EVARIST​O MENDES

EVARISTO MENDES

Docente da Universidade Católica Portuguesa

A compra e venda como contrato translativo. Alguns aspetos [i]

ÍNDICE

§ 1º

Análise da noção legal do contrato

A) Análise da noção do art. 874 (pág. 3)

  1. A compra e venda como acordo jurisgénico

  2. A compra e venda como contrato translativo

    2.1 A ideia de transmissão e circulação dos títulos de crédito

    2.2 Transmissão e constituição de direitos

    2.3 Venda translativa e venda obrigacional

    2.4 Venda real; princípio do mero contrato

      2.4.1- Reserva de propriedade.

      2.4.2 - Transmissão de bens registados, créditos e posição contratual

      2.4.3 - Princípio consensualista e transmissão de títulos de crédito

  3. Objeto da atribuição translativa

    3.1 Âmbito. Casos especiais: posição contratual, quotas sociais, ações, segredos de comércio ou indústria

    3.2 Natureza do objeto e natureza do contrato (a venda de um bem futuro ou não individualizado ao tempo do contrato)

  4. O preço

    4.1 O preço bem como soma pecuniária

    4.2 O preço como correspectivo da atribuição patrimonial do vendedor

B) O resultado final típico e a causa do contrato (pág. 28)

   1. O resultado contratual típico e obrigação de entrega

  2. A causa do contrato

§ 2º

Classificação do contrato e sistemas translativos de direitos

A) Principais classificações do contrato (pág. 29)

1. A compra e venda como contrato de troca comutativo

2. A compra e venda como contrato sinalagmático

3. A compra e venda como contrato oneroso

4. A compra e venda como contrato translativo perfeito (real quoad effectum)

B) A compra e venda e sistemas translativos de direitos (pág. 31)

1. Sistemas unitários

2. Sistemas da separação

3. Direito português

4. Observações conclusivas

§ 3º

Compra e venda e figuras afins (pág. 38)

1. Compra e venda (de bens futuros) e empreitada

2. Compra e venda e contrato estimatório (ou “venda à consignação”)

3. Compra e venda (de coisa genérica) e contrato de fornecimento

4. Compra e venda e dação em cumprimento

5. Compra e venda e contrato de leasing

6. Compra e venda (de créditos) e contrato de factoring

7. Compra e venda (de frutos futuros) e locação (da coisa frutífera)

§ 1º

Análise da noção legal do contrato [ii]

A) Análise da noção do artigo 874 do código civil

A noção de compra e venda resulta essencialmente do artigo 874 do Código Civil – segundo o qual «compra e venda é o contrato (1) pelo qual se transmite (2) a propriedade de uma coisa, ou outro direito (3), mediante um preço (4)» – e que se analisará de seguida. Ela deve, no entanto, ser completada com o disposto no artº 879, que define o objeto imediato típico do contrato.

1. A compra e venda como acordo jurisgénico

A compra e venda é, tipicamente, um acordo bilateral de vontades tendo por objeto a produção de um determinado resultado jurídico de que depende a satisfação do interesse individual de cada uma das partes. Como qualquer contrato, ela é um acordo jurisgénico. Nem sempre, porém, se entendeu assim. No direito romano clássico, a compra e venda era também um contrato, mas esta palavra não era sinónimo de acordo ou mútuo consenso. Este acordo de dois ou mais indivíduos manifestado sobre um resultado jurídico pretendido não tinha, nesta altura, nem nome, nem teoria [iii] . O acordo era um simples pressuposto do contrato. Como a palavra o sugere, este era o quid ou negotium contractum. Era este que, no caso da compra e venda, na reciprocidade e interdependência das obrigações resultantes do acordo, a ordem jurídica reconhecia como fonte e justificação do vínculo.

Terão sido os bizantinos quem primeiro reconheceu ser o acordo ou conventio a essência do contrato e, portanto, a fonte dos efeitos jurídicos [iv] . Mas a compra e venda como simples acordo jurisgénico constituía exceção num sistema contratual típico, dominado pelo princípio de que solus consensus non obligat. Este estado de coisas só foi definitivamente ultrapassado, sob o impulso da escola do direito natural e do pensamento jurídico francês do séc. XVIII, pelo Código napoleónico, que, identificando-o com o acordo, lançou as bases da moderna teoria do contrato.

O acordo de comprar e vender representa, tipicamente, um exercício da autonomia privada. A compra e venda regulada nos arts 874 e seguintes do Código civil é, pelo menos em regra, um instrumento dessa autonomia, constitui uma autorregulamentação de interesses patrimoniais privados das partes (o vendedor e o comprador). As compras e vendas concluídas ao abrigo do artigo 830 do mesmo Código e, em geral, as vendas forçadas, mormente as executivas, requerem análise à parte, ficando fora do presente trabalho [v] .

2. A compra e venda como contrato translativo

A compra e venda – tal como regulada no CC - é, em segundo lugar, um contrato translativo, dominado pelo princípio consensualista ou princípio de mero contrato (reines Vertragsprinzip). Considera-se em seguida este aspeto.

2.1 A compra e venda é, na verdade, um contrato pelo qual se opera a transmissão de um direito. Em virtude do acordo das partes, o comprador fica investido na titularidade de um direito do vendedor, direito esse que mantém a sua identidade apesar da mudança de titular.

Esta ideia da transmissão de um direito que se traduz numa simples mudança na titularidade desse direito como entidade objetivada era desconhecida do direito romano e ainda no séc. XIX era contestada por juristas de renome como Wintscheid. No nosso sistema jurídico atual, a conceção do direito subjetivo como entidade suscetível de ser objeto de uma mudança de titular sem perda da sua identidade não deve sofrer contestação, bastando aqui remeter para a doutrina mais autorizada. [vi]

Mas a ideia de que a compra e venda opera a transmissão de um direito, do vendedor para o comprador, sem perda da sua identidade merece um exame mais atento no caso de o objeto da transmissão serem títulos de crédito, dado que um dos princípios caracterizadores do seu regime jurídico é o princípio da autonomia. Na verdade, há quem retire deste princípio que, ao circular, o título provoca sucessivas aquisições originárias do direito incorporado e, inclusive, que o próprio fenómeno translativo do título se traduz em aquisições da mesma índole.

