EVARIST​O MENDES

Evaristo Mendes

Interpretação e integração do negócio jurídico [i]

Introdução aos arts. 236º a 239º

1. Antecedentes. Trabalhos preparatórios: o CC de 1867 continha duas disposições sobre a interpretação do contrato: os arts. 684º e 685º. A integração era em geral admitida com base no art. 704º. Nos trabalhos preparatórios, salienta-se, de RUI DE ALARCÃO, «Interpretação e integração dos negócios jurídicos» - Anteprojecto para o novo Código Civil , BMJ, nº 84, 1959, pp. 329-345, e nº 105, 1961, p. 254-256. Direito comparado e textos internacionais: CC francês, arts. 1156ss; CC italiano, arts. 1362ss; CC brasileiro, arts. 112 a 114; BGB, §§ 133 e 157; Unidroit Principles Of International Commercial Contracts 2010, cap. 4 (arts. 4.1 a 4.8); PECL, cap. 5, arts. 5:101 a 5:107, cf. arts. 6:101 e 6:102; Convenção de Viena de 1980 sobre a compra e venda internacional de mercadorias, art. 8.

2. Bibliografia nacional selecionada: ALMEIDA, CARLOS FERREIRA DE, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, I, Almedina, Coimbra, 1992, pp. 177-201, 204ss, 219ss, e «Interpretação do contrato», O Direito, ano 124, 1992, pp. 629-651; ALMEIDA, J. MOITINHO DE, «A interpretação e integração de lacunas do contrato de seguro», Scientia Iuridica, LV, 2007, nº 311, pp. 439-472; AMARAL, D. FREITAS DO, com colab. de MACHETE, PEDRO /TORGAL, LINO, Curso de Direito Administrativo, II, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, pp. 415-418 e 604-609; ANDRADE, MANUEL DE, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Almedina, Coimbra, 1960, pp. 305-320 e 321-326. ANTUNES, J. ENGRÁCIA, «Os Estatutos Sociais: Noção, Elementos e Regime Jurídico», Estudos em memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, UCE, Lisboa, 2012, pp. 255, 263-265; ASCENSÃO, J. OLIVEIRA,Direito Civil. Teoria Geral, II – Acções e factos jurídicos, 2ª ed., Coimbra Editora, 2003, nºs 93ss, pp. 173ss, e Direito Civil. Sucessões, 5ª ed., Coimbra Editora, 2000, pp. 293ss; CAETANO, MARCELLO, Manual de Direito Administrativo, I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 1982, pp. 488-491 e 610-614; CÂMARA, PAULO, «Acordos Parassociais: Problemas de Interpretação e Conversão», Estudos em memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, UCE, Lisboa, 2012, pp. 445-472; CORDEIRO, A. MENEZES, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, t. I, reimpr. da 3ª ed., de 2005, Almedina, Coimbra, 2009, § 54, pp. 741ss, e § 55, pp. 769ss, II, t. IV, 2010, pp. 299ss, Direito das Sociedades, I, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, pp. 494ss; CORDEIRO, A. M. MENEZES, «A interpretação contratual anglo-saxónica», O Direito, ano 141, 2009, pp. 665-678; CORREIA, A. FERRER, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, 2ª ed., 1967, Estudos Jurídicos, I, Almedina, Coimbra, 1985, pp. 155ss, e Apêndice, pp. 304s, 308ss; CÔRTE-REAL, C. PAMPLONA, Curso de Direito das Sucessões, Quid Juris, Lisboa, 2012, pp. 99ss; COSTA, M. J. ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pp. 266s, «Nótula sobre o regime das cláusulas contratuais gerais após a revisão do diploma que instituiu a sua disciplina», DJ, XI, 1997, 2, pp. 21-34; COSTA, M.J. ALMEIDA/ CORDEIRO, A. MENEZES, Cláusulas Contratuais Gerais, Anotação ao Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de outubro, Almedina, Coimbra, 1986; e COSTA, M. J. ALMEIDA/ MESQUITA, M. HENRIQUE, «Natureza interpretativa do artigo 184º do Código Comercial. Elementos atendíveis na interpretação de cláusulas estatutárias», RDES, XVII, 1970, pp. 47ss; FERNANDES, L. A. CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª ed., UCE, Lisboa, 2010, pp. 180s, 443-456 e 457-463, Lições de Direito das Sucessões, 4ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2012, pp. 531-543; FONSECA, HUGO DUARTE - Sobre a interpretação do contrato de sociedade nas sociedades por quotas , Coimbra Editora, 2008; FRADA, M. CARNEIRO DA, «Sobre a interpretação do contrato», Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Parte III, Almedina, Coimbra, 2012, p. 975-984; HÖRSTER, HEINRICH E., A Parte Geral do Código Civil. Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, pp. 507-514; JÚNIOR, E. SANTOS, Sobre a teoria da interpretação dos negócios jurídicos , AAFDL, Lisboa, 1988; LIMA, PIRES DE /VARELA, J.M. ANTUNES, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., com a colaboração de M. HENRIQUE MESQUITA, Coimbra Editora, 1987, anotação aos arts. 236º a 239º, e vol. VI, 1998, pp. 302-306; MENDES, J. CASTRO, Teoria Geral do Direito Civil, II, AAFDL, Lisboa, 1979/1985, pp. 247ss; PINTO, CARLOS MOTA, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., por A. PINTO MONTEIRO e P. MOTA PINTO, Coimbra Editora, 2005, pp. 441ss, e «Forma, interpretação e integração negocial», Rev. de Dir. Comp. Luso-Brasileiro, nº 1, 1982, pp. 60ss; PINTO, PAULO MOTA, Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico , Almedina, Coimbra, 1995, pp. 188ss. PRATA, ANA - Contratos de adesão e cláusulas contratuais gerais, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 297-308; SÁ, ALMENO DE,Cláusulas contratuais gerais e directiva sobre as cláusulas abusivas, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 64ss; SERRA, ADRIANO VAZ, RLJ, ano 99º, 1966-67, anot. ao Ac. do STJ de 8.02.1966, pp. 243ss, 245-248, ano 101º, 1968-69, anot. ao Ac. do STJ de 6.06.1967, p. 68ss, 71-78, ano 103º, 1970-71, anot. ao Ac. do STJ de 4.03.1969, pp. 211ss, 213-216, anot. ao Ac. do STJ de 11.03.1969, pp. 261ss, 264, anot. ao Ac. do STJ de 25.03.1969, pp. 281ss, 284-288, e anot. ao Ac. do STJ de 24.10.1969, pp. 517ss, 522 e 523, ano 104º, 1971-72, anot. ao Ac. do STJ de 17.02.1970, pp. 54ss, 58-63, e anot. ao Ac. do STJ de 3.03.1970, pp. 107ss, 111-113, ano 105º, 1972-73, anot. ao Ac. do STJ de 26.10.1971, pp. 265ss, 269-272, ano 106º, 1973-74, anot. ao Ac. do STJ de 6.06.1972, pp. 165ss, 168 e 169, e anot. ao Ac. do STJ de 14.06.1972, pp. 200ss, 202-204, ano 107º, 1974-75, anot. ao Ac. do STJ de 16.02.1972, pp. 72ss, 74 e 75, e anot. ao Ac. do STJ de 18.05.1973, pp. 182ss, 184-191, ano 108º, 1975-76, anot. ao Ac. do STJ de 25.01.1974, pp. 19ss, 22 a 27, ano 110º, 1977-78, anot. ao Ac. do STJ de 13.01.1976, pp. 35ss, 40-43, anot. ao Ac. do STJ de 6.04.1976, pp. 115ss, 122s, anot. ao Ac. do STJ de 21.12.1976, pp. 340ss, 347-352, e anot. ao Ac. do STJ de 13.01.1977, pp. 373ss, 376-378, ano 111º, 1978-79, anot. ao Ac. do STJ de 26.01.1978, pp. 216ss, 220 e 221, e anot. ao Ac. do STJ de 16.02.1978, pp. 242ss, 246-249, ano 112º, 1979-80, anot. ao Ac. do STJ de 6.06.1978, pp. 18ss, 21-26, anot. ao ac. do STJ de 14.06.1978, pp. 34ss, 36-38, e anot. ao Ac. do STJ de 9.07.1978, pp. 71ss, 75-80; SILVA, P. COSTA E, Acto e Processo , Coimbra Editora, 2003; SOUSA, M. REBELO DE / MATOS, L. SALGADO DE,Direito Administrativo Geral, III – Actividade administrativa, 2ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2009, pp. 145-149 e 387s; SOUSA, M. TEIXEIRA DE, «Apontamento sobre a decisão de um non liquet na interpretação dos negócios jurídicos»,O Direito, ano 122, 1990, II, pp. 281-290; TELLES, I. GALVÃO, Manual dos contratos em geral, 4ª ed., Coimbra Editora, 2002, nºs 244ss, pp. 443-448, nº 248, pp. 448s, nºs 174s, pp. 322, 323s, Dos contratos em geral, Coimbra Editora, 1962, pp. 351ss, «Interpretação de negócio jurídico formal», O Direito, ano 121 (1989), II, anot. ao ac. do STJ de 16.12.1986, pp. 771ss, 786-790, e, parecer, pp. 841-858; VARELA, J. M. ANTUNES, RLJ, ano 116º, 1983-84, anot. ao Ac. do STJ de 28.07.1981, pp. 183ss, 186-191, ano 122º, 1989-90, anot. ao Ac. do STJ de 17.01.1985, pp. 301ss, 303-314, e ano 124º, 1991-92, anot. ao Ac. do STJ de 10.12.1985, pp. 241ss, 269ss, 275ss; VASCONCELOS, P. PAIS DE, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª ed., Almedina, Coimbra, 2010, pp. 545-560, 560-564, «UNIDROIT – Interpretação do Contrato», Themis, I/2 (2000), pp. 235-246. VIEIRA, J. ALBERTO - Negócio jurídico. Anotação ao Regime do Código Civil (Artigos 217º a 259º), Coimbra Editora, 2006, pp. 48ss; XAVIER, VASCO LOBO, Anulação de deliberação social e deliberações conexas, Atlântida Editora, Coimbra, 1976, pp. 564-569, nota 31, «Sociedade por quotas: interpretação de cláusula pactícia sobre o modo de convocação da assembleia geral; quotas próprias e exigência legal de maioria qualificada», anot. ao Ac. do STJ de 10.04.1986, RLJ, ano 120º, 1987-88, pp. 365ss, 368, e ano 121º, 1988-89, pp. 109-116. Estrangeira: BIEHL, B., «Grundzätze der Vertragsaulegung», JuS, 2010, pp. 195-200; GAUCH, PETER, «Auslegung, Ergänzung und Anpassung schuldrechtlicher Verträge», Die Rechtsentwicklung an der Schwelle zum 21. Jarhundert, Symposium zum Schweitzerischen Privatrecht , Zürich, 2001, pp. 209ss; LARENZ, K. /WOLF, M., Algemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 9ª ed., Beck, München, 2004, pp. 507-548; MEDICUS, DIETER, «Vertragsauslegung und Geschäftsgrundlage», Festschrift für Werner Flume, 1978, pp. 629-647; NEUNER, JÖRG, «Vertragsauslegung – Vertragsergänzung – Vertragskorrektur»,Festschrift für Claus-Wilhelm Canaris zum 70. Geburtstag, I, München, 2007, pp. 901ss; SCHIMMEL, ROLAND, «Zur Auslegung von Willenserklärungen», JA, 1998, pp. 979-987; SERRANO FERNANDEZ, MARIA, Las reglas de interpretación de los contratos en el proceso de construcción del Derecho Privado , Tirant Lo Blanch, Valência, 2012. ZIMMERMANN, REINHARD, «Die Auslegung von Verträgen: Textstufen transnationaler Modellregelungen», Festschrift für Eduard Picker, Tübingen, 2010, pp. 1353-1373.

