.1999 e a anotação ao artigo 861.º

a) O preceito em análise contém, segundo a opinião corrente, uma manifestação fundamental da acessoriedade da fiança (art. 627.º, n.º 2) (cf., por ex., cf. GOMES, 2000: 1036, e LEITÃO, 2016: 108 e 115). Embora se situe num plano algo semelhante ao do artigo 632.º, que regula um problema de subsistência ou insubsistência da fiança por falta da obrigação afiançada - sendo de realçar aí as hipóteses de o negócio de que provém a obrigação principal ser anulável e vir a ser anulado, porque neste caso a obrigação afiançada, em regra, também se «extingue» -, tem um campo de aplicação distinto (cf. LIMA e VARELA, 1987: 670, nota 3). Na verdade, a obrigação afiançada pode vir a considerar-se inexistente ou insubsistente, por vícios ou falta de pressupostos genéticos, problema de que se ocupa o artigo 632.º; e pode extinguir-se, por cumprimento ou outro modo de extinção das obrigações, nos termos dos artigos 762.º e ss., incluindo a extinção por impossibilidade de cumprimento não culposa (arts. 790.º e s.), e nos termos dos artigos 837.º e ss., situação de que se ocupa o presente artigo. Havendo uma situação de impossibilidade ou falta de cumprimento pontual culposas (arts. 798.º e ss.), aplica-se o artigo 634.º, se não se houver estipulado o contrário. Por esclarecer fica o tratamento a dar às situações em que o negócio fonte da obrigação afiançada vem a ser resolvido, provocando também a «extinção» desta (cf. LIMA e VARELA, 1987: 670, nota 3).

A este respeito, no estudo prévio, observava-se o que se segue. Tendo-se a prestação tornado impossível por causa não imputável ao devedor, este ficaria exonerado e com ele o fiador, salvo se o devedor também respondesse e a fiança abrangesse tal responsabilidade. Sendo a impossibilidade imputável ao devedor, manter-se-iam ambas as obrigações (o que está em sintonia com o art. 234.º); e que, se ela fosse imputável ao fiador, a obrigação deste deveria manter-se em certos termos (cf. SERRA, 1957: 240 e 71, falando neste último local, num dever de indemnizar).

b) A extinção de que fala o artigo pode ser parcial. Ressalva-se, no entanto, o que se diz adiante acerca da insolvência do devedor afiançado (nota V). Acerca dos modos de extinção da obrigação afiançada, veja-se, ainda, a nota III.

c) À semelhança da nulidade e da anulação, a extinção da obrigação afiançada constitui um meio de defesa do devedor, enquadrável no artigo 637.º Mas é também um meio de defesa próprio do fiador, como resulta do preceito em análise (cf. GOMES, 2000: 1036).

II A causa de extinção em análise acresce, naturalmente, a outras causas de extinção próprias da fiança (cf. SERRA, 1957: 234 e 247, VARELA, 1997: 508): por exemplo, se a fiança tem um prazo de duração, findo ele, deixa de vigorar, extinguindo-se a obrigação do fiador. Vejam-se também os artigos seguintes. Mas entre essas causas não se encontra, em princípio, a morte do fiador, uma vez que a posição de fiador constitui uma posição jurídico-patrimonial autónoma, integrando em geral a respetiva herança (cf. CORDEIRO, 2015: 499, citando o ac.TRC de 11.06.1991, BMJ 408, 659), salvo porventura quanto às fianças de obrigações futuras, que devem considerar-se reduzidas às obrigações já existentes à data da morte (cf. GOMES, 2004: 46 e ss.). Para um quadro sintético das causas e dos modos de extinção da fiança, cf. COSTA, 2012: 903-906, e LEITÃO, 2016: 115 e s.

III Se a obrigação afiançada se extingue por cumprimento – acarretando a extinção da fiança - mas o ato de cumprimento vier a ser declarado nulo ou anulado, infere-se do artigo 766.º o seguinte: i) se o motivo da invalidade for imputável ao credor, tiver sido este o seu causador, a fiança, em princípio, não renasce; ii) se, apesar disso, o fiador, na data em que teve conhecimento do cumprimento, conhecia o vício e, portanto, sabia que a extinção da sua obrigação tinha esta contingência, a fiança renasce (cf., por ex., SERRA, 1957: 235 e s., VARELA, 1997: 508, GOMES, 2000: 1038, a respeito da dação). Regras semelhantes existem para outras formas de extinção da obrigação: dação em cumprimento (art. 839.º), compensação (art. 856.º), novação (art. 860.º, n.º 2), remissão (art. 866.º, n.º 3) e confusão (art. 873.º, n.º 2) (cfr., ainda, SERRA, 1957: 236 e ss.). Segundo certa opinião, o não renascimento constitui uma exceção à regra do artigo 289.º, para proteção da boa fé do fiador (cf., designadamente, LIMA e VARELA, 1987: 669, nota 2). Cf., no entanto, GOMES, 2000: 1038 e s., considerando que os efeitos retroativos estabelecidos no artigo 289.º se referem às relações entre as partes e observando que a relação fidejussória é distinta da relação principal.

O problema é, em especial, o seguinte: que sucede se o vício não é imputável ao credor e se o fiador também o desconhecia? Pode afirmar-se, como regra, o renascimento da fiança? A resposta afigura-se positiva; seja com base no artigo 289.º, seja interpretando o artigo 766.º (e os demais com norma semelhante) a contrario, com o eventual apoio do artigo 732.º, relativo à hipoteca. Cf. VARELA, 1997: 181 e s. e 508 (em todos os casos dos arts. 766.º, 839.º, etc., estão expressas duas ideias: o renascimento natural das garantias quando desaparece a causa extintiva da obrigação garantida; e a proteção da boa fé do terceiro garante que confiou na caducidade da garantia, quando o vício que provoca esse desaparecimento decorre de facto imputável ao credor - dolo ou coação da sua autoria, simulação, erro culposo, etc.), e GOMES, 1038 e ss. Cf., ainda, RAMALHO, 2017: 1059, nota ao art. 839.º, distinguindo consoante se trate de nulidade ou anulabilidade/anulação.

IV – No caso do perdão ou remissão (total) da obrigação principal (art. 866.º), observa GOMES (2000: 1046) que se mantém basicamente o regime do artigo 816.º CC de 1867, ou seja, que, em virtude da acessoriedade, a remissão aproveita ao fiador, mesmo que se trate de remissão in personam, ou seja, ainda que o credor pretenda manter intacta a posição face ao fiador.