Na literatura nacional, já muitos anos atrás defendeu o Prof. Galvão Teles que a transmissão dos direitos incorporados em títulos de crédito é um verdadeiro fenómeno sucessório, não só quando ela é, excecionalmente, uma transmissão de direito comum, mas também quando é uma transmissão segundo a lei de circulação dos títulos [vii] . A única especialidade desta última estaria em que, nela, o título da posição jurídica transmitida é substituído, tendo a posição jurídica do adquirente como título apenas o facto que determinou a transmissão.

Não se pretende desenvolver aqui este tema, o que seria descabido num trabalho desta natureza. Mas tem interesse dedicar-lhe algumas linhas, tomando como objeto de estudo aqueles títulos de crédito que maior importância têm como objeto da compra e venda – os valores mobiliários.

Imagine-se, por exemplo, a venda de um lote de ações ao portador em que estas foram transmitidas segundo a sua lei especial de circulação, isto é, por tradição dos títulos do vendedor para o comprador (art. 483 CCom, art. 327.1 CSC). É o direito do comprador o mesmo que existia na esfera jurídica do vendedor? Ou é um direito autónomo no sentido de um direito novo, diferente do do vendedor?

Deve, antes de mais, esclarecer-se que, dada a natureza não constitutiva deste tipo de títulos (cfr. o art. 274 CSC), não pode sofrer contestação que o objeto de compra e venda são diretamente as próprias ações. A ação é um “direito de participação”, ou melhor, uma unidade elementar de direitos de participação, contrapartida de uma parcela de capital subscrito e realizado em parte ou na totalidade. A sua identidade é definida pelos estatutos da sociedade, constituindo o contrato da sociedade o seu verdadeiro título jurídico. A esse direito é dada, tipicamente, uma representação externa individual – o título ou documento acionário. Mas este nem é o seu ato constitutivo nem o recria, ele representa-o apenas, com a identidade que decorre do seu ato constitutivo – o contrato social. A entrega do documento ao titular do direito torna-o, no entanto, um instrumento necessário e suficiente do exercício deste face à sociedade (instrumento legitimador) e dota-o de uma lei especial de circulação, única com eficácia face àquela – a tradição do título que o representa ( instrumento dispositivo). E, além disso, submete-o ao regime especial de tutela da circulação dos títulos ao portador.

Sendo transmitido por tradição do título, o direito (ou ação) passa do vendedor para o comprador com a sua identidade estatutária. O vendedor transmite-o, se é seu titular, tal como ele é definido pelo contrato social. Se, porventura, o vendedor não era seu titular, o direito e o título não se transmitem por simples efeito da compra e venda e da tradição. O que pode intervir aqui é uma regra especial de aquisição ope legis do direito e do título pelo comprador de boa fé, regra que decorre do regime jurídico do título. O comprador é legalmente investido na titularidade do direito tal como os estatutos o definem e o título (integrado per relationem) o representa. Se o vendedor era o titular do direito e fez uso dos seus poderes de disposição, a compra e venda opera uma verdadeira transmissão do direito. Este passa para o comprador na identidade que o seu ato de criação (rectius, os estatutos) lhe confere e que o título representa. Se, eventualmente a posição jurídica do vendedor não coincidia com a identidade estatutária do direito – porque este tinha, por exemplo, com a sociedade um acordo particular (isto é, exterior ao contrato de sociedade e, portanto, não integrado per relationem no título) que declarava as ações inalienáveis ou sem direito a voto, ou com direito de participação nos dividendos limitado, durante um certo período de tempo – ela não se transmite tal qual é, o que é transmitido é a posição jurídica do vendedor tal como o pacto social a define. As convenções particulares que contribuíam para, juntamente com o pacto social, definir a posição jurídica do vendedor face à sociedade são convenções pessoais, inoponíveis ao comprador. Mas, se a posição jurídica do vendedor era exclusivamente a que decorre do título acionário integrando per relationem os estatutos, é nessa posição jurídica que o comprador é investido. O comprador adquire, em qualquer dos casos, o direito que o vendedor detinha. Há aqui uma perda relativa e uma aquisição derivada do direito. Só que esta é relativa ao direito existente na titularidade do alienante tal como o ato da sua criação o define e o título acionário o representa.

Em síntese, o direito tem, verdadeiramente, como título jurídico o contrato social. É este que lhe dá a sua identidade, define o seu regime jurídico essencial. Se o direito é transmitido pelo seu titular inicial, ele passa para o adquirente sempre com a sua identidade estatutária. Esse título pode ser integrado, com relação a cada seu titular, por convenções particulares de que este seja parte, mas destas decorrem exceçõesmeramente pessoais; elas não afetam a natureza do direito que mantém sempre a sua identidade estatutária e assim se transmite. A autonomia decorrente do regime do título acionário, quando a aquisição é efeito de uma compra e venda, não é, portanto, incompatível com o caráter derivado de tal aquisição.

2.2 O termo transmissão é, por vezes, usado numa aceção ampla, de modo a abranger a própria constituição de direitos «reais» limitados. Neste caso, a aquisição do direito pelo comprador seria uma aquisição derivada constitutiva. O próprio legislador distingue, no entanto, no art. 408, as duas situações e, do confronto dos arts. 874 e 879 a) com o art. 939, pode também tirar-se algum argumento no sentido de que a transmissão a que se refere o art. 874 não abrange a constituição de direitos. Esta interpretação corresponde ao pensamento do autor do projeto relativo à compra e venda que está na origem deste artigo, que considera pressupor a transmissão (ou sucessão) “a anterior existência do direito, tal como o adquirente o obtém, na titularidade de outra pessoa” [viii] .