3. Jurisprudência : Najurisprudência portuguesa, salientam-se, além dos referidos, entre muitos outros, os seguintes acórdãos do STJ: de 5.07.2012, proc. 1028/09.0TVLSB.L1.S1; de 12.06.2012, proc. 14/06.7TBCMG.G1.S1; de 25.10.2011, proc. 2546/07.OTBVLG.P1. S1; de 20.01.2010, proc. 09B195;de 21-05-2009, proc. 692-A/2001.S1; de 16.10.2008, proc. 08A2233; de 17.04.2008, proc. 08B864; de 19.02.2008, proc. 07A4529; de 02.10.2003, proc. 03B1972; de 04-06-2002, proc. 02A1442. Vejam-se, ainda, os acórdãos do STA: de 10.11.1998, proc. 040848; de 15.05.1997, proc. 031984; de 18.03.1997, proc. 039401; de 13.03.1997, proc. 041290; de 28.03.1996, proc. 032268; e de 21.02.1991, proc. 028414. Cf. também o Parecer da PGR nº 14/2012, de 1.06.2012 (DR de 13.09.2012, nº 178, p. 31345).

4. Notas gerais introdutórias: I - Os arts. 236º e 237º contêm as regras legais gerais aplicáveis à interpretação das declarações negociais, tanto expressas como tácitas, quer elas respeitem a negócios jurídicos sujeitos a forma especial quer não. Tratando-se de negócios formais, acresce a regra da expressão textual mínima, consagrada no art. 238º. Em princípio, tais regras são também aplicáveis aos atos jurídicos não negociais (art. 295º). Aos testamentos – «rectius», às «disposições testamentárias» – aplica-se a regra especial do art. 2187º.

As regras contidas nos arts. 236º a 238º, sendo aplicáveis, requerem um esforço de adaptação quando se trate de outras declarações negociais não recetícias ou com destinatário indeterminado. Discute-se, em especial, a sua aplicação aos pactos sociais e aos estatutos das pessoas coletivas, bem como, em caso afirmativo, os respetivos termos. Ao contrário do que sucede, por exemplo, em França e na Itália, não existem regras específicas para os contratos. Aplicam-se-lhes, portanto, na medida do possível, as dos arts. 236º a 238º (cf., por ex., o ac. do STJ de 12.06.2012, bem como, salientando insuficiências, FERREIRA DE ALMEIDA (1992) e CARNEIRO DA FRADA (2012)]. Quanto aos atos e contratos administrativos, cfr. a anotação aos arts. 236º e 238º. Quanto aos atos processuais, cf. a anotação ao art. 238º.

II – Segundo a lei portuguesa, as cláusulas contratuais gerais são, igualmente, interpretadas de acordo com as regras contidas nestes artigos, «dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam» (art. 10º do DL nº 446/85), ou seja, consagra-se uma interpretação individualizada e concreta, em contraposição à oritentação que preconiza a determinação do sentido geral e abstrato das CCG, dominante por exemplo na Alemanha. No caso de serem ambíguas, valem com o sentido que lhes daria «o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real» (art. 11º, nº 1). Se a dúvida ainda subsistir (ambiguidade insanável), prevalece o sentido mais favorável ao aderente (art. 11º, nº 2). Aplica-se igual regime às cláusulas de conteúdo previamente elaborado inseridas em contrato individualizado, quando o destinatário não tenha podido influenciar esse seu conteúdo (art. 1º, nº 2).

III – As normas legais assinaladas não excluem eventuais regras ou c ritérios interpretativos acordados pelas partes; por exemplo, limitando os elementos ou circunstâncias atendíveis ou definindo para eles certa ponderação.

IV – Por razões de boa ordenação do tráfico jurídico-negocial - com a implicada tutela da confiança dos destinatários das declarações negociais e da segurança jurídica, bem como a desejável redução dos custos de transação - o legislador acolhe no nº 1 do art. 236º um critério objetivo da interpretação. Na prática, o critério funciona sobretudo quando falta um sentido consensual e, portanto, a interpretação se torna uma questão controvertida. Estamos no domínio da autonomia privada; por isso, resultando daí um sentido da declaração diferente do correspondente à vontade real do declarante (por também não funcionar a regra do nº 2), a lei institui a favor deste dois mecanismos de salvaguarda: o do art. 247º, que permite a anulação da declaração, por erro, e o da parte final desse nº 1, de que pode resultar a nulidade ou ineficácia da declaração (quanto às CCG, cf., no entanto, «supra», II).

V – Embora a lei só o refira explicitamente a respeito da integração, a interpretação é uma operação jurídico-valorativa sujeita ao princípio da boa fé (cf., por todos, MENEZES CORDEIRO, 2005:759 e 761, bem como o art. 1366 do CCit e o § 157 do BGB). Assinalam-se, ainda, as seguintes regras ou princípios não escritos, em boa medida dedutíveis do padrão do declaratário normal - isto é, razoável, medianamente esclarecido, diligente e de boa fé - acolhido no art. 236º, nº 1, e recondutíveis genericamente à ideia de que, via de regra, os participantes no tráfico jurídico-negocial prosseguem fins lícitos, atingíveis e razoáveis, comportam-se com um mínimo de racionalidade e respeitam a lei: (i) o princípio da primazia do fim do negócio, fazendo prevalecer o sentido que lhe seja mais conforme; (ii) o princípio da interpretação sistemática e contextual, vendo o negócio no seu todo e atendendo às circunstâncias ou ambiente em que eventuais expressões verbais utilizadas hajam sido proferidas; (iii) o princípio da coerência, privilegiando a interpretação que evite contradições do texto a interpretar, visto como um todo; (iv) o princípio do favor negotii, se estiverem em confronto sentidos divergentes, um dos quais originador de invalidade e/ou ilicitude; (v) e o princípio da tendencial validação de uma «interpretação mais direta» quando estejam em causa fórmulas muito claras e evidentes (substancialmente neste sentido, cf. MENEZES CORDEIRO, 2005:761 e 766). Referindo, ainda, a respeito dos contratos, os princípios da justiça, do equilíbrio, da razoabilidade e da ponderação das consequências, cf. CARNEIRO DA FRADA, 2012:978ss.

VI – Objeto da interpretação é um comportamento declarativo. No apuramento do seu sentido, são utilizáveis diversos meios ou elementos, incluindo a vontade do declarante, conhecida ou reconhecível, e circunstâncias pertinentes (cf. a anotação ao art. 236º). A interpretação antecede, naturalmente, o problema da qualificação jurídica; e o resultado da mesma pode conduzir ao afastamento de eventuais normas supletivas.

VII – Um negócio jurídico pode apresentar lacunas. Saber se existe ou não lacuna é, ainda, um problema de interpretação, a que se aplicam as regras respetivas. Sobre a sua integração rege, em geral, o art. 239º. Embora discutível, o entendimento maioritário é, no entanto, no sentido de que este preceito apenas se aplica se não houver norma supletiva capaz de colmatar a lacuna em causa. Para as pertinentes diferenciações, veja-se a anotação respetiva. O art. 239º aplica-se também às lacunas que as CCG possam apresentar (cf. os arts. 9º e 10º do DL nº 446/85).

