EVARIST​O MENDES

Evaristo Mendes

Ainda acerca da transmissão solo consensu de valores mobiliários.

Nota de atualização

1. Dedicámos um relatório de mestrado, já no recuado ano de 1986, ao tema da compra e venda como contrato translativo e aos sistemas translativos existentes, numa disciplina lecionada pelo Prof. Inocêncio Galvão Telles, relatório esse substancialmente publicado, entretanto [i] . Nele analisámos, designadamente, o princípio da consensualidade no direito português – quanto à sua origem, significado e extensão –, salientando, no século XX, os estudos deste eminente civilista e de Vaz Serra, e defendemos a sua aplicação à transmissão de títulos de crédito e valores mobiliários, ainda que com as limitações decorrentes da existência de um modo especial de circular dos mesmos [ii] . Retomámos o tema na tese de mestrado, a respeito das ações (tituladas e escriturais) [iii] , e, mais recentemente, num estudo publicado com o Prof. Almeida Costa [iv] e num comentário de jurisprudência [v] .

2. Posteriormente, foram publicados dois novos estudos importantes: um de caráter geral, de Vieira Cura [vi] , e outro – também com visão alargada, mas versando especificamente o tema da transmissão dos valores mobiliários – de Pedro de Albuquerque [vii] . Justifica-se uma breve referência a este último, no que respeita aos valores mobiliários [viii] .

O autor realça, em primeiro lugar, que a tese da consensualidade – favorável à eficácia real da compra e venda de ações e outros valores mobiliários – é largamente dominante na doutrina, embora a contraposta tese da mera natureza obrigatória (ou obrigacional) do contrato tenha «alguma receção na Jurisprudência» [ix] . Salienta, em segundo lugar, que a primeira se encontra expressamente consagrada para as transmissões de valores mobiliários em mercado (art. 80.2 do CVM) [x] ; sendo, no mínimo, dúbias as disposições legais do CVM relativas às transmissões fora de mercado (arts. 80.1 e 102.1) [xi] . Refere, ainda, que a essência dos valores mobiliários reside na situação representada – a participação social, «posição de socialidade» ou qualidade de sócio, no caso das ações – e não na forma representativa (título ou registo), meramente declarativa; encontrando-se a primeira sujeita às regras gerais da transmissão de bens e direitos [xii] .

Em termos substanciais, observa, ainda: i) que a tese da eficácia real «se compagina de modo harmónico, histórica, cultural e dogmática e sistematicamente, com a tradição latina e portuguesa (neste caso, aliás, secular, (…) como sublinhado por Inocêncio Galvão Telles)» [xiii] ; ii) que «se harmoniza com o espírito e o sentimento jurídico nacional, que sempre se mostrou avesso ao efeito apenas obrigacional deste contrato, levando as partes a incluírem, de forma reiterada, ao longo de séculos, cláusulas nos negócios efetivamente celebrados e destinadas a verterem o efeito translativo real imediato e a afastarem o efeito puramente creditício» [xiv] ; iii) que está em linha com a matriz cultural, jurídico-histórico-filosófica da Escola jusracionalista subjacente à ideia de compra e venda no Direito português, diferentemente do que sucede, por exemplo, com a compra e venda em Espanha [xv] ; e iv) que, em sintonia com os objetivos do Direito dos valores mobiliários, protege o adquirente investidor (de boa fé) [xvi] – promovendo também a justiça [xvii] – e é a que mais reforça a (primordial) circulação das ações [xviii] .

Em contraste com isto, a tese da mera eficácia obrigacional da compra e venda de valores mobiliários merece os seguintes reparos: i) respeita apenas às transmissões fora de mercado e baseia-se em textos, no mínimo, duvidosos ou ambíguos [xix] ; ii) é estranha ao universo histórico-cultural de referência e à matriz do nosso ordenamento jurídico e quebra a unidade do sistema jurídico [xx] , sendo ainda repudiada pelo sentimento jurídico dominante [xxi] ; iii) mostra-se desnecessária, do pondo de vista dos vetores em jogo [xxii] , e, mesmo, desadequada, favorecendo o vendedor incumpridor e desprotegendo o comprador fiel (investidor) [xxiii] ; iv) entra, inclusive, em contradição ou antinomia valorativa dentro do próprio sistema do CVM [xxiv] ; v) em face do que antecede, justificava-se uma sustentação consistente da tese em apreço, mas tal não sucede, limitando-se os pertinentes estudos a uma análise imediatista, relativamente perfunctória e superficial [xxv] ; vi) um dos argumentos comummente utilizados é o de que, na compra e venda com eficácia real, o direito adquirido seria sem conteúdo; o que se revela, no entanto, falso, como se comprova, aliás, pela própria admissibilidade das transmissões solo consensu em mercado [xxvi] .