Parece seguro, de qualquer forma, que, na noção dada pelo art. 874, mesmo interpretando o termo transmissão naquele sentido amplo, não podem abranger-se as hipóteses de constituição de direitos reais de garantia, embora a aplicação do regime da compra e venda possa vir a aplicar-se-lhes por força e em conformidade com o disposto no art. 939. Mostra-se controvertida a questão de saber se estes direitos podem ser objeto autónomo e principal da transmissão [ix] .

2.3 A compra e venda é, como se assinalou, um contrato translativo , isto é, um contrato pelo qual se opera a transmissão de direitos. Enquanto contrato translativo, ela contrapõe-se à compra e venda meramente obrigacional. A transmissão é, no atual sistema legal, um efeito do próprio acordo de comprar e vender. Entre esse acordo e a transmissão não se interpõe um novo acordo ou, mais em geral, um ato jurídico autónomo especificamente destinado a operar esta última.

A compra e venda romana da época clássica e do direito justineaneu era, neste aspeto, substancialmente diferente. Ela era um simples contrato obrigacional e com efeitos, aliás, limitados, não se obrigando o vendedor a transmitir a coisa ao comprador e, portanto, a proporcionar-lhe a efetiva aquisição do direito sobre ela [x] . A aquisição de direitos decorria de um ato jurídico subsequente, a mancipatio, a in iure cessio, ou a traditio (cf. infra, § 2º).

Também é essencialmente diferente a compra e venda do direito alemão atual. Esta tem, tal como a compra e venda romana, natureza meramente obrigacional. Mas a sua eficácia é mais completa, tendo o vendedor a obrigação de fazer com que o comprador adquira a propriedade da coisa (ou o direito) – e uma propriedade livre de ónus ou encargos [xi] . A transmissão do direito é operada por um contrato translativo juridicamente distinto do da compra e venda (cf. infra, § 2º).

Ao direito romano era estranha a ideia de operar uma transmissão de direitos por efeito de um acordo das partes. No direito romano antigo, os atos jurídicos que desempenhavam uma função sócio-económica equiparável à da atual compra e venda (a mancipatio e a traditio) tinham uma estrutura jurídica unilateral [xii] . E na época clássica, quando o processo translativo integrava um contrato obrigacional de compra e venda e um subsequente ato translativo do direito vendido, nem este, nem aquele eram acordos jurisgénicos. No direito romano da época pós-clássica, a compra e venda passou a ser, em todos os negócios importantes, comumente documentada e a compra e venda de imóveis devia mesmo, a partir de Constantino, revestir a forma escrita (ainda que por razões fiscais). Por outro lado, a crise de confiança decorrente da crise económica e o ressurgimento dos direitos locais, sobretudo o grego, levaram praticamente ao desaparecimento da «compra» a crédito. E, neste contexto, com relação aos contratos escritos de compra e venda, foi afirmado o princípio de que emptione dominium transfertur: a transferência da propriedade dava-se com a conclusão do contrato e o pagamento do preço sem necessidade de um subsequente ato de aquisição, a mancipatio, a in iure cessio – que caem em desuso – ou a traditio. Mas a transferência prendia-se com a natureza formal do contrato, estando ausente a ideia de uma transferência do direito como efeito do acordo, e estava, ainda, dependente do pagamento do preço ou da prestação de garantia adequada [xiii] .

2.4 A compra e venda é, não apenas um contrato translativo, mas um contrato translativo perfeito. A transferência do direito é, não só um efeito do acordo de comprar e vender, mas é um efeito direto desse acordo. O consenso das partes, manifestado na forma devida, opera a transmissão sem ser através da tradição da coisa ou ato equivalente. Uma conexão entre o acordo e este ato é desnecessária para a produção do efeito translativo. Neste sentido, a compra e venda do nosso direito contrapõe-se, nomeadamente, à compra e venda tal como terá sido dominantemente configurada pela escola do direito comum e pelo ALR ( Allgemeines Landrecht) da Prússia de 1794 (cf. infra, § 2º).

Esta característica da compra e venda é comum a todos os contratos translativos. Ela decorre de um princípio pela primeira vez consagrado pelo Código napoleónico (arts. 1138 e 1583) e introduzido no sistema jurídico nacional com o Código civil de 1867 (arts. 715 e 1549) – o princípio consensualista, princípio do mero contrato, ou princípio da eficácia real. Segundo este, nos contratos translativos, a transmissão da coisa ou direito dá-se solo consensu. É o próprio acordo a causa da transmissão.

Já no direito anterior ao Código civil de 1867 as partes costumavam atribuir aos contratos celebrados por escrito eficácia real e, segundo Coelho da Rocha, tal era de «attender e respeitar» [xiv] . No direito atual, o princípio do mero contrato resulta dos arts. 408 e 409, bem como do articulado relativo à compra e venda [arts. 874 e 879 a); cf. o art. 939 e, para a doação, o art. 954 a)], sobretudo, interpretando-os à luz dos trabalhos preparatórios do Código civil, donde decorre o propósito de manter a tradição jurídica que vinha do Código de Seabra [xv] .