VIII – O CC contém nos arts. 9º e 10º regras relativas à interpretação e à integração de lacunas da lei. Em última análise, o juiz, com a sua «plena» formação jurídica, é aqui o intérprete; e o Supremo o garante de uma interpretação uniforme. Nessa medida, a situação mostra-se diferente da relativa à interpretação e integração do negócio jurídico, dado que, na interpretação das declarações negociais e do contrato, o juiz deve realizar a interpretação na ótica do declaratário ou destinatário médio da declaração ou regulamento contratual: do declaratário médio colocado na posição do declaratário real, se estiver em causa a interpretação de declarações dirigidas a certa pessoa (cf. o art. 236º, nº 1), ou do destinatário médio de regulamentos ou declarações negociais com destinatários indeterminados (cf. também, por ex., PAIS DE VASCONCELOS, 2010:553s). A situação não se altera quando esse declaratário ou destinatário (médio ou real) seja uma pessoa com assessoria jurídica, interna ou externa, embora isso seja um fator a considerar (cfr. «supra», V). Observações análogas valem para a integração.

Todavia, como para as leis dispõe o art. 9º, também a interpretação das declarações negociais e dos contratos não deve cingir-se à respetiva letra (cf. o nº 1) e, nos negócios formais, o resultado da interpretação deve ter um mínimo de correspondência verbal (cf. o nº 2 e o art. 238º, bem como MENEZES CORDEIRO, 2005:767). E, tal como para a lei vigora uma regra de interpretação teleológica e sistemática (art. 9º, nº 1), também uma cláusula negocial deve ser interpretada no seu contexto, à luz do micro-sistema regulatório que o negócio constitui, levando em consideração outras circunstâncias relevantes, e tendo em conta o fim prosseguido. Salientando este aspeto, cf. MENEZES CORDEIRO, 2005:761 e 766. Em geral sobre as relações que existem entre a interpretação das leis e do negócio jurídico, cf. MANUEL DE ANDRADE, 1960:306s.

IX – A interpretação das declarações negociais constitui uma operação simultaneamente jurídico-valorativa e jurídico-prática, com consequências jurídicas para os interessados (apura um sentido judidicamente vinculante) e com impacto na ordem económica e social. E implica uma articulação da autonomia privada com a tutela da confiança (cf. MENEZES CORDEIRO, 2005:754s). Vista desse modo, é uma «questão de direito», sujeita a revisão pelos tribunais superiores (cf. MENEZES CORDEIRO, 2005:743ss, e «infra», anotação aos arts. 236º e 238º). Embora essencialmente objetiva nos termos assinalados (cf. «supra», IV) e portanto compartilhável, de resultado suscetível de ser cientificamente justificado e controlado (cf. MENEZES CORDEIRO, 2005:753s, 760), é, ao mesmo tempo, uma «operação concreta», tendo por objeto certa declaração no contexto do negócio em que se integra e realizada à luz do circunstancialismo em que este se formou e é para ser executado, levando em conta o regime legal existente, etc. (cf. MENEZES CORDEIRO, 2005:755, 760s, com especificação dos elementos a atender na p. 755, bem como, quanto à interpretação complementadora ou integradora, p. 775). A respeito dos contratos, cf. também CARNEIRO DA FRADA, 2012:977ss.

X - Na jurisprudência, salienta esta interpretação contextual ou integrada, por ex., o Acórdão do STJ de 5.07.2012. Quanto à natureza da operação e aos poderes de revista do Supremo, cf., por ex., o Acórdão de 20.01.2010.


ARTIGO 236º

Sentido normal da declaração

1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

1-3 Art. 1º do Anteprojecto de RUI DE ALARCÃO, BMJ, nº 84, 1959, pp. 330-333. Vid. Bibliografia e jurisprudência,antecedentes e trabalhos preparatórios, direito comparado e textos internacionais, «supra», Introdução aos arts. 236º a 239º.

4. Anotação: I - A interpretação das declarações negociais destina-se a apurar o seu sentido juridicamente relevante. Mais latamente, o art. 236º serve para determinar: (i) se a certo comportamento abstratamente susceptível de valer como comportamento declarativo corresponde ou não, em concreto, uma declaração negocial, ainda que tácita (cf. a anotação aos arts. 217º e 246º e, por ex., C. MOTA PINTO, 2005:446); (ii) qual o sentido jurídico dessa declaração e quem é juridicamente seu autor (declarante) e destinatário (declaratário); (iii) e se a declaração apresenta pontos omissos ou não (cf. a anotação ao art. 239º).

II – Objeto da interpretação é a declaração ou comportamento declarativo. O seu teor ou expressão é, pois, o ponto de partida (cf. o art. 238º e, a respeito das leis, o art. 9º, nº 1). Todavia, mesmo quando o significado das palavras e expressões utilizadas é aparentemente claro e inequívoco, pode não ser esse o sentido juridicamente relevante; basta que a isso leve a consideração de outros elementos ou circunstâncias atendíveis. Noutros termos, o sentido relevante da declaração apura-se no seu contexto. A lei não limita, em geral, os elementos ou circunstâncias suscetíveis de serem levados em conta na interpretação. Apenas exige, no caso dos negócios formais, que o resultado interpretativo apurado tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento (art. 238º).

No âmbito desses elementos de informação ou circunstâncias, que, apesar de meios auxiliares da interpretação, podem revelar-se decisivos, cumpre assinalar: (i) o contexto negocial em que a declaração aparece; (ii) eventuais antecedentes próximos ou elementos preparatórios; (iii) o ambiente ou contexto externo, de facto e jurídico, em que a declaração é emitida; (iv) a finalidade da declaração (ou negócio); (v) o tipo de negócio em causa, bem como os valores e interesses em jogo; (vi) as práticas negociais gerais, os usos, especialmente relevantes no comércio internacional, e as conceções do tráfico que tenham relação com o negócio em causa; (vi) a anterior e subsequente prática negocial entre declarante e declaratário, se existir; (vii) o modo como a declaração ou o negócio em que se integra vem sendo executado. Cf. Introdução, notas VII a X, e, por ex., MENEZES CORDEIRO, 2005:755, C. MOTA PINTO, 2005:446s, CARVALHO FERNANDES, 2010:450s, e CARNEIRO DA FRADA, 2012:980ss.

III - Dada a norma especial do art. 2187º, o campo de aplicação do artigo 236º circunscreve-se, em geral, aos atos e negócios jurídicos entre vivos. Mas não se limita a atos de direito privado. Tratando-se de negócios formais, tem que se articular com o disposto no art. 238º. Estando envolvidas CCG, há que ter em conta também o regime especial do art. 11º da respetiva lei (cf. «supra», Introdução, nota II). Quanto aos contratos de organização, instituidores de uma pessoa coletiva e com eficácia erga omnes, e aos correspondentes estatutos, cf. «infra» (VI).

IV - O art. 236º está diretamente pensado para as declarações negociais recetícias, em que existe um declarante e um declaratário concreto e determinado. Nesse caso, a declaração vale, em princípio, com o sentido que lhe daria um declaratário normal, colocado na posição do declarário real (nº 1), considerando-se como tal o sentido correspondente à vontade real do declarante sempre que se prove havê-la este conhecido na data relevante (nº 2).

V - Faltando um declaratário concreto – ou seja, quando a declaração se destine a um conjunto indeterminado de pessoas ou possa assumir relevância para qualquer pessoa pertencente, atual ou potencialmente, a certo círculo de interessados (promessas públicas, atos de emissão de títulos de crédito circulantes e valores mobiliários, etc.) –afigura-se aplicável, ainda, o critério do art. 236º, nº 1, mas sem considerar qualquer declaratário concreto: o que conta é um destinatário médio ou normal pertencente ao círculo de destinatários ou interessados no ato, considerando a capacidade de entendimento, o grau de conhecimentos e a diligência que lhe são próprios; ou seja, levando em consideração, além do texto da declaração, aquele conjunto de circunstâncias por ele conhecidas ou reconhecíveis, mas não eventuais conhecimentos particulares de algum ou alguns desses interessados ou circunstâncias por eles reconhecíveis. Sobre este ponto, cf., por ex., FERREIRA DE ALMEIDA, 1992:190ss, dando um sentido genérico à expressão «real declaratário», LARENZ/WOLF, 2004, pp. 531s (aludindo também aos registos), e a nota a seguir. Dada a finalidade uniformizadora das CCG, poderia justificar-se tratamento análogo; mas essa não foi a opção do legislador nacional (cf. o art. 10º do DL nº 446/85 e Introdução, nota II).

VI - À semelhança da interpretação das declarações negociais, a interpretação do contrato envolve em geral: saber se este existe ou não; apurar o seu conteúdo; determinar quem são as partes; e verificar se existem ou não lacunas regulatórias. Num contrato cuja formação obedeça ao esquema proposta-aceitação, as partes serão reciprocamente declarante e declaratário, o que já torna complexa a aplicação do preceito em análise. Porém, mesmo um comum contrato bilateral poderá não obedecer a esse esquema e envolver partes heterogéneas (por exemplo, um empresário e um consumidor), tornando difícil encontrar um «destinatário médio» do respetivo regulamento de interesses que possa servir de padrão de aferição do sentido relevante, quando falte a prova de um efetivo entendimento ou de uma vontade real comuns. Sobre o assunto, veja-se, em especial, FERREIRA DE ALMEIDA, O Direito, 1992:637ss.

Quanto aos contratos normativos, aos estatutos das pessoas coletivas e aos pactos sociais em geral, existe a aceitação generalizada de uma interpretação objetiva dos mesmos, não se atendendo em princípio à vontade dos fundadores ou participantes na sua redação. Mas nem se trata de opinião pacífica (cf., designadamente, HUGO FONSECA, 2008, passim, com mais indicações), nem é claro o significado da expressão «interpretação objetiva», oscilando as posições, com mais ou menos matizes, entre a aplicação da regra do art. 236º, nº 1, com a modificação resultante da supressão do declaratário concreto que se assinalou a respeito das declarações que não comportam este (cf., por ex., VAZ SERRA, RLJ, 103º, pp. 261ss e 523, 112º, pp. 22ss, e VASCO XAVIER,1976:564ss (nota), e RLJ, 121º, pp. 112s), e uma interpretação «de tipo legal», regida pelas regras do art. 9º do CC (e 10º, quanto às lacunas), com as necessárias adaptações [neste sentido, MENEZES CORDEIRO, 2011:494ss, ressalvando as cláusulas extrassocietárias e a aplicação da proibição do venire contra factum proprium (p. 497), e, já antes, ALMEIDA COSTA/HENRIQUE MESQUITA (1970)]. Salienta-se, em todo o caso, que a aceitação da interpretação objetiva e uniforme dos pactos sociais não obsta, nas pequenas sociedades fechadas, mormente as restritas aos fundadores, à relevância de acordos e entendimentos divergentes comuns a todos os sócios quando estejam em causa materialmente e no essencial os seus interesses.