3. O autor tece, ainda, importantes considerações de caráter metodológico [xxvii] ; mas o que importa aqui realçar são dois aspetos da sua conceção sobre os quais também já nos pronunciámos. Primeiro: a consequência lógica do texto, no que se refere ao eventual conflito entre uma transmissão cartular ou escritural e uma anterior transmissão solo consensu, é a de que o adquirente cartular ou escritural apenas é protegido nos termos do art. 58 do CVM, ou seja, se tiver adquirido as ações (valores mobiliários) com desconhecimento (porventura, não negligente) da anterior transmissão consensual [xxviii] . Segundo: na defesa da consensualidade, adota-se uma perspetiva analítica das ações valores mobiliários, distinguindo nestas a participação social, a que se refere a transmissão, e a «acessória» forma representativa, como também acontece na Alemanha e na Espanha [xxix] .

4. Conclui-se esta nota de atualização com uma breve alusão à alteração do CVM ocorrida em 31.12.2021, no que respeita ao exercício dos direitos sociais relativos a ações escriturais, mormente ações admitidas à negociação em mercado regulamentado [xxx] . Em estudos anteriores, admitimos que razões de ordenação económica (e tributária), designadamente atinentes à transparência da titularidade das participações sociais, pudessem fazer repensar o princípio da consensualidade [xxxi] .

Note-se, porém, que, na versão atual daquele Código, o legislador admite o exercício de direitos sociais (mormente de participação nas AG) e direitos derivados da participação social (ex., crédito de dividendo) por quem não se encontra registado como titular das ações (escriturais); sendo a pessoa registada um intermediário financeiro que as detém, direta ou indiretamente, por conta de um investidor final, comummente entendido como seu «proprietário económico» ou titular indireto. Sendo as ações escriturais instrumentos de legitimação registal necessária (arts. 55 e 83; cfr. o art. 104.2, a respeito dos VM titulados), torna-se imprescindível a intervenção do intermediário financeiro titular da conta de registo e da entidade registadora (quando diferente do emitente); mas, em consonância com a Diretiva (UE) 2017/828 [xxxii] , tais direitos podem (e devem poder efetivamente) ser exercidos diretamente por quem detém uma simples posição jurídica obrigacional perante o titular formal (ou fiduciário) das ações (que lhe assegura aquela chamada titularidade económica ou indireta).

Pode discutir-se se o regime não deveria valer apenas para as participações qualificadas, já anteriormente sujeitas a deveres de comunicação que asseguram a pretendida transparência dos detentores de um poder de influência significativo na sociedade; mas a lei não faz tal restrição. Seja como for, o regime revela que o princípio da transparência é conseguido também por outras vias que não o registo das ações. Significa isto que, também de um ponto de vista substancial e sistémico, o CVM não se opõe ao princípio da consensualidade, que, admitindo-se, implica poder o referido investidor final, no fim de contas, ser, não um simples «titular económico», mas o titular jurídico-material das ações (o que, mesmo atendendo à indicada legitimação registal necessária, representa um plus, relativamente à mera propriedade económica ou indireta).



[i] Cfr. Evaristo Mendes, «A compra e venda como contrato translativo. Alguns aspetos», O Direito, 148 (2016) IV, p. 779-821.

[ii] Estudo citado , p. 781 e ss., 793 e ss.

[iii] Cfr. Evaristo Mendes, (D)a transmissibilidade das ações, Lisboa (UCP) 1989, I, disponível em https://evaristomendes.eu/Artigos.html, I – 18, nºs 172 e ss e, quanto ao direito alemão, n.ºs 31 e ss.

[iv] Cfr. M. J. de Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de ações tituladas nominativas», RLJ 139 (2009), n.º 3959, e in Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, III, Lisboa (UCU) 2011, p. 13-66, 41 e ss., 63 e s.

[v] Cfr. Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários – Ac. do STJ de 5.2.2019», CDP 70 (abril-junho de 2020), p. 32 e ss., 38 e ss. Cfr. também «Transmissão de ações e exercício de direitos sociais. Breve comentário de jurisprudência» e «Compra e venda de ações. Nota prática sobre o princípio da consensualidade e seus limites», disponíveis em https://evaristomendes.eu/Artigos.html, I – 19 e 20.

[vi] Cfr. António Vieira Cura,Fundamentos romanísticos do direito privado português, I - Compra e venda e transmissão da propriedade, Coimbra (Gestlegal) 2020, situando a raiz da eficácia real da atual compra e venda no direito romano pós-clássico.

[vii] Cfr. Pedro de Albuquerque, «Venda real e (alegada) venda obrigacional no Direito civil, no Direito comercial e no âmbito do Direito dos valores mobiliários (a propósito de um Estudo de Inocêncio Galvão Telles)», RFDUL-LLR, LXII (2021), p. 657-724. Acerca da compra de valores mobiliários, vejam-se as págs. 669 e ss., 683 e ss.

[viii] Sobre o tema, defendendo a transmissão solo consensu, podem ver-se, também, Rui Soares Pereira, «Ainda a eficácia (real) da compra e venda de acções», O Direito, 149 (2017), III, p. 575-601, e José Ferreira Gomes, M & A – Aquisições de Empresas e de Participações Sociais, Lisboa (AAFDL) 2022, p. 84 e ss., máxime, 96 e s.