Mas não há no nosso direito uma disposição que formalmente consagre, com caráter geral, este princípio. Na verdade, o art. 408 refere-se apenas à transferência e constituição dos direitos reais, pelo que dele só resulta que os contratos translativos de direitos reais são contratos reais quoad effectum. E, mesmo com este âmbito de aplicação (aparentemente) limitado, o princípio da eficácia real é nele mais pressuposto do que consagrado. Com efeito, a eficácia real dos contratos translativos de direitos reais significa que a transmissão destes é um efeito direto do acordo, sem que seja necessário um ulterior requisito que complete a sua eficácia. A qualidade «real» de tais contratos quer dizer que o acordo é apto, por si só, para transmitir o direito. E desta qualidade decorre que, em princípio, o contrato opera a sua eficácia imediatamente. Uma coisa é, porém, saber se um contrato é um contrato real, ou seja, se é apto por si só a transmitir direitos desde que estes estejam em condições de poderem ser transmitidos – estando aqui em causa uma qualidade do contrato. Outra coisa é saber em que condições e em que medida um contrato dotado legalmente dessa qualidade opera efetivamente a transmissão. O art. 408 pressupõe a qualidade real do contrato e dispõe sobre esta última questão [xvi] .

O facto de um contrato ser real quoad effectum não significa que esta qualidade se torne imediatamente operativa, no caso concreto. Isso depende, pela natureza das coisas e de acordo com os princípios gerais reguladores da legitimidade para dispor, de que o direito exista e possa ser transmitido no momento em que o contrato é celebrado. Há, na verdade, determinados pressupostos gerais da transmissão que podem resumir-se no seguinte: é necessário que o direito exista individualizado na esfera jurídica do transmitente (equivalendo, para o efeito, à titularidade do direito o poder de dele dispor como bem próprio). Mas são pressupostos do próprio fenómeno translativo, exteriores ao contrato. O facto de algum desses pressupostos não se verificar não afeta em nada a sua natureza real. E é por isso que uma compra e venda tem exatamente a mesma natureza real, quer tenha por objeto uma coisa já existente como bem autónomo e individualizado no património do vendedor, quer se trate de coisa futura ou genérica. No primeiro caso, ela é imediatamente operativa (art. 408.1). Nos restantes, a produção do efeito translativo está dependente da verificação de um pressuposto geral relativo ao próprio objeto (e não à natureza do acordo): - que ele se torne presente no património do vendedor ou seja individualizado (art. 408.2).

Não sofre dúvidas, no entanto, que do conteúdo implícito e explícito no art. 408.1 se pode extrair a seguinte regra: a transmissão da propriedade é um efeito direto dos contratos translativos, e é um efeito também imediato se se tratar de coisa determinada ao tempo do contrato, existente no património do vendedor ou de que este podia dispor como coisa própria. Esta regra vale, com as devidas adaptações, para os restantes direitos reais. Mas é ela extensiva aos demais direitos?

No projeto de articulado do Prof. Vaz Serra [xvii] , o âmbito da disposição correspondente ao art. 408.1, o art. 5.1, era mais lato. Ela regulava a transferência de quaisquer direitos. O Código civil, fiel à pureza dos conceitos, restringiu esse âmbito, pondo-o de acordo com a epígrafe «contratos com eficácia real». Isto não significa, porém, que o princípio do mero contrato não seja um princípio geral do nosso direito, aplicável a todos os contratos translativos. Já no direito anterior, os arts. 715 e 1549 CC de 1867 também se referiam apenas à propriedade e o princípio era entendido como um alcance mais amplo. E, como se disse acima, houve a intenção de conservar a tradição. O art. 409 confirma-o, aliás, embora de forma implícita. O princípio do mero contrato é, na verdade, um princípio qualificador de uma certa categoria de contratos, é relativo a uma qualidade ou aptidão do acordo, não havendo razão para o mesmo contrato, por exemplo a compra e venda, ter ou não essa qualidade consoante o seu objeto seja um direito real ou um direito de outra natureza. E também não há razão para o art. 408 dispor apenas sobre o momento translativo dos direitos reais, devendo a regra aí contida aplicar-se ainda aos restantes direitos, respeitando apenas a natureza e o regime próprio destes. Ele é uma disposição paradigmática.

2.4.1 O facto de um contrato ter natureza real (ou, mais geralmente, ser um contrato translativo perfeito) não significa, no entanto, necessariamente que, uma vez verificados os pressupostos gerais do fenómeno translativo, ele opere a sua eficácia translativa de acordo com a regra do art. 408. Podem as partes apor-lhe uma cláusula de reserva de propriedade, nos termos do art. 409. A introdução no contrato desta cláusula significa que as partes não quiseram sujeitar-se incondicionalmente aos efeitos da natureza real do contrato (confirmando aquele artigo, como se disse, implicitamente, o princípio do mero contrato com relação a contratos tendo por objeto direitos reais e não reais). As partes não alteram a natureza do contrato; apenas condicionam a produção concreta do efeito translativo, que dele decorrerá (diretamente) uma vez verificado o pressuposto convencional da transmissão.

2.4.2 – Na compra e venda, como nos demais contratos translativos, a transferência de direitos reais, inter partes e erga omnes, dá-se solo consensu, «salvas as exceções previstas na lei». Esta ressalva consta do art. 408.1, in fine , e não existia no projeto do Prof. Vaz Serra. Os comentadores do Código civil [xviii] falam, a este propósito, das regras do registo, quando a coisa estiver, pela sua natureza, sujeita a este. Tratando-se da transmissão de direito sobre imóvel ou móvel sujeito a registo, aquela regra de eficácia sofre as limitações decorrentes do registo predial. E os mesmos princípios valem para a compra e venda de outros direitos sobre bens registados, embora com as especialidades resultantes do regime próprio destes. Estão neste caso, nomeadamente, as patentes (arts. 24 s CPI), os modelos de utilidade e os modelos e desenhos industriais (art. 68 CPI), as marcas (arts. 118 e 121 CPI), as participações sociais das sociedades em nome coletivo e das sociedades por quotas [art. 3 e) e f) do CRegCom (DL 403/86, de 3 de dezembro] e, porventura, as ações registadas nos termos do DL 408/82, de 29 de Set. (art. 4º).