VII - O art. 236º não indica o momento relevante a que se reportam a vontade real do declarante e as demais circunstâncias em concreto atendíveis pelo declaratário. Sem prejuízo da eventual relevância interpretativa do comportamento posterior de alguma das partes, em princípio será de considerar como tal aquele em que a declaração chega ao poder do declaratário real ou foi por ele conhecida, nos termos do art. 224º [cf. o Ac. do STJ de 20.01.2010]. Todavia, tratando-se de proposta contratual ou de oferta dependente de aceitação, parece de atender àquele em que esta aceitação ocorre. Se essa vontade do declarante entretanto mudou ou se alteraram as respetivas circunstâncias envolventes que poderiam influenciar a interpretação, isso será, em princípio, irrelevante. Estando em causa uma declaração sem declaratário concreto, parece de atender ao momento da sua emissão.

VIII – Na doutrina nacional, o art. 236º é objeto de mais que uma leitura. As orientações oscilam entre um método de interpretação de base subjetivista - fundado no nº 2, que assim seria a norma «primária» da interpretação - temperado com elementos objetivistas em nome de um princípio de responsabilidade aplicável ao declarante (nº 1) (cf., sobretudo, CARVALHO FERNANDES, 2010:169ss, 176ss/179ss, 443ss/447ss, e PAIS DE VASCONCELOS, 2010:550ss, ambos com mais indicações) e um método objetivista quase puro, sem temperamentos subjetivistas, em que praticamente se desconsidera a ressalva da parte final do nº 1 e em que o nº 2 ou traduz uma restrita manifestação do brocardo falsa demonstratio non nocet (relevância de eventuais códigos semânticos especiais das partes: MENEZES CORDEIRO, 2005:760ss, 763) ou alude a uma das circunstâncias relevantes na aplicação do critério objetivo do nº 1 [P. MOTA PINTO, 1995:212ss, 216ss; cf. FERREIRA DE ALMEIDA, 1992:187s (e nota 233), 197s].

Na jurisprudência, prevalece, ao menos nas fórmulas utilizadas, a ideia de um método objetivista, temperado com elementos subjetivistas, na esteira, designadamente, de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (cf., por ex., os Acs. do STJ de 16.10.2008 e 7.07.2009). O momento subjetivista manifesta-se aqui não apenas no relevo autónomo que se reconhece ao eventual conhecimento da vontade do declarante pelo declaratário (nº 2), mas também na ideia de que o declaratário deve procurar determinar a real vontade do declarante e não simplesmente o sentido objetivo da declaração.

IX – Em termos práticos, é entendimento generalizado que, mormente num contrato, se se prova existir uma real vontade comum ou coincidente das partes, é o sentido correspondente a essa vontade aquele que se considera juridicamente relevante, mesmo que ele não se encontre espelhado no conteúdo da declaração negocial ou só o esteja de modo imperfeito (falsa demonstratio non nocet). O nº 2 do art. 236º acrescenta que basta o conhecimento, pelo declaratário real, da vontade do declarante para a declaração valer com esse sentido [cf., por ex., OLIVEIRA ASCENSÃO, 2003:185, 188 e 190, P. MOTA PINTO, 1995:214 (e nota 89), 214s; contra, MENEZES CORDEIRO, 2005:763 e nota 2082].

Mais discutível é ligar automaticamente a estatuição do nº 2 do art. 236º ao simples conhecimento «ético» ou «normativo» da vontade real do declarante. Embora uma concepção subjetivista da interpretação tenda a afirmá-lo, importa separar as águas. Se o declarante provar essa sua vontade real e o respetivo conhecimento pelo declaratário, aplica-se o que aí se dispõe. Se a vontade era apenas reconhecível por um declaratário diligente, tal dado deve ser ponderado no âmbito da aplicação do nº 1 (cf. P. MOTA PINTO, 1995:211s).

X – Não se provando o sentido da vontade real do declarante, na data relevante, ou não se provando o seu conhecimento efetivo pelo declaratário, aplica-se o critério normativo objetivo do nº 1 do art. 236º: em princípio, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, poderia deduzir do comportamento do declarante; ou, numa formulação próxima, vale com o sentido que o declaratário real lhe daria se fosse uma pessoa razoável, diligente e de boa fé.

O intérprete deve procurar determinar o sentido que um declaratário normal do mesmo tipo do declaratário real daria à declaração, quando na posse dos seguintes elementos de informação: (i) os que são do conhecimento geral de um declaratário médio desse tipo; (ii) os que, se estivesse na posição do declaratário real, ele razoavelmente obteria para se inteirar do sentido da declaração, tendo designadamente em conta o teor e o contexto em que esta ocorre, o género de negócio em causa, o fim prosseguido, os interesses em jogo e os ditames da boa fé; (iii) outros porventura detidos pelo declaratário real e, ainda, os que este poderia ter obtido usando da diligência com que geralmente atua - máxime nas relações com o declarante, sendo esse o caso - e portanto com que o mesmo declarante legitimamente contava. Quando o declaratário real tem um perfil acima da média, conta sobretudo o seu horizonte de compreensão e conhecimento, a correção e a diligência por si normalmente utilizadas. Sendo o perfil inferior, vem para primeiro plano, para salvaguarda do declarante, a figura do declaratário normal, com o seu conhecimento e capacidade de entendimento e o respetivo padrão de comportamento.

XI - O padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames daboa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real (cf., v.g., C. MOTA PINTO, 2005:444, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA,1987:223, MENEZES CORDEIRO, 2005:759ss, e o Acórdão do STJ de 25.10.2011). A diligência aparece frequentemente referida, tanto na doutrina como na jurisprudência nacionais, à procura da vontade real do declarante ou à busca de elementos capazes de a revelar.

Cumpre observar o seguinte. Por um lado, a boa fé impõe a devida consideração do interesse do declarante, o que, em certas circunstâncias, em face de um teor pouco claro da declaração, do contexto em que ela ocorre, do género de negócio em causa e dos valores envolvidos, do fim prosseguido, etc., pode justificar um dever de esclarecimento por parte do declaratário junto dele. Por outro lado, sobretudo em negócios vultosos ou de grande sensibilidade, essa será também a atitude de um declaratário razoável, que, no seu próprio interesse, quer evitar futuras controvérsias acerca do conteúdo do negócio.

XII - A ressalva contida na parte final do nº 1 mostra-se controvertida (cf., por um lado, CARVALHO FERNANDES, 2010:449, FERRER CORREIA, 1967/1985:304 e 309, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, 1987:223, e CARNEIRO DA FRADA, 2012:979; por outro lado, MENEZES CORDEIRO, 2005:762s, e P. MOTA PINTO, 1995:216ss). Quanto às consequências, afirma-se em geral que, se o resultado da interpretação for inimputável ao declarante, a declaração negocial é nula ou ineficaz (ou é-o o respetivo negócio) (assim, por ex., VAZ SERRA, RLJ, 104º, p. 112 e notas 3 e 4, e RLJ, 110º, p. 350 e nota 1; cf., no entanto, GALVÃO TELLES, 2002:445s e nota 405, e TEIXEIRA DE SOUSA 1990:282).

XIII – Constitui matéria de facto saber qual foi o sentido efetivamente pretendido pelo declarante (a sua vontade real) e o eventual conhecimento da mesma pelo declaratário. Mas a interpretação em si é uma operação jurídico-valorativa («supra», I) e, desse modo, uma «questão de direito». Sobre o assunto e também conexa questão dos poderes de revista do STJ, cf. a Introdução, notas V, IX e X, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, 1987:224, VAZ SERRA, RLJ, 104º, p. 112s, e a anotação ao art. 238º.

ARTIGO 237º

Casos duvidosos

Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.

1. Antecedentes e trabalhos preparatórios: Art. 685º do CC de 1867; art. 3º, nº 2, do Anteprojecto de RUI DE ALARCÃO, BMJ, nº 84, 1959, pp. 334-336. Cfr. a Introdução aos arts. 236º a 239º.

2 e 3. Bibliografia e jurisprudência: Vejam-se, em geral, as indicações constantes da Introdução aos arts. 236º a 239º. Cf., em especial: CORDEIRO, A. MENEZES, 2005, pp. 765s, 2011, p. 497; FONSECA, HUGO, 2008, p. 67, nota 160; FRADA, M. CARNEIRO DA, 2012, pp. 978, 980, 983s; JÚNIOR, E. SANTOS, 1988, p. 134-137; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, 1987, pp. 224 e 225; SERRA, VAZ, RLJ, 110º, 1977/78, pp. 40-43, anot. ao Ac. do STJ de 13.01.1976; SOUSA, TEIXEIRA DE, O Direito, 122, 1990, pp. 281-290; TELLES, I. GALVÃO, 2002, pp. 323s; VARELA, ANTUNES, RLJ, 116º, 1983-84, pp. 186-191, anotação ao Ac. do STJ de 28.07.1981; VASCONCELOS, PAIS DE, 2010, pp. 554ss; VIEIRA, J. ALBERTO, 2006, anot. a este artigo; XAVIER, VASCO LOBO, 1976, pp. 564ss. Na jurisprudência, além destas indicações, cf. o ac. do STJ de 12.06.2012, proc. 14/06.7TBCMG.G1.S1.