V – Se o devedor ficar insolvente e for aprovado um plano de insolvência, fixando prazos de vencimento alargados, reduzindo ou extinguindo créditos, etc., o fiador não beneficia do alargamento dos prazos e continua a responder pela totalidade do crédito afiançado. Cumprindo a obrigação, fica sub-rogado na posição do credor contra o devedor insolvente, com as limitações decorrentes do plano. Com efeito, dispõe o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE: «As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.» Acerca dele, cf., designadamente, com mais indicações: FERNANDES e LABAREDA, 2015: 792 e ss.; GOMES, 2015: 330 e ss., 336 e ss.; CUNHA, 2016: 204 e ss., 212 e ss., 2017: 111 e ss. (considerando que verdadeiramente problemática é a segunda parte do referido art. 217.º, n.º 4, do CIRE), 2017a: 123 e ss., 220 e ss.; bem como a anotação ao artigo 631.º (nota V). Havendo a aprovação de um plano de recuperação no âmbito de um PER, cf. a nota VI ao artigo 631.º

Ocorrendo uma moratória ou prazo concedidos voluntariamente pelo credor ao devedor, sem o consentimento do fiador, este não fica vinculado por eles (cf. SERRA, 1957: 170 e s.) e pode ter lugar a aplicação do artigo 652.º, o qual, vencida a obrigação principal (tal como serviu de referência à fiança), permite ao fiador pode provocar a caducidade da garantia (cf., ainda, SERRA, 1957: 250 e s.).

V – Havendo uma pluralidade de fiadores, a remissão concedida a um deles aproveita aos outros na parte do fiador exonerado; mas, se os outros consentirem na remissão, respondem pela totalidade, salvo declaração em contrário (art. 866.º, n.º 2). Cf. também SERRA, 1957: 248 e s., e, com outro enquadramento e diferenciações, 274 e s.

EVARISTO MENDES


Artigo 652.º

(Vencimento da obrigação principal)

1. Se a obrigação principal for a prazo, o fiador que gozar do benefício da excussão pode exigir, vencida a obrigação, que o credor proceda contra o devedor dentro de dois meses, a contar do vencimento, sob pena de a fiança caducar; este prazo não termina sem decorrer um mês sobre a notificação feita ao credor.

2. Sob igual cominação pode o fiador que goze do benefício da excussão exigir a interpelação do devedor, quando dela depender o vencimento da obrigação e houver decorrido mais de um ano sobre a assunção da fiança.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: Vejam-se o artigo 844.º, n.º 5.º e § único, do CC de 1867 e os artigos 510 e 511 do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 203 e ss., 251 e ss.

2. Bibliografia nacional: COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 904; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 1004 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 115; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 670 e s.; SERRA, VAZ, SERRA, VAZ, Anotação ao ac.STJ de 31.05.1968, RLJ 102, 1969/70, pp. 213-224; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, p. 509.

3. Anotação: I – No presente artigo, prevê-se a caducidade da fiança cujo fiador goze do benefício da excussão prévia (cf. os arts. 638.º e ss.) se ocorrerem certas situações de inércia ou inação do credor – suscetíveis de prejudicar o fiador (cf., por ex., LEITÃO, 2016: 115), mormente em face de uma eventual futura insolvência do devedor principal ou do agravamento desta (cf. SERRA, 1957: 206 e ss.) –, após «intimação cominatória» (cf. GOMES, 2000: 1004) dirigida pelo fiador ao credor. O n.º 1 respeita às obrigações afiançadas com prazo, vencendo-se no termo deste; o n.º 2 contempla os casos em que o vencimento da obrigação principal depende de interpelação do devedor (cf. o art. 777.º, n.º 1). O vencimento em causa é aquele que foi estipulado (ou resulta da lei), em função do qual a fiança foi prestada; não, por exemplo, o que decorre de posterior concessão de moratória ou diferimento do vencimento concedidos pelo credor (cf. a nota II).

a) Se a fiança for solidária, como é regra quanto à fiança mercantil (cf. o art. 101.º do CCom), o regime do preceito não se aplica. Se for subsidiária, mas a subsidiariedade se encontrar convencionalmente enfraquecida, não comportando o benefício da excussão prévia dos bens do devedor principal (o fiador tem um benefício da subsidiariedade mais fraco que o legal – cf. a anotação ao art. 238.º), pode discutir-se a sua aplicação, embora literalmente a solução seja negativa. Sobre a justificação da circunscrição do campo de aplicação do preceito aos casos em que o fiador tem o benefício da excussão prévia, cf. SERRA, 1957: 215 e ss. Todavia, acerca da ratio do preceito (forçar o credor a definir-se, de modo a evitar uma vinculação do fiador por tempo indeterminado), considerando com argumentos ponderosos que ela vale tanto para a fiança simples como para a fiança solidária e que, portanto, se mostra injustificada a circunscrição da vantagem em apreço à primeira, diferentemente do que sucedia no CC de 1867, cf. GOMES, 2000: 1006 e ss. Este autor considera, ainda, o preceito inaplicável à fiança a termo certo (2000: 710 e ss., 1010).

b) Há situações em que, apesar do prazo (legal ou contratual), é exigida interpelação, com fixação de novo prazo, para o devedor entrar em mora (cf. os arts. 203.º, n.º 3, e 285.º, nºs 2 e 3, do CSC). Pode, no entanto, entender-se que tal exigência apenas se justifica para a constituição desta mora ou, inclusive, de uma mora qualificada, para efeitos societários apenas (cfr. os arts. 204.º e 285.º, n.º 4, do CSC). A ser assim, havendo um fiador da obrigação de entrada, o que conta é o prazo da obrigação garantida, estipulado ou, na falta de estipulação, legalmente fixado.

c) Há casos, ainda, em que se torna necessário fixar judicialmente um prazo (art. 777.º n.ºs 2 e 3) e existem outras situações especiais (cf., designadamente, o art. 778.º). Sobre eles veja-se a nota IV.

II – Vencida a obrigação com prazo (legal ou estipulado), pode o fiador notificar o credor exigindo-lhe que proceda contra o devedor (n.º 1). O credor dispõe, então, do prazo de dois meses a contar do vencimento da obrigação para o fazer; ou, se a notificação ocorrer depois do primeiro mês, dispõe do prazo de um mês a contar da mesma. Se o credor o não fizer, dentro do prazo, a fiança caduca (cf. a nota V).

a) A lei não esclarece se a notificação ao credor deve incluir a advertência de que, terminado o prazo, a fiança caduca. O silêncio parece, no entanto, de interpretar no sentido de que tal requisito não é necessário. O credor deve conhecer a lei.

b) Tendo a obrigação um prazo de vencimento estipulado, pode haver uma eventual dilatação do mesmo por acordo com o credor, à margem da fiança prestada. Em geral, semelhante modificação pode ser invocada pelo fiador (uma vez que a sua obrigação é acessória), mas não lhe é oponível, aplicando-se o n.º 1 do preceito em análise como se ela não existisse. O mesmo vale para a hipótese de a obrigação se vencer, por decurso do prazo, legal ou negocial, mas o credor conceder ao devedor uma moratória (extrajudicial). Cf. SERRA, 1957: 251 e 1969/70: 214 e s., LIMA e VARELA, 1987: 670, nota 1, VARELA, 1997: 509, GOMES, 2000: 1006, com mais indicações).