A compra e venda de créditos (cf. arts. 577 ss) e de outros direitos de estrutura equivalente (cf. art. 588) opera, igualmente, a sua transmissão, entre as partes, por mero efeito do acordo (cf. o art. 578.1). Mas a transmissão só é eficaz face ao devedor cedido com a notificação da cessão ou a sua aceitação por este (art. 583.1; cf., ainda, o nº 2 deste artigo). E, sendo o crédito cedido a várias pessoas, prevalece a cessão que primeiro foi notificada ou aceite (art. 584).

O art. 789 do Código de Seabra fazia depender a eficácia da cessão, face ao devedor e a terceiros, da notificação desta, tendo tal posição, quando confrontada com o art. 790, e no que se refere aos terceiros, essencialmente, o sentido de fazer depender da notificação essa eficácia face aos credores do cedente [xix] . O Código civil atual apenas limita a eficácia da cessão nos termos já referidos, pelo que, sem prejuízo do disposto nos artigos 583 e seguinte, deve considerar-se que o direito se transmite com eficácia face a terceiros nos termos gerais, isto é, por mero efeito do acordo de cessão.

Mais complexa se apresenta a situação no caso de o objeto da compra e venda ser uma posição contratual. Duas questões principais se levantam. A primeira é a de saber se, neste caso, estaremos perante uma verdadeira compra e venda nos termos em que o objeto desta é definido pelo art. 874, e será tratada a propósito do objeto da atribuição translativa (infra, 3). A segunda refere-se à própria natureza bilateral ou trilateral do contrato e ao significado do consentimento da parte contratual cedida. Sobre ela importa agora dizer alguma coisa, já que, como se verá, entende-se ser afirmativa a resposta à questão anterior.

A lei considera o direito de crédito como um objeto autónomo de negócios, isto é, como uma entidade jurídica a se, separada da posição contratual do seu titular, estabelecendo que a cessão não depende do consentimento do cedido (art. 577.1) e que, quando a necessidade desse consentimento tenha sido convencionada entre o credor e o devedor, esta convenção é, em princípio, inoponível a um eventual cessionário. Mas também considera a própria posição contratual em si como «entidade jurídica», suscetível de ser objeto de negócios jurídicos. Isto resulta diretamente dos arts. 424 e seguintes, para os contratos (comutativos) com prestações recíprocas, mas retira-se também, numa leitura possível, do art. 995 do Código civil e dos arts. 182, 228 e seguintes do CSC, para os contratos associativos. A lei exige, porém, diferentemente do que acontece na cessão de créditos, que o cedido consinta na cessão (arts. 424 e 995 CC, 182 e 228 CSC). Entre nós, defendeu a tese de que o consentimento é uma declaração de vontade necessária para a perfeição do negócio - e, portanto, a cessão tem natureza trilateral - o Prof. Mota Pinto [xx] . A alternativa porventura mais aceitável a esta posição consiste em considerar que a falta de consentimento do cedido apenas afeta a eficácia da cessão.

Contra a tese da natureza trilateral da cessão podem dar-se os argumentos que se seguem. Em primeiro lugar, os arts. 425 e seguinte sugerem, de algum modo, que as partes da cessão são o cedente e o cessionário. Em segundo lugar, para quem considere, como Prof. Mota Pinto [xxi] , que a cessão da posição contratual é uma figura geral prevista com este caráter nos artigos 424 e seguintes e englobando as posições contratuais emergentes do contrato de sociedade, a natureza jurídica dessa figura pode ser esclarecida pelo regime legal da cessão de posições sociais.

Ora, no caso das sociedades por quotas, a lei expressamente declara que a cessão de quotas não consentida é, em regra, (meramente) inoponível à sociedade (considerada, comummente, pela doutrina como o “cedido”) – art. 228.2 do Código das sociedades. O consentimento é, portanto, exterior ao acordo de cessão. E, no caso das sociedades em nome coletivo, considerou também o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 22/3/1968 (in BMJ 175, p. 246 ss), ser o consentimento mero requisito de eficácia da cessão face aos sócios, à sociedade e a terceiros.

As partes podem, na verdade, convencionar livremente entre si a cessão de posições sociais porque se trata de valores patrimoniais existentes no património do cedente e, para a sociedade e os demais sócios, a sua cessão é res inter alios ata [xxii] . Esta doutrina – que pode ser estendida, por identidade de razão, à cessão de partes sociais numa sociedade civil, nos casos em que esta tenha uma significativa base patrimonial e não corresponda simplesmente ao exercício associado de uma profissão requerendo o concurso pessoal de todos os sócios -, ou quebra, portanto, a unidade da figura (tendo esta natureza bilateral no caso das posições contratuais emergentes de um contrato associativo e podendo ter, porventura, natureza trilateral no caso das posições decorrentes de um contrato comutativo) ou, querendo conservar a sua unidade, terá que se lhe reconhecer uma natureza bilateral, com o resultado de que uma cessão não consentida será meramente ineficaz e podendo esta ineficácia ser tão só relativa.

Não se veem razões para atribuir ao fenómeno da cessão em apreço dupla natureza, nem para reconhecer outra sanção para a falta de consentimento que não a simples ineficácia do acordo celebrado entre o cedente e o cessionário. O consentimento é apenas uma condição para o acordo de cessão ser eficaz face a um terceiro, ou, mais precisamente, é um meio para as partes obterem um determinado resultado contratual: uma cessão da posição contratual com substituição do cedente pelo cessionário face ao cedido. Mas deve considerar-se aquela ineficácia como absoluta ou meramente relativa?

No caso da cessão de quotas de uma sociedade por quotas, depender a cessão de quotas do consentimento do «cedido» significa que tal cessão, com eficácia face à sociedade, requer esse consentimento. Dito de outra forma, uma cessão não consentida é inoponível ao cedido. Esta regra pode generalizar-se a todos os tipos de contratos.