[ix] Estudo citado, p. 669 e ss., 771 e ss., 683 e ss., 696.

[x] Estudo citado, p. 689 e ss., aludindo também ao art. 210.1. O primeiro dispõe: «A compra em mercado regulamentado e em sistema de negociação multilateral ou organizado de valores mobiliários escriturais confere ao comprador, independentemente do registo e a partir da realização da operação, legitimidade para a sua venda nesse mercado». No segundo, prescreve-se: «Os direitos patrimoniais inerentes aos valores mobiliários vendidos pertencem ao comprador desde a data da operação».

[xi] Estudo citado, p. 696, 705 e 711 e s.

[xii] Estudo citado, p. 684, 689, 717 e ss.; cfr., ainda, p. 706 e ss. (acerca do caráter declarativo e consolidativo do registo e sobre o foco do CVM nas formas de representação). Sobre este ponto, cfr. também Evaristo Mendes, Tese (1989), nºs 73 e ss., 150 e ss., 163, 165 e ss., e, por último,«Nota»(20020), p. 46 e ss., 48.

[xiii] Estudo citado, p. 691 e s., 694 e ss. Sobre este ponto, cfr. também Evaristo Mendes, «A compra e venda» (1986/2016), p. 781 e ss., 793 e ss.

[xiv] Estudo citado, p. 692, 695 e ss., 704 e s. e 709; e, em geral, p. 661 e ss. Sobre este ponto, cfr. também Evaristo Mendes, «A compra e venda» (1986/2016), p. 786 e ss., e«Nota»(2020), p. 42 e ss.

[xv] Estudo citado, p. 709 e ss.

[xvi] Estudo citado, p. 693 e s., 706.

[xvii] Estudo citado, p. 693 e s., 697, 704.

[xviii] Estudo citado, p. 694, citando Almeida Costa / Evaristo Mendes e, em geral, Galvão Telles. O autor acrescenta que isto só não seria assim se a transmissão estivesse, ainda, sujeita aos princípios da separação e da abstração. Note-se, porém, que, hoje está assente na Alemanha que as ações tituladas nominativas são transmissíveis não apenas cartularmente, mas também por via da cessão (consensual) das mesmas. Cfr. Evaristo Mendes, por último, «Nota» (2020), p. 44, nota 27.

[xix] Estudo citado, p. 689 e ss., 696 (realçando também a falta de trabalhos preparatórios do CVM no sentido de uma solução diferente da que resulta da tradição secular e das coordenadas gerais do sistema), 705 e 711 e s. Acerca do (inconclusivo) elemento literal da interpretação no CVM e o art. 80.2 deste Código, cfr. também Evaristo Mendes, por último,«Nota»(20020), p. 44 e s.

[xx] Estudo citado, p. 691 e ss., 704 e ss., 709 e ss., 716 e s. Cfr. também Evaristo Mendes, «Nota» (2020), p. 46 e ss.

[xxi] Estudo citado , p. 662 e ss., 692, 694 e ss., 704 e s. (708). Cfr. também Evaristo Mendes, «Nota» (2020), p. 42 e ss., 46 e ss.

[xxii] Estudo citado, p. 705 e ss. (708).

[xxiii] Estudo citado, p. 693 e s. Cfr. também Rui Soares Pereira, estudo cit., p. 593, e Evaristo Mendes, «Nota» (2020), p. 48 e ss.

[xxiv] Estudo citado, p. 689 e ss., 693 e s. (708).

[xxv] Estudo citado, p. 696 e ss., 705 e ss., 711 e ss.

[xxvi] Estudo citado, p. 689 e ss. Cfr. também, desenvolvidamente, Evaristo Mendes, «Nota» (2020), p. 49 e s.

[xxvii] Estudo citado, p. 697 e ss.

[xxviii] Diferentemente, quanto a este aspeto, cfr. Evaristo Mendes, Nota (2020), p. 49 e s., e Tese (1989), n.ºs 174 e 177-179, revendo a posição inicial, em nota.

[xxix] Em sentido próximo, José Ferreira Gomes, ob. e loc.cit. Cfr. também Rui Soares Pereira, estudo cit., p. 593 e s. Sobre o assunto, cfr., ainda, Evaristo Mendes, «Nota» (2020), p. 48, observando que o princípio da consensualidade, em sistemas como o nosso, sem princípio da tradição na transmissão de coisas móveis corpóreas, vale, igualmente, quando se tem do fenómeno translativo uma visão sintética.

[xxx] As alterações foram introduzidas pela Lei 99-A/2021 e as disposições pertinentes são, sobretudo, o n.º 5 do art. 78 e os arts. 21-E, 21-G e 23-C.

[xxxi] Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «A transmissibilidade» (2011), p. 66, e Evaristo Mendes, «Nota» (2020), p. 51.

[xxxii] Transposta, no que aqui interessa, pela citada Lei 99-A/2021.