c) Em especial, numa situação pré-insolvencial ou de risco grave de insolvência, o n.º 7 do artigo 19.º do RERE (Regime extrajudicial de recuperação de empresas, aprovado pela Lei 8/2018, de 2 de março) dispõe: «Salvo se o acordo de reestruturação dispuser diversamente, a redução da obrigação do devedor determina aredução da obrigação dos condevedores ou dos terceiros garantes em termos equivalentes aos que resultem para o devedor do acordo de reestruturação». Se em vez da redução houver a concessão de uma moratória ou a fixação de prazo de vencimento mais favorável ao devedor, o preceito também parece de aplicar; a razão de ser é a mesma (economicamente, tal significa uma redução do valor do crédito). Isso tem três consequências. Primeira: por força da acessoriedade da obrigação fidejussória, o fiador pode invocar o acordo, na medida em que lhe é favorável; a própria lei o confirma. Segunda: apesar da acessoriedade (art. 631.º), no acordo pode estabelecer-se que ele não aproveita ao fiador (tendo em conta o fim da fiança, os pressupostos e a finalidade do acordo justificam este «desvio»). Terceira: levanta-se a questão de saber se o acordo, celebrado sem a participação do fiador, prejudica a aplicação do preceito em análise ou se, pelo contrário, ele não lhe é oponível, pelo que continua a poder fazer uso da faculdade que este lhe reconhece, considerando o prazo da obrigação tal como a afiançou. A questão merece uma resposta diferenciada: se o acordo não beneficia o fiador, o preceito aplica-se; se o beneficia, por um lado, não parece razoável que possa ter os dois benefícios – o do acordo e o que lhe é reconhecido pelo artigo em análise. Mas, por outro lado, a solução do acordo pode não lhe interessar e o afastamento do preceito, na falta de consenso, carece de base legal, que dificilmente se encontra na norma insolvencial. Resta saber se ela pode encontrar-se no próprio artigo que se comenta.

Ocorrendo a declaração de insolvência do devedor ou a aprovação de um plano de recuperação no âmbito de um PER, o risco coberto pela fiança verificou-se, pelo que o preceito em análise não se aplica. Cf. a anotação ao artigo 631.º (notas V e VI).

d) No CC de 1867, vencendo-se o prazo da obrigação afiançada, o fiador podia exigir ao devedor o cumprimento desta ou a sua desoneração (art. 844.º n.º 5). No Código vigente, os casos em que o fiador pode exigir ao devedor a sua desoneração são as estabelecidas no artigo 648.º, tendo desaparecido esta última faculdade.

III O n.º 2 ocupa-se dos casos em que o vencimento da obrigação principal depende de interpelação do devedor (cf. o art. 777.º, n.º 1). Em tais hipóteses, sendo a fiança subsidiária (no sentido do art. 638.º, n.º 1), o fiador cuja garantia tenha sido constituída há mais de um ano pode notificar o credor para que ele interpele o devedor. Se o credor o não fizer no prazo de um mês a contar da notificação, a fiança caduca (cf. a nota V).

a) O texto da lei não refere este segundo prazo de caducidade, mas, como deve haver um prazo razoável, a contar da notificação, para que a caducidade opere, afigura-se justificada a aplicação do prazo previsto no n.º 1. Isto será pelo menos assim se se entender, em conformidade com a letra da lei, que o decurso do prazo de um ano é pressuposto do direito conferido ao fiador, de exigir a interpelação.

b) Como acontece com as obrigações com prazo contempladas no n.º 1, também aqui a lei não esclarece se a notificação ao credor deve incluir a advertência de que, terminado o prazo, a fiança caduca. Pode, ainda, suceder que a obrigação esteja sujeita a termo incerto e interpelação. Neste caso, a parte da norma relativa ao prazo de um ano não pode interpretar-se literalmente (cf. GOMES, 2000: 1005 e s.). Em caso de insolvência ou pré-insolvência, cfr. a nota anterior.

IV – A lei não esclarece, ainda, o que acontece nos casos em que se torna necessário pedir ao tribunal a fixação judicial de prazo para o cumprimento da obrigação afiançada (cfr. o art. 777.º, n.º 2). Uma solução plausível será a de aplicar, por analogia, o disposto no n.º 2; ou seja, o fiador subsidiário cuja fiança se tenha constituído há mais de um ano, sem que devedor e credor tenham acordado no prazo, pode exigir ao credor que requeira essa fixação, sob pena de, não o fazendo no prazo de um mês, a fiança caducar; mesmo se a fixação do prazo também pode ser requerida pelo devedor. Por regular ficou também a hipótese de competir ao credor fixar o prazo da obrigação (cf. o art. 777.º, n.º 3), justificando-se a mesma solução, apesar de, na falta de fixação pelo credor, o devedor a poder requerer ao tribunal (cf., neste último caso, GOMES, 1010, nota 308).

V – Verificados os pressupostos assinalados, a lei determina, sem mais, a caducidade da fiança. No estudo prévio, a situação era configurada como um caso de responsabilidade civil culposa do credor, salientando-se que, apesar da omissão deste, o fiador pode não ter prejuízo ou este ser limitado (cf. SERRA, 1957: 213 e ss. e art. 29.º). Ainda no estudo prévio, determinava-se que o fiador não poderia renunciar antecipadamente aos direitos reconhecidos no preceito, por tal ser perigoso para si (cf. SERRA, 1957: 212 e s., e art. 28.º, n.º 8). Note-se, no entanto, que a situação não é a mesma quando encarada como um caso de perda de direitos decorrente de conduta negligente e danosa e quando for vista como um puro caso de caducidade, independente de culpa.

EVARISTO MENDES


Artigo 653.º

(Liberação por impossibilidade de sub-rogação)

Os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: O artigo 853.º do CC de 1867 dispunha: «Os fiadores, ainda que solidários, ficarão desonerados da sua obrigação, se, por algum facto do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos, privilégios e hipotecas do credor». Vejam-se também, designadamente, o § 776 do BGB e os artigos 2037 do CCfr. (hoje, 2314), e 1955 do CCit. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 253 e s., 269 e ss.

2. Bibliografia nacional: CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 499 e s.; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 904; CUNHA, CAROLINA, Aval e Insolvência, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 111 e ss.; FERNANDES, L. CARVALHO / LABAREDA, JOÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2015, pp. 792 e s.; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 917 e ss., 924 e ss.; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 115 e s.; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 671 e s.;SERRA, A. VAZ, Anotação ao ac.STJ de 11.05.1971, RLJ 105, 1972/73, pp. 111-121, «Algumas questões em matéria de fiança», sep. do BMJ 95 e 96, Lisboa, 1960, pp. 5-99, 43 e ss.; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 510 e s.

3. Jurisprudência : Acs.STJ de 11.05.1971, RLJ 105, 1972/73, pp. 106-111, com anotação de SERRA, VAZ, de 27.01.1993 (081849), CJ-STJ 1993/I, pp. 81-84, de 27.01.1993 (080635), BMJ 423, 1993, pp. 483-493, de 12.07.2011 (5209/04.1TBSTB.E1.S1) e de 24.04.2012 (18/07.2TBTBC.P1.S1); acs.TRL de 1.02.2007, CJ 2007/I, pp. 100-102, de 4.02.2010 (5022/07.8TVLSB.L1-8) e de 14.04.2016 (10971/15.7 T8LSB.L1-6); acs.TRP de 21.03.2006 (0620873), de 16.06.2011 (18/07.2TBTBC.P1), de 3.05.2016 (544/14.7TBPFR-A.P1) e de 30.01.2017 (3388/12.7TBMTS.P1); acs.TRC de 16.02.2016 (4751/15.7T8VIS-B.C1) e de 11.08.2016 (1343/14.1TBFIG-A.C1); ac.TRG de 23.02.2017 (484/13.7TBBRG.G1).