4. Anotação: I - Quando da aplicação do art. 236º resultarem dois ou mais sentidos da declaração «baseados em razões de igual força» (PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, 1987:225), aplica-se o critério adicional estabelecido neste preceito. A disposição não é inteiramente nova. No domínio do CC de 1867, não sendo possível - em face dos termos, natureza e circunstâncias do contrato, bem como do uso, costume ou lei - depreender a intenção ou vontade dos contraentes sobre o objeto principal do contrato, o contrato era nulo (cf., por ex., MANUEL DE ANDRADE, 1960:314, e, a respeito do direito alemão, VAZ SERRA, RLJ, 110º, p. 351). Ressalvavam-se, no entanto, os casos em que a dúvida «insanável» recaía sobre os elementos acessórios do contrato, ultrapassável em termos análogos aos que agora se consagram também para os elementos essenciais do negócio.

II – Quanto ao campo de aplicação do preceito, já se observou [Introdução, nota II] que o sentido das CCG - ou de cláusulas com conteúdo previamente elaborado inseridas em contrato individualizado, quando o destinatário o não tenha podido influenciar - se determina, em princípio, através do critério do art. 236º, nº 1 (sem a ressalva contida na parte final); e que uma subsistente dúvida insanável é resolvida contra stipulatorem. O que parece significar, neste caso, a não aplicação do disposto no presente art. 237º.

Tem-se igualmente defendido a sua não aplicação aos estatutos sociais [assim, MENEZES CORDEIRO, 2011:497 (o campo de aplicação restringe-se aos contratos comutativos)] ou, pelo menos, a alguns deles (cf. VASCO XAVIER, 1976:564-569, nota 31, em especial, 566 e 569, e as indicações fornecidas por FONSECA, 2008:67, nota 160). Discute-se também a sua aplicabilidade aos testamentos (sobre o assunto, cf. CARVALHO FERNANDES, 2012:537) e o seu alcance no que respeita aos negócios que saiem fora da dicotomia negócios gratuitos, negócios onerosos (cf., por ex., PAIS DE VASCONCELOS, 2010:554ss).

III – Quando há dúvidas acerca do resultado da aplicação do art. 236º, nº 1 ? Afirma HÖRSTER que a «dúvida» a que o art. 237º se refere só surge quando, depois de aplicadas as regras da interpretação do art. 236º, a declaração permanecer sem um sentido único (1992:512). Ou seja, só depois de esgotada a via do art. 236º, quando não se consiga «um resultado seguro, permanecendo, portanto, duvidoso o sentido da declaração, é que tem lugar a aplicação das regras supletivas do artigo 237º» (VAZ SERRA, RLJ, 110º, p. 42). A dúvida pode respeitar não apenas ao «sentido da declaração acessível ao declaratário normal colocado na situação concreta do real declaratário», mas também ao «ponto de saber se o declarante podia ou não razoavelmente contar com o sentido acessível ao declaratário, divergente da sua vontade real» (ANTUNES VARELA, RLJ, 116º, p. 189).

IV – Infere-se do exposto que os critérios do art. 237º apenas intervêm a título subsidiário, resolvendo um «non liquet» resultante da aplicação do art. 236º (TEIXEIRA DE SOUSA, 1990:283, 287ss]. Em termos processuais, se não se fizer prova de que, no momento relevante, o declarante e o declaratário entenderam do mesmo modo a declaração ou o ponto da declaração em discussão (havendo tal prova, aplica-se a regra segundo a qual falsa demonstratio non nocet) - nem se provar a verdadeira intenção do declarante e/ou o conhecimento da mesma por parte do declaratário (se tal ocorrer, intervém ainda o art. 236º, nº 2) -, tem lugar a aplicação do art. 236º, nº 1. Mas este também se aplica se, em face da prova produzida, o tribunal ficar com dúvidas acerca do sentido realmente pretendido pelo declarante ou sobre um alegado conhecimento do mesmo por parte do declaratário; apenas no caso de essa aplicação do art. 236º, nº 1, levar a um resultado duvidoso entram em ação os critérios do art. 237º (cf., no entanto, TEIXEIRA DE SOUSA, 1990:287s e 290). Para mais desenvolvimentos, distinguindo as regras da interpretação e o «non liquet» que delas pode resultar das regras do direito probatório e de possíveis dúvidas neste plano, cf. TEIXEIRA DE SOUSA, 1990:283ss.

V - Além deste preceito geral destinado a resolver casos de dúvidas, existem igualmente regras especiais, que, em boa parte, cumprem função análoga e têm na base um princípio de aproveitamento do negócio jurídico (cf. TEIXEIRA DE SOUSA, 1990:289s). Todavia, nem sempre é fácil distinguir uma verdadeira regra interpretativa, máxime de aproveitamento de negócio ou estipulação potencialmente nulos (por indeterminabilidade do objeto), de uma simples norma supletiva.

VI - No preceito, assume particular relevo o princípio do equilíbrio das prestações – ou dos interesses das partes em confronto (cf. o art. 685º do CC de 1867) - aplicável aos contratos onerosos. Como observa ANTUNES VARELA, está em causa uma concretização de um princípio ou pensamento geral de justiça comutativa, que também aflora em diversas outras disposições do CC (mormente na compra e venda) e constitui um dos valores fundamentais de todo o Direito civil (RLJ, 116º, p. 190). Cfr., igualmente, MENEZES CORDEIRO, 2005:765s, e OLIVEIRA ASCENSÃO, 2003:193. No sentido de que o princípio da justiça ou do equilíbrio respeita a toda a tarefa de interpretação do negócio, de que o art. 237º contém uma norma material de interpretação e de que é necesssário, na resolução das dúvidas interpretativas, fazer intervir também o princípio da igualdade, cf. CARNEIRO DA FRADA, 2012:978, 982ss. Vejam-se, ainda, TEIXEIRA DE SOUSA, 1990:289 (aludindo também à «justiça interna» do contrato e à «posição relativa das partes») e PAIS DE VASCONCELOS, 2010:555s (para quem o sentido imanente ao preceito é o do recurso à equidade). No campo dos contratos administrativos, cf. MARCELLO CAETANO, 1982:612s, FREITAS DO AMARAL e LINO TORGAL, 2002:37, e FREITAS DO AMARAL/(MACHETE/TORGAL), 2011:608.

VII - Não sendo de todo possível, mesmo recorrendo ao art. 237º (e eventuais regras especiais), retirar um sentido plausível da declaração negocial, a consequência será a nulidade (cf., por ex., TEIXEIRA DE SOUSA, 1990:285s, com ulterior distinção, e CARVALHO FERNANDES, 2010:451s).


ARTIGO 238º

Negócios formais

1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.

1. Antecedentes e trabalhos preparatórios: Art. 4º do Anteprojecto de RUI DE ALARCÃO, BMJ, nº 84, 1959, pp. 336-338. Veja-se a Introdução aos arts. 236º a 239º.

2. Bibliografia: Vejam-se, em geral, as indicações constantes da Introdução aos arts. 236º a 239º. Cf., em especial: AMARAL, D. FREITAS DO /TORGAL, LINO, Estudos sobre concessões e outros actos da administração, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 31 ss; CÂMARA, PAULO, 2012, cit., pp. 454ss, 458s; CORDEIRO, A. MENEZES, 2005, pp. 767s; CORREIA, A. FERRER, 1967/1985, pp. 309s; JÚNIOR, E. SANTOS, 1988, pp. 151ss; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, 1987, pp. 225 e 226; SERRA, A. VAZ, RLJ, 101º, 1968-69, pp. 71-78, anot. ao Ac. do STJ de 6.06.1967, 103º, 1970-71, pp. 522 e 523, anot. ao Ac. do STJ de 24.10.1969, 105º, 1972-73, p. 269-272, anot. ao Ac. do STJ de 26.10.1971, 106º, 1973-74, pp. 202ss, 204, 107º, 1974-75, pp. 74 e 75, anot. ao Ac. do STJ de 16.02.1972, 110º, 1977-78, pp. 301ss, 306, 111º, 1978-79, p. 249; SILVA, P. COSTA e, 2003, p. 431ss; TELLES, I. GALVÃO, O Direito, 121, 1989, pp. 786-790, anot. ao ac. do STJ de 16.12.1986, e pp. 841-858. Doutrina estrangeira: GAUCH, PETER, 2001, p. 226; MEDICUS, DIETER, Algemeiner Teil des BGB, 10ª ed., Heidelberg, 2010, pp. 134ss (nºs 328-331), LARENZ/WOLF, 2004, pp. 532ss.

3. Jurisprudência: Na jurisprudência, vejam-se ainda, por ex., os acórdãos do STJ, de 31.05.2012, proc. 3671/09.9TBPTM-A.E1.S2, de 11.05.2011, proc. 2766/07.8TTLSB.L1.S1, de 25.10.2011, proc. 2546/07.OTBVLG.P1.S1, de 6.09.2011, proc. 4537/04.4TVPRT-A.P1.S1, de 20.05.2010, proc. 86/2000.L1.S1, e de 23.11.2005, proc. 05B3318; e os acórdãos do STA, de 24.02.2011, proc. 01053/10, de 15.05.1997, proc. 031984, de 13.03.1997, proc. 041290, de 18.03.1997, proc. 039401, de 8.03.2005, proc. 0739/04, e de 21.02.1991, proc. 028414.