Mas uma segunda questão se põe: quais os efeitos da inoponibilidade ao cedido da cessão de uma posição contratual, no que se refere à eficácia da cessão entre as partes e face a terceiros? Qual o significado para as partes da (in)oponibilidade da cessão ao cedido?

Quanto às quotas de uma sociedade por quotas, a regra é, porventura, a de que, se as partes não subordinarem a cessão ao consentimento da sociedade, a falta desta não afeta a eficácia da cessão entre elas [xxiii] . Mas mostra-se defensável a tese de que a falta de consentimento acarreta a impossibilidade de registo da transmissão e, por consequência, a sua ineficácia face a terceiros.

Quanto à cessão de posições sociais das sociedades de pessoas e de posição contratual emergente de contrato comutativo, a regra não parece dever, porém, ser esta, mas a de que a falta de consentimento, que torna a cessão inoponível ao cedido, torna-a também ineficaz entre as partes – a menos que estas tenham convencionado o contrário. A razão desta possível diferença de regimes está, segundo creio, em que nas sociedades por quotas, o cedente que dispõe da quota não tem, além disso, tipicamente, um interesse patrimonial relevante em que a sua relação contratual com a sociedade termine (embora ele exista, em alguma medida, se o capital não está inteiramente realizado ou se são exigíveis prestações suplementares); enquanto que, nos restantes casos, é de crer ser essencial para o cedente a extinção do vínculo que o liga ao contraente cedido, e esta depende da eficácia em relação a este da cessão. Do contrato pode, no entanto, retirar-se a conclusão contrária.

Em suma, crê-se que o único efeito necessário para a falta de consentimento do cedido é a inoponibilidade a este da cessão. No caso da cessão de quotas (nas sociedades por quotas) não consentida, pode considerar-se, porventura, não ser uma consequência natural da inoponibilidade de uma tal cessão à sociedade a sua ineficácia também entre as pates; mas tal consequência pode resultar da vontade destas. Nos restantes casos, creio ser o efeito natural da inoponibilidade da cessão à sociedade a sua ineficácia absoluta, mas só um efeito natural, devendo, portanto, admitir-se convenção dos interessados em contrário. O que me parece, finalmente, de realçar é que a necessidade de consentimento respeita tão só às relações com o contraente cedido. Está em causa apenas tornar a cessão eficaz face a esse terceiro para conseguir um determinado resultado: substituir face a ele o cedente pelo cessionário. Não há qualquer interesse público a salvaguardar que justifique a sanção da invalidade da cessão nem quaisquer outros valores ou circunstâncias que imponham a ineficácia absoluta. No meu ponto de vista, a questão da eficácia ou ineficácia inter partes de uma cessão inoponível ao cedido é de interesse meramente privado.

2.4.3 Importa, finalmente, considerar uma questão especialmente controvertida: a saber se, no domínio dos títulos de crédito, também vigora o princípio da transmissão por mero efeito do acordo.

Abstraindo dos títulos nominativos a que se refere o art. 483 do C. Com., sem regime especial de transmissão, os títulos de crédito classificam-se correntemente em três grupos, segundo a sua forma, a que correspondem outros tantos modos de transmissão chamados «comerciais» ou modos de «negociação». E, sendo o título por natureza destinado à circulação, a transmissão assume nele uma tão grande importância que os autores o caracterizam frequentemente pelo seu modo de circular e, na sequência desta perspetiva, a doutrina outrora dominante negava a possibilidade de transmitir um direito «incorporado» num título de crédito, mesmo entre as partes, por mero efeito do acordo. Assim, a compra e venda de títulos - rectius, dos direitos que eles incorporam - seria uma convenção válida, porque o seu objeto é uma coisa no comércio, mas seria insuficiente para operar a transmissão do direito porque este está ligado ao título que o representa e «i1 faut ceder le titre par le mode qui convient à sa nature» [xxiv] .

A doutrina hoje dominante, quer em França, quer na Itália, é, porém, no sentido da afirmação do princípio consensualista, e a tendência da moderna doutrina portuguesa também [xxv] .

E vai-se mesmo ao ponto de considerar que, qualquer que seja a natureza do título, a tradição deste é a forma mínima mas suficiente da sua circulação (e do direito que ele incorpora) com eficácia face a terceiros, substituindo as formas comuns de operar uma cessão de direitos (de crédito) oponível àqueles. Nos títulos nominativos em que existe um registo no emitente, seria, no entanto, necessário provar a cessão eventualmente não documentada no título para o emitente ficar obrigado a averbá-la no livro de registos. E, no caso de haver uma transmissão de direito comum incompatível com uma transmissão posterior mas operada segundo a lei de circulação do título, esta prevaleceria [xxvi] .

Focando especialmente os valores mobiliários, que constituem os títulos mais significativos objeto da compra e venda, não parece haver razão para os subtrair ao princípio de que a transferência do direito e do título se dá entre as partes solo consensu. (Acerca da paralela questão de saber se o fenómeno translativo, entendido como fenómeno «sucessório, é compatível com a sua natureza, cfr. «supra», 2.1.)

Com efeito, o título, que nas conceções doutrinais dominantes constitui o «veículo» de transmissão do direito nele «incorporado», é um bem móvel e, como tal, transmissível segundo o regime geral de circulação dos bens desta natureza. Ele destina-se a dotar o direito de uma circulação mais fácil, mais rápida e mais segura, isto é, de uma lei especial de circulação, e não a substituir com caráter absoluto as formas de transmissão do direito comum. Levando à letra a metáfora do veículo, poderia dizer-se que o “passageiro”, além de circular através desse veículo (mais rapidamente), também pode circular a pé, não fica impedido de o fazer. O título só opera essa substituição em relação ao emitente. Face a este, o único modo eficaz de transmitir o direito é aquele que corresponde à lei de circulação do título. Mas o regime e a função do título e uma adequada ponderação dos interesses envolvidos na sua circulação não são em nada afetados com a aplicação do regime comum de transmissão dos direitos às relações entre as partes.