4. Anotação: I – Um aspeto essencial da fiança – de salvaguarda do fiador – consiste na sua sub-rogação na posição jurídica do credor, contra o devedor, quando cumpre a obrigação afiançada (art. 644.º). Pode suceder que, devido ao comportamento do credor – ativo ou omissivo (cf. SERRA, 1957: 276 e s.) –, essa sub-rogação não seja possível, no todo ou em parte. Neste caso, dispõe o preceito em análise que o fiador, ainda que solidário (ou seja, ainda que responda como principal pagador – cfr. o art. 640.º e o art. 101.º do CCom), fica desonerado da fiança, também no todo ou em parte (cf. SERRA, 1957: 271 e ss.).

a) Pelo texto da lei, a desoneração opera ope legis (a obrigação fidejussória extingue-se ou reduz-se; cf. também VARELA, 1997: 510). Distingue-se, portanto, dos casos em que o fiador tem o direito de exigir do devedor a sua desoneração (cf. o art. 648.º) ou de se liberar da fiança (art. 654.º). Mas não é de excluir uma interpretação do preceito no sentido de que o fiador tem apenas um direito potestativo, que pode usar ou não, como sucede na hipótese do artigo 638.º, n.º 2. Cf. GOMES, 2000: 935 e ss., inclinando-se para esta segunda solução apesar do teor literal do preceito. Sobre a repartição do ónus da prova, cf., ainda, GOMES, 2000: 935, nota 837. Este autor observa também que o credor não tem um dever mas um simples ónus – o credor perde uma posição favorável (GOMES, 2000: 937). Mesmo havendo uma desoneração automática, importa ter presente o decidido no ac.TRG de 23.02.2017: «III – A eventual extinção da fiança, por impossibilidade de sub-rogação, traduz-se numa exceção perentória de direito material, do tipo extintivo, a necessitar de ser invocada pela parte a quem aproveita e estando, por inerência, vedado o seu conhecimento oficioso.»

b) Doutrina semelhante à do preceito em análise encontrava-se consagrada no artigo 853.º do CC de 1867, que esclarecia ficar o fiador desonerado, designadamente, se não pudesse ficar sub-rogado, não apenas nos direitos, mas também nos privilégios e hipotecas do credor. Cfr. LIMA/VARELA, 1987: 671, nota 1, e VARELA, 1997: 510.

c) Quanto às razões que justificam a aplicação do artigo, distinguindo razões jurídicas (por ex., incapacidade de pessoa coletiva) e razões materiais (por ex., o credor não intervém na insolvência do devedor reclamando aí o seu crédito), cf. CORDEIRO (2015: 500, citando, a respeito das segundas, os acs. do TRL de 1.02.2007 e de 4.02.2010), e a nota IV.

d) Na posição jurídica do credor, em relação à qual a sub-rogação pode ser prejudicada, compreendem-se tanto direitos anteriores ou contemporâneos da fiança, como direitos posteriores a ela, conhecidos ou não do fiador (cf. SERRA, 1957: 278 e s.; cf. também LIMA e VARELA, 1987: 671 e s., nota 2, e VARELA, 1997: 519), incluindo os acessórios do crédito (cf. o art. 644.º e o respetivo comentário). A perda de direitos pode consistir na diminuição do seu valor (por ex., o credor autoriza o devedor a cortar árvores de prédio hipotecado) (cf. SERRA, 1957: 279 e s., e VARELA, 1997: 511). Havendo culpa do credor e do fiador, admitindo uma liberação parcial, cf. SERRA, 1957: 281. Sobre o assunto, cf., ainda, SERRA, 1957: 284 e s., e, com maior desenvolvimento, GOMES, 2000: 931 e ss., 933 e ss.

e) O direito reconhecido ao fiador pode ser excluído por acordo do fiador com o credor? Em sentido afirmativo, cf. SERRA, 1957: 282. Sobre a possibilidade de ser estendido a outros interessados, designadamente garantes e devedores solidários, para além do fiador, cf. SERRA, 1957: 283 e s.

II – LIMA e VARELA indicam, exemplificativamente, os seguintes casos em que a desoneração se verifica, em virtude de um comportamento do credor (1987: 671, nota 1): este não reclamou, no processo de insolvência movido contra o devedor afiançado, o seu crédito (cf. também os acs.TRL de 1.02.2007 e de 4.02.2010, bem como o Ac.TRP de 3.05.2016) ou não deduziu uma preferência em concurso de credores; o credor renunciou a um privilégio, não registou uma hipoteca ou remitiu a obrigação de outro fiador. No ac.TRP de 3.05.2016 esclarece-se que o artigo não tem aplicação se a falta de reclamação do crédito na insolvência se dever à inexistência de bens, com o consequente encerramento do processo insolvencial por insuficiência da massa insolvente, e não a uma conduta omissiva do credor. Cf. também GOMES, 2000: 929 e ss., máxime, 931, e VARELA, 1997: 510. Note-se, no entanto, que, se o credor não reclama o crédito na insolvência do devedor, o fiador pode fazê-lo, nos termos do artigo 95.º, n.º 2, do CIRE, que dispõe: «O direito contra o devedor insolvente decorrente do eventual pagamento futuro da dívida por um condevedor solidário ou por um garante só pode ser exercido no processo de insolvência, como crédito sob condição suspensiva, se o próprio credor da referida dívida a não reclamar.» Sobre o assunto, cf., por ex., o ac.TRC de 16.02.2016.

Na jurisprudência, têm interesse, ainda, o ac.STJ de 24.04.2012, o ac.TRL de 14.04.2016 e o ac.TRP de 16.06.2011, admitindo a desoneração dos fiadores de obrigação decorrente de um mútuo com garantia hipotecária, porque o mutuante renunciou à hipoteca (ou esta foi cancelada com o seu consentimento). Um outro caso de desoneração porque o credor impediu a sub-rogação foi decidido pelo ac.STJ de 12.07.2011. Aqui, a sócia única de uma sociedade por quotas – credora da mesma enquanto fornecedora de bens e sendo os créditos garantidos por fianças bancárias – esvaziou o património da sociedade fazendo-se reembolsar, com o produto da venda dos ativos, de suprimentos de que também era titular e de capital investido, acionando em seguida os fiadores. O Supremo aplicou o artigo em análise, considerando que a credora afiançada impediu deliberadamente a sub-rogação dos fiadores nos créditos afiançados, que deixaram de ter património capaz de responder por eles.

III – A desoneração pode ser total ou parcial: apenas se verifica na medida em que a sub-rogação não seja possível. Ou seja, se a sub-rogação apenas puder dar-se em relação a uma parte do crédito (por ex., 50%), a garantia fica reduzida a essa parte (assim, LIMA e VARELA, 1987: 671, nota 1, VARELA, 1997: 510).