4. Anotação

I – Aos negócios formais aplicam-se as regras enunciadas nos arts. 236º e 237º, com as especificidades previstas no preceito que se anota (cf., por ex., o Ac. do STJ de 31.05.2012). Atende-se, segundo a regra do art. 236º, nº 1, ao «sentido que uma pessoa medianamente sagaz, informada, sensível e prudente», agindo de boa fé, ou seja, segundo «padrões de objectividade, rectidão e protecção dos interesses que o negócio visa regular» ou salvaguardar, «colheria do texto se estivesse colocada na posição do destinatário real», levando ainda em conta a «intenção negocial» do declarante e «as circunstâncias envolventes, a que honestamente se poderia apelar, para surpreender o verdadeiro sentido [da sua declaração] de vontade»; e, dado o caráter formal do negócio, exclui-se «um sentido que não tenha no documento um mínimo de correspondência, a menos que estejamos perante circunstâncias que permitam a consideração do princípio “falsa demonstratio non nocet”» (cf. o Ac. do STJ de 25.10.2011).

II - São duas as especialidades.Funcionando as regras gerais dos arts. 236º - no caso do nº 2 na medida em que em que releva o simples conhecimento pelo declaratário da vontade real do declarante - e 237º, apenas se aceita, como sucede na interpretação das leis (art. 9º.2), um sentido que tenha no texto do documento um mínimo de expressão ou correspondência (nº 1). Provando-se, num contrato ou situação equiparável, a existência de uma vontade comum das partes, de um sentido compartilhado por ambas, mesmo faltanto essa base textual mínima, será esse o sentido relevante do negócio (falsa demonstratio non nocet), desde que as razões que justificam a exigência de forma não se lhe oponham (nº 2).

III – Importa salientar que a exigência de forma escrita ou solene não impede a relevância, na interpretação, de elementos informais, fora do texto (ou contexto) do documento. Admitindo-se, inclusive, se for caso disso, a sua prova mediante testemunhas (art. 393º.3) (cf. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, 1987, anot. 3, p. 226;VAZ SERRA, RLJ, 101º, p. 77, em nota). O que não se admite é a prova testemunhal do próprio negócio ou declaração negocial (art. 393º.1/2).

IV - No que toca ao âmbito de aplicação do preceito, cabe referir dois aspetos. Em primeiro lugar, levanta-se o problema de saber se os «negócios formais» nele referidos são apenas os legalmente sujeitos a forma( ad substantiam ou ad probationem)ou também quaisquer negócios escritos por simples vontade das partes. A orientação prevalecente vai no sentido de que só estão compreendidos negócios sujeitos por lei a forma especial (cf. VAZ SERRA, RLJ, 106º, p. 204, e RLJ, 108º, p. 23; PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, 1987, anot. 1, p. 225).

Observou-se supra que as normas legais relativas à interpretação não excluem eventuais regras ou critérios interpretativos acordados pelas partes (Introdução, nota III). Por conseguinte, se, por exemplo, as partes estabelecem, para certo negócio ou para certos tipos de negócios relativos às respetivas relações profissionais, a forma escrita (cf. o art. 223º), nada impede que, através da aplicação das regras gerais da interpretação a esse acordo, se conclua pela irrelevância de um sentido que saia fora do texto escrito desses negócios. Mas não parece que a um negócio formal por simples opção ou prévio acordo das partes se aplique o preceito em análise.

V – Em segundo lugar, há espécies negociais que merecem menção particular. Quanto ao testamento, existe uma disposição especial – o art. 2187º. Significa isso a não aplicação do art. 238º ? Não necessariamente. O art. 2187º.2 só considera relevante a vontade do testador que tenha no contexto do testamento um mínimo de correspondência. Porém, estando em causa a interpretação de disposições testamentárias meramente acessórias, mostra-se defensável a aplicação do art. 238º.2 (cf., CARVALHO FERNANDES, 2012:538; negando genericamente tal aplicação, cf. Ascensão, 2000:295, e, implicitamente, o Ac. do STJ de 16.12.1986, O Direito, 121, p. 771ss, com anotação crítica, quanto à aplicação do critério do mínimo de correspondência contextual, de GALVÃO TELLES, p. 786-790).

VI - No que respeita aos contratos administrativos, decorre do art. 280º, nº 3 ,do CCP – na mesma linha do primitivo art. 186º, nº 2, do CPA - a aplicação, no quadro especial do Direito administrativo, das regras gerais da interpretação dos negócios jurídicos (arts. 236ºss do CC); incluindo, portanto, as regras do presente art. 238º, relativas aos negócios formais [cf., por ex., o parecer da PGR de 1.06.2012, REBELO DE SOUSA /SALGADO DE MATOS, 2009:387 (interpretação objetivista, mas sem excluir princípio do art. 236º, nº 2) e FREITAS DO AMARAL/(MACHETE/TORGAL), 2011:605s, para quem, na interpretação do contrato, há que combinar as regras e princípios gerais do direito administrativo com os critérios dos arts. 236º a 238º, levando especialmente em conta a função legal de interesse público que através dele o contraente público prossegue e a acentuada e transparente procedimentalização da sua formação, que lhe confere um sentido objetivamente determinável]. Porém, já antes do CCP e do CPA se defendia uma interpretação objetivista de tais contratos - a partir necessariamente do seu texto (cf. MARCELLO CAETANO, 1982:610ss). Na jurisprudência, cf. o Ac. do STA de 8.03.2005, realçando em especial que a interpretação, a que se aplicam os arts. 236º a 238º do CC, «terá de ser sempre enformada pelo princípio da boa fé, pois que este princípio deve acompanhar toda a vida do contrato, desde a sua feitura até à sua extinção».

O panorama mostra-se bastante diferente no que toca aos atos administrativos, em relação aos quais ou se exclui a aplicação dos arts. 236º a 238º do CC ou se entende ser a mesma bastante limitada, colocando em lugar cimeiro, sobretudo nos atos vinculados, uma interpretação conforme à lei. No sentido de se lhes aplicam regras essencialmente correspondentes às da interpretação da lei, cf. os Acs. do STA de 13.03.1997 e 15.05.1997, ambos relatados por Vítor GOMES. Defendendo uma intepretação subjetivista mitigada, cf. REBELO DE SOUSA/SALGADO DE MATOS, 2009:146s. Cf., ainda, FREITAS DO AMARAL/(MACHETE/TORGAL), 2011:417ss.

VII – Quanto aos atos processuais, importa também fazer distinções. Tratando-se de atos processuais das partes, aplicam-se, em princípio, os arts. 236º a 238º (diretamente ou por força do art. 295º do CC). Salientam-se, no entanto: quanto à petição inicial e à contestação, as regras especiais constantes dos arts. 193º, nº 3, e 490º, nº 2, do CPC [arts. 186º, nº 3, e 574º, nº 2, do NCPC]; em geral, a circunstância de os atos serem dirigidos ao juiz (o qual, tendo que compreender o seu sentido para decidir, assume o papel de um terceiro neutro) mas destinarem-se a repercutir os seus efeitos na esfera jurídica da contraparte, o que implica alguma adaptação dos cânones gerais. Acerca do tema, considerando em especial os atos postulativos, cf. P. COSTA E SILVA (2003), p. 21ss, 63ss/66s, 361ss/374ss (máxime, 380ss).] Para os (heterónomos) atos do tribunal, parece justificar-se uma interpretação objetivista, semelhante à da lei. Cf., no entanto, o Ac. do STA de 24.02.2011, em cujo sumário de lê: «I - A sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro acto jurídico a que se aplicam as regras e os princípios gerais de interpretação da declaração negocial, devendo ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto, tendo em conta não só a parte decisória como toda a sua fundamentação».

VIII – Segundo o art. 238º, nº 1, a declaração só podevaler se tiver um mínimo de correspondência no texto. Que significa isto ? A declaração, interpretada nos termos gerais, se não cumprir este requisito é nula por vício de forma ? Ou a necessidade de expressão textual mínima é um dos elementos da interpretação, não podendo o resultado desta ser um sentido a que falte tal requisito ? No paralelo art. 2187º, nº 2, diz-se que a vontade do testador a que falte requisito correspondente «não surtirá qualquer efeito». O significado é o mesmo ?

A questão de saber se estamos ainda perante um problema de interpretação mostra-se controvertida. Por um lado, observa GALVÃO TELLES, 2002:447s, que, embora o seu texto levante dúvidas, o art. 238º respeita à interpretação (afastando um sentido decorrente da aplicação dos arts. 236º, nº 1, e 237º que não tenha um mínimo de correspondência no texto escrito; e, no caso do art. 236º nº 2, excluindo um sentido correspondente à vontade real se a isso se opuserem exigências de forma); cf. igualmente PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, 1987:225 (anot. 1). Por outro lado, entendendo que o problema é, no fundo, de vício de forma, pelo que, faltando um mínimo de correspondência do sentido que se apura através do art. 236º, nº 1, no texto, haverá uma «nulidade do negócio, em sede interpretativa» - e não uma prevalência do sentido objetivo normal -, veja-se, na linha de MANUEL DE ANDRADE (1960), C. MOTA PINTO, 2005:449. Cf. também CARVALHO FERNANDES, 2010:453.

Alargando o âmbito da discussão, existem sobretudo três teses em confronto. Primeira: os negócios jurídicos formais interpretam-se nos termos gerais (arts. 236º e 237º); a questão de saber se, com o sentido assim apurado, o negócio sofre ou não de um vício de forma resolve-se através da interpretação das normas que impõem a forma aplicáveis (das finalidades que elas cumprem no caso vertente). Segunda: salvo quando se prove uma vontade comum das partes, a interpretação deve basear-se no texto formal, apenas sendo atendíveis elementos ou circunstâncias que nele tenham uma expressão mínima (primeira versão da chamada Andeutungstheorie). Terceira: a interpretação dá-se nos termos gerais (art. 236º e 237º); se o sentido assim apurado não tiver um mínimo de correspondência no texto, o negócio, em princípio, será nulo (segunda versão da Andeutungstheorie); ressalva-se a eventual existência de uma vontade comum das partes (art. 238º, nº 2). Esta parece ser a interpretação a dar ao artigo que se analisa.