Aliás, tratando-se de títulos causais e declarativos, meramente representativos de um direito pré-existente, a sua emissão e entrega ao titular pode significar – por força da lei ou dos estatutos ou, ainda, de um acordo tácito nesse sentido – que o criador do direito e emitente do título só é obrigado a reconhecer a circulação do direito que se faça pelo modo de transmissão do título, mas tal facto nunca poderia significar uma alteração do regime geral de circulação do direito quando não estão em causa os interesses do emitente nem a circulação comercial do título é afetada. A regera fundamental na matéria é a de que o emitente é devedor do portador legítimo do título. Daqui decorre que a transmissão comercial do título prevalece sobre uma sua transmissão anterior de direito comum e que o emitente tem, em princípio, um interesse merecedor de tutela em não reconhecer como titular do direito quem não justifica a sua titularidade de acordo com o regime de circulação do título. Mas a questão da possibilidade de uma transmissão de direito comum com eficácia entre as partes é, uma vez dada prevalência à transmissão comercial e respeitado aquele interesse do emitente, indiferente do ponto de vista dos títulos de crédito.

Em conclusão, o título com o seu modo especial de circular não se destina a regular a transmissão do direito entre as partes. A transmissão do direito pelo modo de circulação do título corresponde àsua transmissão de direito comum com eficácia face ao cedido - isto é, à transmissão notificada a este – e substitui-a. Havendo título, o modo de transmissão eficaz face ao cedido é esse, não o da lei civil.

Havendo uma transmissão de direito comum (ainda que notificada) incompatível com uma transmissão comercial, uma vez que é esta aquela que ocupa o lugar da transmissão notificada de direito comum, ela prevalece, tal como prevalece, no regime comum, a transmissão que primeiro foi notificada . Respeitados estes princípios, uma transmissão do direito e do título fica sujeita aos princípios gerais.

Dito de outra forma, a transmissão do direito pelo modo de circulação do título é a sua transmissão com eficácia face àquele perante quem o direito é exercido (e a terceiros adquirentes do mesmo direito). Qualquer transmissão de direito comum é uma transmissão válida e eficaz desde que não incompatível com uma transmissão comercial. Só não terá, em princípio, aquela eficácia.

3. Objeto da atribuição translativa

A compra e venda é o contrato pelo qual se transmite qualquer tipo de direitos, incluindo a propriedade de coisas (art. 874), materiais e imateriais (cfr. o art. 1303). Estes constituem, assim, o objeto da atribuição translativa do vendedor.

3.1 Nem sempre este objeto foi tão amplo, abrangendo direitos de qualquer natureza – direitos reais ou outros direitos patrimoniais (autónomos), como a propriedade e o usufruto de coisas, os direitos sobre bens imateriais (nomeadamente, direitos da propriedade industrial e direitos de autor), direitos de crédito, etc. – e sobre bens existentes ou futuros, individualizados ou não. Assim, por exemplo, na compra e venda romana, as coisas só determinadas pelo seu género, quantidade e qualidade não podiam ser objeto do negócio; apenas se admitia a compra e venda de coisas a escolher de um conjunto determinado de existências. E ainda no direito intermédio a venda de quota de coisa indivisa era controvertida.

Mas a referência, no art. 874, apenas a direitos como objeto da atribuição translativa levanta a questão de saber se determinados bens jurídicos sobre os quais não existe um direito – ou a existência deste é, pelo menos, contestada ou não plenamente reconhecida – estão ou não incluídos na noção do preceito. Na realidade, é corrente a celebração de compras e vendas de posições contratuais, dequotas sociais, de ações, deestabelecimentos comerciais e industriais, de segredos de indústria (ou de segredos comerciais), ou mesmo do próprio saber fazer (know-how) enquanto conjunto sistematizado de conhecimentos secretos – ou de conhecimentos simplesmente dotados de uma relativa confidencialidade - que permitem o domínio de uma determinada técnica [xxvii] . Embora possam considerar-se estas realidades como coisas, dada a noção ampla de coisa do art. 202.1, e o facto de o próprio legislador as reconhecer como podendo constituir objeto de transações [cf. os arts. 424 ss e 995 CC., 182, 228 ss e 326 s CSC., 1085 e 1118 CC, 21 da lei do EIRL (DL 248/86, de 25 de agosto), e os arts. 25 e 26 do Código dos investimentos estrangeiros (DL 348/77, de 24 de agosto)], é difícil admitir a existência de um direito sobre a posição contratual, que o legislador parece reconhecer como entidade jurídica distinta dos elementos que a compõem, ou mesmo sobre uma quota (quando entendida como posição contratual decorrente do contrato de sociedade) ou sobre uma ação (entendendo esta como participação acionária independente do título que a representa - cf. o art. 274 CSC). E a existência de um direito sobre o estabelecimento, os segredos e o know-how não é universalmente reconhecida. Significa isto que não se trata de compras e vendas, tal como o CC as define e regula, ou, pelo menos, que esta qualificação é duvidosa (dependendo da resposta à questão de saber se existe um direito no caso do estabelecimento e dos conhecimentos técnicos)?

No que se refere à natureza jurídica da posição contratual, ela é, como se sabe, controvertida e não cabe no âmbito deste trabalho discuti-la. De um modo muito geral, pode dizer-se que, na configuração e interpretação deste instituto, se contrapõem, essencialmente, duas teorias: a teoria unitária (defendida entre nós por Mota Pinto e dominante na Itália) e a teoria que poderíamos apelidar de analítica, a qual, na verdade, engloba posições variadas em torno de um ponto comum: o fenómeno central, na cessão da posição contratual, é uma cessão de créditos e uma assunção de dívidas. Nesta ótica se coloca, na nossa doutrina, o Prof. Galvão Teles, que vê no fenómeno essencialmente uma cessão de créditos combinada com uma assunção de dívidas [xxviii] .