IV – A própria lei esclarece que a impossibilidade da sub-rogação pode decorrer de facto positivo do credor ou de simples omissão. Porém, como observa GOMES (2000: 925), o facto tem que ser imputável ao credor, mas não tem que ser culposo (o problema não é de responsabilidade civil e, sendo o facto imputável ao credor, é razoável que este perca a vantagem da fiança) (cf. também o ac.TRP de 16.06.2011). Este autor alude ainda ao nexo de causalidade entre o facto do credor e a impossibilidade de sub-rogação (p. 828) e à eventual concorrência de um comportamento do fiador que demonstre, objetivamente, desinteresse ou desconsideração pela conservação do direito na titularidade do credor, suscetível de o tornar não merecedor da tutela conferida pelo preceito (pp. 925 e ss.).

a) A este respeito, LIMA e VARELA (1987: 671, nota 2) e VARELA (1997: 510) referem uma impossibilidade prática de sub-rogação. Note-se, contudo, que não basta uma mera impossibilidade prática de cobrança do crédito correspondente à sub-rogação, decorrente de circunstâncias que afetam a consistência económica, mas não jurídica, do mesmo crédito, como acontece com a sobrevinda insolvência do devedor. Neste sentido, cf., designadamente, o ac.STJ de 27.01.1993, GOMES, 2000: 929 e ss., e, com pequena ressalva, SERRA, 1957: 279 e s. Em sentido análogo, decidiu-se no ac.TRC de 11.08.2016: «3. As dificuldades de realização prática do crédito, nomeadamente por insolvência do devedor, não relevam para efeitos da aplicação do regime do art. 653º CC: a sub-rogação no crédito nunca fica impedida, pelo que os direitos cuja sub-rogação pode ficar impedida pelo comportamento do credor são os que se encontram associados ao crédito (ex. perda da garantia hipotecária)».

Na verdade, tais situações podem ter tratamento adequado no quadro dos artigos 638.º, n.º 2 (benefício da liberação do fiador em caso de não satisfação do crédito por comportamento culposo do credor), ou 648.º (direito à liberação ou prestação de caução) (assim, GOMES, 2000: 930).

b) Ainda na mesma linha, decidiu-se no ac.TRG de 23.02.2017: «V – Em termos substantivos, a decretação da insolvência do devedor principal não determina a extinção da obrigação do fiador, por não se traduzir numa situação de desaparecimento voluntário das garantias e/acessórios do crédito e, cumulativamente, por o CIRE salvaguardar a posição dos garantes, ao permitir-lhes a reclamação do seu crédito, sob condição suspensiva (cf. art. 95.º, n.º 2, do CIRE).» Note-se, no entanto, que, no contexto da insolvência, pode haver um ato voluntário do credor de algum modo prejudicial para a sub-rogação, sem que se aplique o preceito em análise. É o que decorre do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE. Na verdade, segundo esta disposição legal, se a dívida afiançada for reduzida ou inclusive extinta, pelo plano de insolvência relativo ao devedor afiançado, o fiador continua obrigado como se vinculou – mesmo que o credor garantido tenha dado o seu consentimento a tal redução ou extinção (acerca deste aspeto, confrontando o preceito com o anterior CPEREF, que, consentindo o credor na afetação do crédito, dispunha que os seus direitos contra os garantes ficavam afetados na mesma medida, cf., por ex., FERNANDES e LABAREDA, 2015: 792 e s., e CUNHA, 2017: 115 e s.). Mais: apesar de o fiador continuar obrigado desse modo, o direito que adquire por sub-rogação, nos termos do artigo 644.º, é aquele que, por força do plano, existir na esfera jurídica do credor, com a configuração que aí tiver. Este regime é incompatível com a aplicação do artigo em análise. Mais desenvolvidamente, vejam-se as notas V e VI ao artigo 631.º

c) Acerca do ponto anterior, importa, em todo o caso, observar o seguinte: o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE tem subjacente a ideia de que o credor afiançado não dará o seu consentimento nem deixará homologar um plano que o coloque numa situação plausivelmente menos favorável do que aquela que teria se houvesse a liquidação do património do devedor insolvente (cf., a este respeito, o artigo 216.º, n.º 1, al. a), do mesmo Código). Na verdade, a função do fiador (e outro tanto vale, mutatis mutandis, para os demais garantes) é assegurar ao credor a satisfação do seu crédito, cobrindo o risco de insolvência do devedor, não suportar os custos ou encargos da recuperação deste. Sendo aprovado um plano, perde o benefício da excussão prévia (cf. a nota III ao art. 640.º), mas, materialmente, não deve ficar numa situação pior do que aquela que teria se houvesse aquela liquidação (cf. também a norma de salvaguarda dos sócios do art. 198.º, n.º 3, do CIRE e o art. 145.º-D, n.º 1, al. c), do RGIC). Isso seria claramente contrário ao sentido razoável do negócio de fiança e também ao sentido dos artigos 627.º e 634.º Pode «presumir-se» que normalmente assim sucederá, mas ao fiador deve ser dada a oportunidade de demonstrar, in casu, o contrário, tanto mais que o credor pode ter um interesse estratégico na aprovação do plano (por ex., a conservação do devedor como cliente) suscetível de compensar a perda patrimonial que a redução ou extinção do crédito afiançado representa. A entender-se de outro modo, o CIRE terá provocado uma modificação essencial e surpreendente no instituto da fiança.

V Para a compreensão do preceito, tem, ainda, interesse a seguinte doutrina, constante do ac.TRP de 30.01.2017: «I – O regime consagrado no artigo 653.º do Código Civil tem aplicação nos casos de perda de garantias associadas ao crédito, como as hipotecas que, por culpa do credor, se extinguem; mas não quando a garantia foi acionada pelo credor para obter a satisfação do seu crédito sem que tenha recorrido à garantia pessoal da fiança. II – É admissível que um deficiente exercício da garantia pelo credor possa também integrar a previsão do artigo 653.º do Código Civil, quando esse mau exercício esteja na origem da insatisfação total ou parcial do crédito garantido. III – Se o resultado da venda do imóvel hipotecado beneficiou o credor hipotecário, que o adquiriu por um preço substancialmente inferior ao seu valor de mercado, e prejudicou os fiadores que viram o crédito afiançado não ser totalmente satisfeito através do acionamento da hipoteca, estamos perante uma situação que poderá ser equacionada, à luz das regras da boa fé, se a Ré vier a exigir dos fiadores o pagamento da parte do crédito que ainda não se encontra satisfeita, mas não é motivo para que se declare extinta a fiança, nos termos do artigo 653.º do Código Civil. IV – O facto de o credor não ter informado oportunamente os fiadores da existência de uma situação de incumprimento da obrigação afiançada e da venda do imóvel, cuja hipoteca também garantia essa obrigação, traduz-se numa violação de um dever acessório de informação, podendo a consequência desse incumprimento residir na reparação dos prejuízos dele resultantes para os fiadores ou no não agravamento da posição destes, em consequência da omissão de informação, não havendo, contudo, razões para que tal omissão determine a completa liberação da obrigação assumida pelos fiadores.»

VI – No sentido de que a desoneração em apreço é uma decorrência da acessoriedade, não se aplicando às garantias autónomas, cf. o ac. do STJ de 27.06.1993 (BMJ) e o ac. do TRP de 21.03.2006.

EVARISTO MENDES


Artigo 654.º

(Obrigação futura)

Sendo a fiança prestada para garantia de obrigação futura, tem o fiador, enquanto a obrigação se não constituir, a possibilidade de liberar-se da garantia, se a situação patrimonial do devedor se agravar em termos de pôr em risco os seus direitos eventuais contra este, ou se tiverem decorrido cinco anos sobre a prestação da fiança, quando outro prazo não resulte da convenção.