IX – Em face do art. 238º, nº 2, o sentido da declaração, contrato ou cláusula contratual correspondente à comum vontade real das partes (declarante e declaratário) considera-se, em princípio, como o sentido juridicamente relevante (o sentido da interpretação) mesmo que não tenha um mínimo de correspondência no texto (1ª parte). Só não será assim se a isso se opuserem as exigências de forma do negócio (2ª parte). Subsiste, no entanto, a questão: quando se opõem as razões de forma à «validade» da declaração com esse sentido ? E pode acrescentar-se: que significa isto ? A nulidade da declaração, negócio ou cláusula negocial, por vício de forma ? Ou a desconsideração desse sentido, atendendo ao que resulta do art. 236º desde que tenha um mínimo de correspondência no texto ?

MENEZES CORDEIRO, 2005/768, observa genericamente que, se a lei impõe certa forma para o negócio, há que determinar, através das regras da interpretação da mesma, «o preciso âmbito da exigência de forma: dentro dele, a falsa demonstratio não é possível», uma vez que tal «equivaleria ao afastamento consensual de regras formais»; fora dele («em áreas circundantes que escapem às exigênciads de forma»), «impõe-se a consensualidade, com o possível uso de códigos específicos de comunicação». Quanto ao último aspeto da questão, afima H. HÖRSTER, 1992:513, que o negócio é nulo, por vício de forma. No que respeita à primeira vertente da pergunta, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, 1987:225 (anot. 2), citando VAZ SERRA (RLJ, 101º, p. 77, nota), dão como exemplo ilustrativo o seguinte: se uma pessoa quer vender todo o prédio e declara na escritura que o negócio só abrange parte, o negócio não pode valer com o sentido pretendido; diversamente, se quer vender apenas parte e declara vendê-lo todo. Cf., igualmente, GALVÃO TELLES, 2002:447s.

Cabe referir ainda que, se a vontade comum não tem correspondência no texto porque as partes, propositadamente, assim o quiseram – não havendo portanto um mero lapso ou uma incorreção de linguagem -, o art. 238º nº 2, não tem aplicação. Estando em causa um negócio dissimulado, aplica-se o art. 241º, nº 2.

X – É matéria de direito saber se certo sentido tem ou não mínimo de correspondência no texto escrito. Cf., a este respeito, VAZ SERRA, RLJ, 105º, p. 271, em anotação, concordante neste ponto, ao Ac. do STJ de 26.10.1971. No mesmo sentido, a respeito de um testamento, revendo a decisão do tribunal da relação, cf. o citado Ac. do STJ de 16.12.1986 («supra», anot. V).Em geral, cf. a Introdução, notas V, IX e X, e a anotação ao art. 236º (nota XIII).


ARTIGO 239º

Integração

Na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução por eles imposta.

1. Antecedentes e trabalhos preparatórios: art. 704º do CC de 1867; art. 5º do Anteprojecto de RUI DE ALARCÃO, BMJ, nº 84, 1959, pp. 338-341. Veja-se, ainda, a Introdução aos arts. 236º a 239º.

2. Bibliografia: ALMEIDA, CARLOS FERREIRA DE, 1992, I, p. 219ss; BARBOSA, ANA MAFALDA, «O probema da integração das lacunas contratuais à luz de considerações de carácter metodológico — algumas reflexões», FDUC, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 da Reforma de 1977, II, Coimbra Editora, 2006, p. 367-392; CORDEIRO, A. MENEZES, I, 2005, págs. 769ss, II, t. IV, 2010, pp. 286s, e Da boa fé no Direito Civil, II, Almedina, Coimbra, 1984, pp. 1063-1080; FERNANDES, L. CARVALHO, II, 2010, pp. 444, 457-463, 521s, e A conversão dos negócios jurídicos, Quid Juris, Lisboa, 1993, pp. 547ss; LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, 1987, p. 226 e 227; MACHADO, J. BAPTISTA - «A cláusula do razoável», RLJ, 119º, 1986-87, p. 9, 162s; PINTO, CARLOS MOTA, 2005, pp. 454-457; SÁ, FERNANDO, «Cláusulas material adverse change (MAC) em contratos de compra e venda de empresas», Estudos em memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, UCE, Lisboa, 2012, p. 427-444, pp. 435ss, notas 37 e 38; SERRA, VAZ, RLJ, 103º, 1970-71, pp. 213-216, anot. ao Ac. do STJ de 4.03.1969, 107º,1974-95, pp. 74 e 75, anot. ao Ac. do STJ de 16.02.1972, 111º, 1978-79, pp. 345ss, 348s, anotação ao ac. do STJ de 6.04.1978; VASCONCELOS, PAIS DE, 2010, pp. 560-564. Na doutrina estrangeira: CZIUPKA, JOHANNES, «Die ergänzende Vertragsauslegung», JuS, 2009, pp. 103-106; LARENZ/WOLF, 2004, pp. 540ss; GAUCH, PETER, 2001, pp. 9ss; J. NEUNER, 2007, pp. 912ss.

3. Jurisprudência : Na jurisprudência, vejam-se, ainda, os seguintes acórdãos do STJ: de 17.04.2012, proc. 259/10.5TBESP.P1.S1, de 7.07.2009, proc. 284-C/1995.C1.S1, e de 5.02.2003, proc. 02S3746. Cfr., também, o acórdão do TRL de 6.10.2011, proc. 7685/10.8TBOER.L1-2.

4. Anotação: I – Ocupa-se o preceito das eventuais lacunas do negócio jurídico, quando falte disposição especial aplicável. À primeira vista, estabelece dois critérios de preenchimento das mesmas: o da vontade hipotética ou presumível das partes; e o superior critério da boa fé. Todavia, o seu exato alcance suscita dúvidas: por um lado, se a vontade hipotética das partes houver de entender-se em sentido naturalístico, sendo ela comum ou convergente, mostra-se questionável, pelo menos na generalidade das situações, que em nome da boa fé se venha desatendê-la; por outro lado, se está em jogo uma vontade normativa, a boa fé concorre para a sua determinação. Daí que, negando-se aquele primeiro entendimento da vontade conjetural das partes, já se tenha afirmado que a lei se limita a remeter para a boa fé ou, noutros termos, acolhe o critério da «vontade hipotética objetiva», segundo o qual, perante as declarações negociais e os demais dados relativos à situação existente, bem como os valores e interesses em presença, se procurará reconstruir, mediante ponderação objetiva, equilibrada e equitativa (boa fé), a «vontade justa» que as partes teriam se houvessem previsto o ponto omisso (cf. MENEZES CORDEIRO, 2005:776s, 774s; cf., igualmente, PAIS DE VASCONCELOS, 2010:563s). MANUEL DE ANDRADE, 1960:325, em que o legislador se inspirou (cfr. R. ALARCÃO, BMJ, nº 84, p. 340), ensinava que, para a determinação da vontade hipotética, «deve o juiz, colocando-se no plano das partes, orientar-se acima de tudo, por uma recta apreciação dos interesses em jogo, segundo as normas da boa fé», pelos usos e «quaisquer outras circunstâncias que razoavelmente possam ser chamadas ao caso». Num contrato, estão aqui envolvidas, em especial, a tutela da legítima confiança das partes e a devida consideração pela «lógica imanente» ao negócio, que, nos contratos onerosos, implica, nessa reconstrução, «ponderar critérios de racionalidade económica, do maior aproveitamento dos custos, e da redução destes, por forma a conseguir uma prossecução óptima dos fins do contrato» (assim, MENEZES CORDEIRO, 2005:778). Veja-se «infra», a nota VII.

II - O artigo alude genericamente à integração da «declaração negocial», pelo que o respetivo campo de aplicação se estende, em princípio, a qualquer tipo de declaração ou negócio jurídico cujo conteúdo se apresente lacunoso, incluindo negócios sujeitos a forma especial. Isso também sucede, designadamente, com as CCG (cf. o art. 10º do DL nº 446/85) e com os contratos administrativos (cf., por ex., FREITAS DO AMARAL/(MACHETE /TORGAL), 2011:605s). A respeito dos testamentos, cf., no entanto, por ex., CARVALHO FERNANDES, 2012:542s, para quem a aplicação ao art. 239º fica limitada a pontos secundários ou instrumentais, CORTE-REAL, 2012:102ss/104, e, menos restritivo, OLIVEIRA ASCENSÃO, 2000:298ss.

III – A aplicação do preceito pressupõe, naturalmente, a existência de uma lacuna; e de uma lacuna suprível (cf., por ex., MENEZES CORDEIRO, 2005:770s, e FERREIRA DE ALMEIDA, 1992:220s). Por exemplo, falta uma disposição regulatória sem a qual o programa contratual acordado não se realiza completamente e de forma a obter uma solução razoável, ajustada aos interesses em jogo (na doutirna alemã, cf., por ex., J. NEUNER, 2007:912ss, e J. CZIUPKA, 2009:103s). Saber se esse é o caso ou não é, ainda, um problema interpretativo.