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: Vejam-se, designadamente, os artigos 1956 do CCit. e 510 do CO suíço. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 60 e s., 254 e ss., e artigo 32.º

2. Bibliografia nacional selecionada: ALMEIDA, C. FERREIRA DE, Contratos III, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 200 e ss.; CORDEIRO, Anotação ao Ac.STJ de 19.02.1991, ROA, ano 51, 1991, pp. 525 e ss., 543 e ss., Tratado, X, 2015, pp. 441, 500 e s., 509-526; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, pp. 905 e s.; FARO, FREDERICO, «Da validade da fiança omnibus», Garantias das obrigações, org. de MONTEIRO, SINDE, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 249 e ss., Fiança omnibus no âmbito bancário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 93 e ss.; GOMES, JANUÁRIO, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 621 e ss., 765 e ss., «O mandamento da determinabilidade na fiança omnibus e o AUJ nº 4/2001», Estudos de Direito das Garantias, I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 109-137, «A fiança no quadro das garantias pessoais. Aspetos de regime», ibidem, pp. 7-48, 39 e ss., «Fiança do arrendatário face ao NRAU», Estudos de Direito das Garantias, II, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 67-112; LEITÃO, L. MENEZES, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 116, 120-123; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 672; MARTINEZ, P. ROMANO / PONTE, P. FUZETA DA, Garantias de cumprimento, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pp. 93, 96 e ss.; MENDES, EVARISTO, «Fiança geral», RDES, 1995 (n.ºs 1-3), pp. 97-158, em especial, 132 e ss., 136 e ss., «Aval e fiança gerais», DJ XIV, 2000, t. 1, pp. 149-169, «Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio», RDS VII, 2015, pp. 587-616; MESQUITA, M. HENRIQUE, «Fiança», CJ 1986/IV, pp. 23-29; SERRA, A. VAZ, «Algumas questões em matéria de fiança», sep. do BMJ 95 e 96, Lisboa, 1960, pp. 5-99, 94 e ss., Anotação ao ac.STJ de 2.11.1973, RLJ, ano 107, 1974-75, pp. 254-262; VARELA, J. M. ANTUNES, Das obrigações em geral, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, p. 511; VASCONCELOS, L. MIGUEL PESTANA DE, Direito das Garantias, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 100-109.

3. Jurisprudência : Ac.UJ n.º 4/2001 (STJ), 23.01.2001, DR I Série A de 8.03.2001; acs.STJ de 2.11.1973, RLJ 107, 1974/75, pp. 252-254, com anotação de SERRA, VAZ, de 11.02.1988, BMJ 374, 1988, pp. 455 e ss., de 3.02.1999 (98B1005), CJ-STJ 1999/I, pp. 75-78 = BMJ 484, 1999, pp. 333-338, de 10.02.2001 (01A3353), de 30.10.2001 (01A2313), de 29.11.2001 (01B3592), de 19.05.2005 (05A1092), de 19.12.2006 (06A4127), de 3.06.2007 (07A205), de 18.10.2007 (07A2141), de 4.12.2007 (07B4135), de 31.03.2009 (08B3815), de 8.09.2011 (6065/04) e de 8.03.2012 (448/07.0TBCBR-A.C2.S1); acs.TRL de 15.06.2010 (6065/04.9TVLSB.L1-1) e de 7.12.2016 (1691-13.8TBTVD.L1-6); ac.TRP de 24.10.2016 (1120/14.0T2OVR-A.P1); acs.TRC de 9.02.2010 (60/09.9TBMGR-A.C1), de 29.03.2011 (448/07.0TBCBR-A.C2), de 20.03.2012 (2421/09.4TBVIS-A.C1) e de 15.01.2013 (5903/09.4TBLRA-A.C1).

4. Anotação: I Resulta do artigo 628.º, n.º 2, que a fiança pode respeitar a uma obrigação principal futura. Neste caso, segundo o preceito que agora se anota – enquanto a obrigação afiançada não se constituir, ou seja, permanecer futura – o fiador pode liberar-se da garantia em duas situações: i) quando a situação patrimonial do devedor se deteriorar ou agravar em termos tais, que os seus direitos eventuais contra ele (cf. o art. 644.º) fiquem postos em risco ( poder de liberação por justo motivo); e ii) passados cinco anos a contar da prestação da fiança ou outro prazo porventura convencionado (poder de liberação ad nutum).

a) São obrigações futuras, por exemplo, as decorrentes de um mandato de crédito (acerca do qual, cf. o art. 629.º), de um contrato de abertura de crédito ou de um contrato de locação. Neste último caso, até 2006, havia o regime especial do artigo 655.º, revogado pela Lei n.º 6/2006, embora tenha continuado a aplicar-se aos contratos preexistentes (cf. a respetiva anotação). Não se aplicando ele, rege, com as devidas cautelas, o presente artigo (cf., por ex., GOMES, 2010: 77, 88 e ss., 110 e ss.).

b) O preceito justifica-se porque, sendo a obrigação afiançada futura, pode verificar-se um prolongamento excessivo no tempo de responsabilidades fidejussórias e o fiador corre um risco especial: i) de deterioração da situação patrimonial do devedor afiançado entre o momento da constituição da fiança e o da constituição da obrigação garantida; ii) e de possível aumento sucessivo das suas responsabilidades (assim, por ex., LIMA e VARELA, 1987: 672, nota 1, e GOMES, 2010: 75).

II – A lei não esclarece como se dá a liberação do fiador. É certo, no entanto, que, na segunda hipótese prevista – decurso do prazo de 5 anos a contar da prestação da fiança ou de prazo, maior ou menor, que tenha sido estipulado –, ele poderá libertar-se da sua obrigação, deixando de garantir obrigações ainda não constituídas, mediante simples declaração tendente a esse efeito, dirigida ao credor; sem necessidade de invocar justa causa (cf., por ex., GOMES, 2010: 75). Na primeira hipótese – deterioração grave da situação patrimonial do devedor, pondo em risco a efetividade do direito que lhe caberá em caso de satisfação do credor (cf. o art. 644.º) – ele exerce, ainda, um direito potestativo de pôr termo à fiança, emitindo uma declaração nesse sentido (cf. GOMES, ibidem), mas o exercício aqui é vinculado, uma vez que depende legalmente de um pressuposto material, o agravamento notável da situação patrimonial do devedor.

Em qualquer dos casos, a extinção só opera para o futuro, quanto às obrigações ainda não constituídas. Para eventuais obrigações afiançadas já existentes no momento em que a declaração extintiva opera, a fiança mantém-se (cf., por ex., GOMES, 2010: 75). Para maiores desenvolvimentos sobre o tema, cf. GOMES, 2000: 765 e ss., 772 e ss.

III – O preceito está pensado para a fiança de obrigações futuras específicas, pré-determinadas (assim, GOMES, 2004: 41, e 2000: 772 e ss., e VASCONCELOS, 2013: 108); ou sobretudo para elas. Tal significa, por um lado, que a sua aplicação às obrigações emergentes de contratos como o de arrendamento não pode ser meramente mecânica ou literal; requerendo um esforço de adaptação, em especial no que se refere à sua primeira parte. Por outro lado, igual esforço terá que ser feito a respeito de situações mais complexas como as das fianças gerais ou fianças omnibus (cf. «infra», VI a VIII); no caso de se lhes considerar aplicável. No sentido de que não se aplica, cf. GOMES, 2000: 709, observando que não está pensado para elas, devendo o seu âmbito circunscrever-se aos casos de obrigações futuras específicas; no sentido da aplicação, cf. MARTINEZ e PONTE, 2006: 100 e nota 232, argumentando, a respeito do agravamento da situação do devedor, que, caso contrário, o fiador de obrigação específica seria tratado de modo mais favorável que o fiador genérico, e, na mesma linha, VASCONCELOS, 2013: 108.

IV – No artigo 648.º, reconhece-se ao fiador um direito contra o devedor a que este o libere da fiança, designadamente, se os riscos desta se agravarem sensivelmente; mesmo tratando-se de dívidas presentes ou atuais (al. b)). Na primeira parte do preceito em análise - respeitando a fiança a uma obrigação ainda não constituída e havendo uma deterioração grave da situação patrimonial do devedor (cf. «supra», I) - vai-se mais longe, reconhecendo ao fiador o aludido direito potestativo de se liberar, exercitável contra o credor. Sobre o sentido da norma, cf. SERRA, 1957: 254 e ss., e GOMES, 2010: 110 e ss., com aplicação ao contrato de arrendamento. Na jurisprudência, cf. o ac.TRL de 7.12.2016.

V – No artigo 648.º, reconhece-se, ainda, ao fiador um direito contra o devedor a que este o libere da fiança, uma vez decorridos 5 anos, a contar da prestação da fiança: i) se a obrigação afiançada for de duração indefinida; ou ii) se, tendo ela prazo, houver uma prorrogação imposta por lei a alguma das partes. Tratando-se de fiança de obrigações futuras, o preceito em análise, na segunda parte, vai mais longe, reconhecendo ao fiador o direito potestativo de se liberar da garantia, perante o credor, deixando de cobrir as obrigações ainda não constituídas (cf. «supra», II), passados 5 anos sobre a prestação da fiança ou uma vez decorrido um eventual prazo alternativo estipulado, mais extenso ou mais curto (por ex., um prazo coincidente com o do contrato de que emergem as obrigações afiançadas). Acerca da aplicação desta segunda parte do artigo ao contrato de arrendamento (para habitação), veja-se GOMES, 2010: 88 e ss. Quanto à perduração ou não da garantia em caso de trespasse e de morte do fiador, cf., ainda, GOMES, 2010: 104 e ss., 108 e s., 2004: 46 e ss.

VI – Sobretudo na prática bancária tornou-se frequente, em especial nas relações de negócios com sociedades por quotas e anónimas, uma figura negocial com contornos particulares – a fiança geral, fiança genérica ou fiança omnibus, respeitante a conjuntos ou fluxos de obrigações, presentes e/ou futuras, emergentes da relação de negócios ou de certo segmento da relação de negócios mantida entre o banco financiador e a sociedade financiada (cf., por ex., GOMES, 2000: 621 e ss., VASCONCELOS, 2013: 100 e s., FARO, 2009: 105 e ss., 116 e ss., e a nota introdutória VI). A especificidade da mesma – tal como é praticada – reside na circunstância de entre o devedor cujas obrigações são garantidas e o fiador ou os fiadores existir uma relação especial, de índole societária: tipicamente, o devedor é uma sociedade e os fiadores são seus sócios, numa grande parte dos casos sócios gerentes ou administradores, embora, sobretudo por razões que têm a ver com a garantia patrimonial dos cônjuges casados sob o regime de comunhão de bens, os respetivos cônjuges também possam assumir idêntica posição. Dito de outro modo, conquanto os fiadores sejam sujeitos de direito distintos do devedor afiançado, por detrás da alteridade jurídica deste está uma distinta realidade material: o órgão de base da sociedade é composto pelos sócios, estes têm sobre ela um poder de domínio e são economicamente interessados no seu sucesso, porque lhes pertence o valor residual ou líquido da mesma. O que acaba de referir-se vale, mutatis mutandis, para as fianças prestadas a favor de sociedades por dívidas perante fornecedores (cf., designadamente, os ac.STJ de 19.05.2005, de 18.10.2007 e de 8.09.2011).

a) Isto tem diversas implicações. Primeira: mostrando-se o crédito bancário uma forma de financiamento determinante das sociedades em apreço e exigindo os bancos garantias para a sua concessão (pelo menos em boas condições), os fiadores possuem um relevante interesse económico na prestação da fiança (o que, de resto, acontece não apenas quando está em jogo uma fiança geral, mas também quando há uma pluralidade de sucessivas fianças à medida da evolução da relação de negócios entre a sociedade e o banco): ao fazê-lo, estão, através da sociedade, a valorizar os seus patrimónios pessoais, uma vez que as quotas ou ações de que são titulares são uma forma de riqueza pessoal representativa da riqueza consubstanciada na sociedade. Segunda: diretamente enquanto gerentes ou administradores e, indiretamente, sobretudo através do direito à informação, podem controlar ou pelo menos acompanhar o endividamento da sociedade devedora; e, nas sociedades de restrita base social, tipicamente existe uma solidariedade de interesses e um controlo conjunto das mesmas. Terceira: a função primária da garantia é de cobertura e ordenação da relação de negócios que se estabelece entre o banco e a sociedade financiada, servindo ela de mecanismo «compulsório» tendente a que a sociedade seja gerida de um modo tal, que essa relação de negócios se desenvolva normalmente e sem entraves, acautelando o interesse do credor, isto é, evitando situações de incumprimento. Só em casos patológicos a fiança funcionará como verdadeira garantia das dívidas, no sentido do artigo 627.º, n.º 1.

b) Note-se também que, frequentemente, os termos das fianças são amplos, mas, na prática, elas referem-se a dívidas resultantes de uma concreta e bem delimitada relação de negócios (por ex., de fornecimento de gás engarrafado, como sucedia no caso objeto do citado acórdão de 2007).

VII – Atendendo à especificidade apontada, o fenómeno requer um tratamento jurídico adequado, quer em face do artigo 280.º (nulidade do negócio jurídico por indeterminabilidade do objeto), quer em face do artigo que se anota. Quanto ao primeiro, basta pensar que, à luz do exposto, as dívidas afiançadas são tipicamente contraídas com o concurso dos fiadores - que o requisito da determinabilidade visa proteger - ou, pelo menos, com a participação de alguns deles e o consentimento ou a complacência dos demais (cf., por ex., o ac.STJ de 8.09.2011 e VASCONCELOS, 2013: 107 e ss.). Quanto ao segundo, realça-se, em especial, que estamos perante garantias tipicamente interessadas, dinâmicas, complexas e duradouras, cumprindo uma função típica primária de acreditamento do devedor e de ordenação comportamental. Compreende-se, assim, por exemplo, a seguinte doutrina afirmada no ac.TRC de 20.03.2012: «Numa fiança omnibus por tempo indeterminado ou por prazos prorrogáveis é possível a todo o tempo a sua denúncia (mesmo por parte do fiador) e mesmo sem se ter de respeitar o prazo de 5 anos a que alude o art. 654º do C.Civil». O problema requer, no entanto, um tratamento mais diferenciado.