A existência de lacunas é praticamente inevitável (cf. também, por ex., OLIVEIRA ASCENSÃO, 2003:196). Para isso concorrem, designadamente no domínio económico, fatores como o caráter mutável da realidade que pretende regular-se, a limitada capacidade de previsão das partes e os custos de transação proibitivos que a redação de um contrato «completo» implicaria; mormente um contrato duradouro ou cuja execução se prolonga no tempo. Compreende-se assim que a maioria das lacunas respeite a aspetos em que as partes não pensaram. Mas na sua origem pode estar também o facto de estas, ao concluirem o negócio, haverem deixado intencionalmente determinado ponto em aberto na esperança de virem ainda a acordo acerca dele, sem que tal tenha acontecido, a não atribuição de importância ao ponto omisso ou a circunstância de certa disposição ou cláusula contratual ser inválida ou ineficaz (cf., acerca das CCG, os arts. 9º e 13º, nº 2, do nº DL 446/85, bem como, relacionando o tema com os da redução e conversão do negócio jurídico, CARVALHO FERNANDES, 2010:522, 548-550, 1993:445, 547ss, MENEZES CORDEIRO, 2005:627s, 770s, 775, 878ss, PAIS DE VASCONCELOS, 2010:561, e ALMEIDA COSTA/MENEZES CORDEIRO, 1986:28).

Não existe lacuna se as partes conscientemente a afastaram, por exemplo, declarando de forma inequívoca que a regulação acordada sobre determinado ponto deveria considerar-se exclusiva. Mais latamente, tal como podem dispor sobre os elementos da interpretação, também lhes é permitido excluir ou limitar o recurso ao art. 239º. E, se a regulação adotada consagra de forma clara certa solução, não pode, a pretexto de que esta é inadequada ou injusta, descobrir-se nela uma lacuna.

IV - Em especial nos contratos duradouros, pode colocar-se o problema de saber se é de admitir uma lacuna superveniente, resultante da alteração, em vida do contrato, da situação económica e/ou jurídica existente na data em que ele foi celebrado, a preencher de algum modo através do art. 239º, ou se dessa alteração apenas resulta um problema regulatório a resolver de acordo com o disposto no art. 437º, dentro dos pressupostos deste. Entre nós, defende a aplicação preferencial do art. 239º FERNANDO SÁ [2012:434ss e notas 36ss (máxime, 37)]. Cf. também VAZ SERRA, RLJ, 111º, p. 345ss, 348s; e, distinguindo o campo de aplicação dos preceitos, veja-se MENEZES CORDEIRO, II/IV, 2010:286s.

V – Não é pacífica a relação existente entre este art. 239º e as eventuais normas supletivas suscetíveis de aplicação, direta ou analógica, à situação lacunosa. O entendimento mais generalizado vai no sentido de que o art. 239º apenas se aplica se não houver norma supletiva capaz de preencher a lacuna. O próprio art. 239º daria apoio a esta tese, na medida em que a expressão «na falta de disposição especial», dele constante, significaria inexistência de norma legal supletiva capaz de preencher a lacuna (cf. GALVÃO TELLES, 2002:448, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, 1987:226, anot. 2, e C. MOTA PINTO, 2005:455; no mesmo sentido, cf., ainda, por ex., o Ac. do STJ de 4.03.1969, RLJ, 103º, pp. 211ss, 212). Admitem-se, no entanto, exceções ou temperamentos a esse princípio (cf. VAZ SERRA, RLJ, 107º, pp. 74s, notas 2 e 3, CARVALHO FERNANDES, 2010:461s, C. MOTA PINTO, 2005:456s, aceitando excecionalmente o afastamento das regras supletivas fundado na boa fé (art. 334º), OLIVEIRA ASCENSÃO, 2003:196, nota 284, e, com maior amplitude, PAIS DE VASCONCELOS, 2010:561s); e há, mesmo, quem o conteste, dando prioridade à integração (cf. FERNANDO SÁ, 2012:436s, nota 38, com mais indicações).

Como coordenada geral, pode assentar-se em que o recurso à integração não pode deixar praticamente sem aplicação o direito supletivo, sobretudo tratando-se de contratos civis legalmente típicos e dotados de regulação legal desenvolvida e atualizada. Porém, tal regulamentação «típica» ou padronizada, exprimindo valores gerais de justiça, adequação e segurança (do tráfico jurídico e respetivos participantes), pode não se ajustar, sobretudo no evolutivo domínio comercial e societário, ao caso concreto: às especificidades deste, aos presumíveis interesses das partes e à necessidade de afastar ou ajustar as soluções rígidas dos modelos regulatórios legais, procurando soluções «individualizadamente justas», como é requerido pela autonomia privada. Mais em concreto, valem as regras que se seguem. Primeira: quando o problema possa resolver-se através do critério da comum vontade hipotética das partes, em sentido psicológico ou naturalístico, estando ainda em causa uma interpretação do negócio (comum ou complementadora), justifica-se recorrrer a ele. Segunda: quando tiver que se recorrer ao critério da boa fé, ou vontade hipotética objetiva, e portanto a uma solução substancialmente heterodeterminada, em princípio será de aplicar o regime supletivo. Terceira: demonstrando-se, no caso concreto, que a aplicação deste é irrazoável ou inadequada, por a lei já ser de algum modo datada (apesar do disposto na parte final do art. 9º, nº 1), em virtude da especificidade do negócio em questão ou por outra razão ponderosa, deve encontrar-se uma solução dentro dos parâmetros da boa fé, como dispõe o art. 239º, levando em conta as legítimas expetativas das partes e os interesses em jogo.

VI – O art. 239º também se aplica aos negócios formais. Tendo igualmente cabimento, quanto ao resultado da integração, aplicar o disposto no art. 238º. Cf. a respetiva anotação e, por ex., CARVALHO FERNANDES, 2010:462, e OLIVEIRA ASCENSÃO, 2003:199s.

Apesar de não se limitar aos negócios sujeitos a forma especial, mas apresentando especial interesse a seu respeito, levanta-se o seguinte problema, relativo ao âmbito da integração: esta circunscreve-se ao «domínio negocial traçado pelas partes» - opera dentro dos limites do objeto do negócio definido por estas - ou pode também levar ao seu alargamento e, inclusive, à sua substituição por objeto diferente ? Uma primeira orientação doutrinal e jurisprudencial é no sentido de que o objeto material de um negócio (ou leque dos deveres das partes) nunca pode substituir-se ou alargar-se, através de integração (cf. MANUEL DE ANDRADE, 1960:326, e H. HÖRSTER, 1992:514; na mesma linda, veja-se o Ac. do STJ de 4.03.1969, RLJ, 103º, pp. 211ss, com anotação de VAZ SERRA, pp. 213-216). Uma segunda corrente defende solução mais matizada, afirmando que «a integração de um contrato pode levar a uma ampliação ou extensão do seu objecto, embora não possa deixar de se manter dentro do domínio negocial traçado pelas partes: do fim e do sentido da regulação adoptada pelas partes para o seu negócio pode derivar que o objecto deste tenha de ser ampliado (ou restringido) para além do declarado explicitamente» (cf. VAZ SERRA, RLJ, 107º, p. 75). Cfr., ainda, remetendo, sem tomar posição, para os defensores das soluções anteriores, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, 1987: 226, anot. 3.

VII – Já se assinalou que o texto do art. 239º suscita dúvidas de interpretação. Um sentido possível será o que se segue. Na integração das lacunas utiliza-se primacialmente o critério da vontade presumível ou hipotética das partes, entendida como vontade comum ou coincidente que declarante e declaratário teriam realmente tido se houvessem previsto o ponto omisso. Porém, faltando elementos donde possa razoavelmente inferir-se tal vontade, serão determinantes os ditames da boa fé, ou seja, atender-se-á a uma vontade hipotética objetiva, nos termos indicados (cf. «supra», anot. I). Numa outra leitura, a vontade presumível ou hipotética será essa vontade objetiva. O que permitiria explicar a ressalva da sua eventual não conformidade à boa fé. Contudo, isto seria pressupor que pode encontrar-se tal vontade sem recorrer a esta; o que não parece aceitável (cf. «supra», I). Acerca do problema, além de MENEZES CORDEIRO, cit. (anot. I), cf., por ex., VAZ SERRA, RLJ 107º, p. 75, e PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA (1987:226, anot. 1.

Assinala-se, ainda, que alguma doutrina reporta o momento de aferição da hipotética vontade comum à data da emissão ou eficácia da declaração, enquanto, ao aplicar o critério da boa fé, o momento relevante seria aquele em que o problema se coloca (cf. C. MOTA PINTO, 2005:456, H. HÖRSTER, 1992:513S, CARVALHO FERNANDES, 2010:461).

Seja como for, cabe realçar que o juiz não pode emitir simplesmente o seu próprio juízo, mas tomar por base o texto e situar-se no contexto do negócio em causa. Em princípio, num comum contrato bilateral de troca, na falta de elementos que lhe permitam concluir com razoável segurança que as partes concretas teriam efetivamente consagrado certa solução se tivesem pensado no assunto (vontade hipotética quase real), ele deve prioritariamente procurar determinar o que as mesmas partes que definiram o conteúdo conhecido do negócio, agindo de forma coerente, como pessoas razoáveis e de boa fé, e ponderando os interesses em jogo, teriam acordado se houvessem previsto o ponto em causa; ou, noutros termos, deve procurar o modo como uma pessoa normal, razoável e de boa fé, pertencente ao círculo comum a ambas as partes, se for o caso, integraria a lacuna. Por norma, deve, em especial, afastar-se uma integração que leve a uma nulidade ou ilicitude.

VIII – Embora possua uma base factual mais ou menos significativa (constituída pelos dados em que se baseia o juízo sobre a vontade presumível das partes), a integração em si é operação jurídica. Assim, por ex., Menezes Cordeiro, 2005:779, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, 1987:226s, anot. 4, VAZ SERRA, RLJ, 103º, p. 213ss, anotação crítica ao Ac. do STJ de 4.03.1969. Cf., no entanto, a respeito do apuramento da vontade hipotética das partes, além desde Aresto, GALVÃO TELLES, 2002:449 e nota 409.



[i] Texto provisório, concluído em setembro de 2012, cuja versão definitiva será inserida, sob a autoria de Evaristo Mendes/Fernando Sá, no Comentário ao Código Civil, a publicar pela Universidade Católica Editora.