VIII – Porém, não basta observar que a identificada especificidade da fiança em apreço justifica um tratamento especial. Na verdade, importa, igualmente, realçar que a mesma especificidade aponta os próprios limites deste justificado tratamento especial, mormente em face do artigo 280.º: se não se verificam ou se desaparecem os pressupostos que justificaram a prestação da garantia por algum dos fiadores – trata-se de um pequeno sócio de capital, estranho ao desenrolar dos negócios sociais, que assinou a fiança apenas porque o financiador exigiu a assinatura de todos os sócios, de alguém que se obrigou fidejusoriamente enquanto sócio e deixou de ter esta qualidade, ou que o fez enquanto sócio e gerente e foi afastado da gerência, etc. – deixa de haver razão para esse tratamento, quanto a ele. Em causa, está sobretudo a possibilidade de pôr termo à fiança, mediante denúncia e/ou resolução do negócio, quanto a esse fiador – possibilidade essa que faz parte das condições de admissibilidade da figura, em face do artigo 280.º, além de poder compreender-se nos naturalia negotii -, mas, em casos limites, também a validade da mesma, quanto ao mesmo fiador. Adotando esta visão das coisas, cf., designadamente: MENDES, 1995: 97 e ss., 136 e ss. (com análise juscomparatística, de jurisprudência e doutrina), e 2000: 149 e ss.; GOMES, 2000: 661 e ss., 671 e ss., 679 e ss, 687 e ss., 702 e ss. (igualmente com análise comparada e jurisprudencial), 2004: 133 e ss.; e VASCONCELOS, 2013: 104 e ss. Defendendo uma aplicação mais severa do artigo 280.º, cf. CORDEIRO, 2015: 509 e ss., 521 e ss. Sobre o tema, cf., ainda, LEITÃO, 2016: 122, e, com maiores desenvolvimentos, FARO, 2009, pp. 141 e ss. Para a jurisprudência, vejam-se, além do Ac.UJ de 23.01.2001 (acerca do mesmo, cf., em especial, GOMES, 2004: 109 e ss., 128 e ss.), entre muitos, os acs.STJ de 8.09.2011, de 19.05.2005, de 30.10.2001 e de 29.11.2001, e o ac.TRL de 15.06.2010, por um lado, e o ac.STJ de 18.10.2007, por outro lado.

EVARISTO MENDES


Artigo 655.º

(Fiança do locatário)

1. A fiança pelas obrigações do locatário abrange apenas, salvo estipulação em contrário, o período inicial de duração do contrato.

2. Obrigando-se o fiador relativamente aos períodos de renovação, sem se limitar o número destes, a fiança extingue-se, na falta de nova convenção, logo que haja alteração da renda ou decorra o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação.

(Revogado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro).

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: Vejam-se também, designadamente, os artigos 1958 do CCit. e 1567 do CCesp. Nos trabalhos preparatórios, cf. SERRA, A. VAZ, «Fiança e figuras análogas», BMJ n.º 71, 1957, pp. 261 e ss. e artigo 35.º

2. Bibliografia nacional: CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado, X, 2015, pp. 501 e s; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 905; GOMES, JANUÁRIO, «Fiança do arrendatário face ao NRAU», Estudos de Direito das Garantias, II, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 67-112, 67 e ss., Assunção fidejussória de dívida, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 310 e ss.; LIMA, F. PIRES / VARELA, J. M. ANTUNES, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., com a colaboração de MESQUITA, HENRIQUE, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 673;MORAIS, GRAVATO DE, «Fiador do Locatário», Scientia Iuridica, n.º 309.º, 2007, pp. 87-103; VARELA, J. M. ANTUNES, Das Obrigações em Geral, II, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, pp. 511 e s.

3. Jurisprudência : Acs.STJ de 17.06.1998, CJ-STJ 1998, pp. 114 e s., de 6.03.2014 (5429/11.6YYPRT-C.P1.S1) e de 3.03.2016 (5429/11.6YYPRT-B.P2.S1); ac.TRL 24.09.2015 (2411-12.0TVLSB.L1-6); acs.TRC de 8.09.2015 (746/11.8TBLRA.C1) e de 11.07.2017 (2265/15.4T8PBL.C1).

4. Anotação: I – Na versão inicial do Código, o artigo 655.º continha, à semelhança de códigos estrangeiros (italiano e espanhol) regras especiais, supletivas, relativas à locação – abrangendo o arrendamento e o aluguer, embora concebidas sobretudo para o arrendamento. Admitindo que o contrato tivesse um período inicial de vigência e possíveis renovações, estabelecia-se no n.º 1 uma circunscrição da fiança ao período inicial. Sendo esta regra derrogada contratualmente mas não se limitando os períodos de renovação abrangidos, determinava o n.º 2 a caducidade da fiança em dois casos: i) logo que a renda fosse alterada; e ii) logo que decorressem cinco anos sobre o início da primeira prorrogação (ou seja, sobre o começo do primeiro período de renovação).

a) O preceito, embora se aplicasse à locação em geral, estava moldado em função do regime do arrendamento, como o próprio texto do n.º 2 o revela (cf. GOMES, 2010: 69). Abrangendo a locação rendas ou alugueres não vencidos (futuros), o artigo era norma especial em relação ao art. 654.º (cf. GOMES, 2010: 77).

b) Sobre ele, veja-se, por ex., GOMES, 2010: 77 e ss., 86 e ss. (neste caso, em face das normas transitórias da Lei nº 6/2006, designadamente considerando as atualizações extraordinárias de renda em face dos arts. 631.º e 634.º). Sobre a relação de especialidade do mesmo com o artigo 654.º, cf. GOMES, 2010: 75 e ss. Na jurisprudência, vejam-se, designadamente, os acs.STJ de 17.06.1998, de 6.03.2014 e de 3.03.2016, o ac.TRL 24.09.2015 e o ac.TRC de 11.07.2017.

II A Lei n.º 6/2006, que aprovou o NRAU, revogou o preceito (art. 2.º), limitando-se o Código agora a dispor no artigo 1076.º, n.º 2, a respeito da renda: «As partes podem caucionar, por qualquer das formas legalmente previstas, o cumprimento das respetivas obrigações». Deixou, portanto, de haver este regime específico, embora o mesmo tenha continuado a aplicar-se, transitoriamente, a situações locatícias e fidejussórias já existentes ao tempo da revogação: cf., por ex., GOMES, 2010: 77 e s., 86 e ss., e os acs.STJ de 6.03.2014 e de 3.03.2016. No sentido de que, hoje, se aplica o artigo 654.º, na medida em que estejam em causa obrigações (de renda ou aluguer) futuras, ainda não vencidas – cf. GOMES, 2010: 77, e a anotação a esse preceito. Discordando da revogação, cf. COSTA, 2012: 905, nota 1.

EVARISTO MENDES



[i] Professor convidado da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.

[ii] A versão definitiva do presente texto será publicada no vol. II do Comentário ao Código Civil (Livro II - Das Obrigações em Geral) editado pela Faculdade de Direito da UCP (Lisboa, UCE, 2018).