Na análise a que a seguir se procede, procurar-se-á interpretar o fenómeno apenas para os objetivos limitados deste trabalho e não teorizá-lo. Assim, apenas estará em causa a cessão de uma posição contratual que represente um valor patrimonial positivo, ou pelo menos, um valor que não seja negativo do ponto de vista económico e segundo a valoração das partes. Vista deste ângulo, aquilo que verdadeiramente constitui o conteúdo da posição contratual enquanto objecto da compra e venda é um direito qualificado pela situação jurídica contratual do seu titular , que forma com ele um todo, dando àquele titular um conjunto de poderes a ele relativos e, eventualmente, «condicionando-o», limitando o seu significado económico. Não é o direito puro e simples mas o direito com as vantagens e limitações decorrentes da posição jurídica em que se integra. O seu titular poderia porventura tê-lo destacado dessa posição jurídica e considerá-lo assim autonomizado como o objeto de negócios (quando a lei o consente), mas o que as partes quiseram foi considerá-lo como objeto de negócios enquanto integrado na posição contratual do seu titular, sujeito, portanto, à lei de circulação e demais vicissitudes desta.

Esta ideia é válida, não só quando está em causa a posição contratual decorrente de um contrato comutativo e, mais propriamente, com prestações recíprocas – hipótese diretamente regulada nos artigos 424 e seguintes -, mas também quando se trata de uma posição contratual num contrato associativo e, em especial, a quota ou participação social num contrato de sociedade, e ainda de uma posição contratual emergente de um contrato unilateral (rectius, de um contrato com atribuição patrimonial a cargo de apenas uma das partes), como defendeu o Prof. Mota Pinto [xxix] . Em qualquer destes casos, a posição contratual é um quid ou «bem jurídico» de caráter patrimonial de que o seu titular deve poder dispor. O direito que constitui o seu núcleo essencial deve poder ser trocado, enquanto seu elemento integrante (isto é, com o conjunto de poderes instrumentais, ónus e limitações a ele relativos), por um preço. No que se refere, porém, à posição contratual que englobe, além do direito, uma obrigação (pecuniária) - hipótese que o legislador terá tido especialmente em vista ao definir o regime geral da figura nos artigos 424 e seguintes (salvo no que se refere ao caráter pecuniário da obrigação) – creio serem possíveis duas perspetivas.

A primeira consistiria em considerar a posição contratual como uma unidade em torno do direito – porque é essa a vontade típica das partes no caso de uma compra e venda -, considerando a obrigação como um «encargo» a ele indissoluvelmente ligado. Tal como, no caso de a posição patrimonial ser passiva e alguém pretender adquiri-la para fazer uma liberalidade a favor do seu titular, ela seria considerada como uma unidade em torno da obrigação, a atribuição patrimonial do vendedor seria a transferência desse direito «onerado». Essa transferência seria um efeito do mero acordo de cessão e, como ao direito estaria ligada a obrigação, efeito da transferência do direito seria a assunção da obrigação. Esta transferência (com a inerente assunção da obrigação) só seria eficaz face ao cedido - nomeadamente, a cessão só seria liberatória - quando consentida por este. O preço corresponderia ao valor líquido da posição contratual, ao valor do direito «onerado».

A segunda, inspirada no pensamento do Prof. Galvão Teles, traduzir-se-ia em considerar o direito (com os “direitos” instrumentais e ónus a ele relativos, importantes, sobretudo, nos contratos associativos) como objeto da atribuição patrimonial do vendedor e a assunção da obrigação como fazendo parte da atribuição patrimonial do comprador. O contrato de compra e venda seria plenamente eficaz entre as partes com o mero consenso. E seria eficaz face ao cedido, isto é, operaria uma substituição do cedente pelo cessionário, não meramente interna, mas eficaz face ao contraente cedido, com a ratificação por ele do acordo de substituição implícito no contrato de compra e venda, ou com a sua notificação, no caso de a ter antecipadamente consentido.

Considerando esta segunda perspetiva, quanto ao problema da existência de uma verdadeira compra e venda [xxx] numa tal situação, creio que, se o direito que se cede é de natureza não pecuniária e a obrigação que o cessionário assume a favor do vendedor ou do cedido tem natureza pecuniária, há a transferência de um direito mediante um preço, do contrato emergem os efeitos característicos da compra e venda e há uma troca de um bem por uma soma, ainda que esta corresponda, normalmente, a obrigações para com sujeitos diferentes. À primeira vista, pelo menos, estamos perante uma compra e venda, embora com as especialidades resultantes de ela conter em si (ou veicular) uma cessão da posição contratual. É, porém, assunto para reflexão que ultrapassa os limites deste trabalho.

No que se refere às ações, embora doutrina autorizada considere a sua transmissão como uma cessão de posição contratual [xxxi] , tal entendimento suscita reservas. Com efeito, decorre de toda a história das sociedades por ações e do facto de a ação ser suscetível e mesmo destinada a ser representada por um título que esta é uma unidade elementar de direitos de participação (uns de natureza patrimonial – os principais – e os outros de natureza corporativa ou administrativa – instrumentais relativamente àqueles) cuja titularidade é atribuída a uma determinada pessoa em contrapartida de uma unidade também elementar de capital com que este entrou ou se comprometeu a entrar para a sociedade, e que o legislador considera como uma entidade jurídica a se e como a categoria jurídica originária e caracterizadora da sociedade por ações [xxxii] . Neste tipo de sociedades, a posição contratual dos sócios não é objeto de transações. Ela é uma posição derivada; entre o contrato social e ela interpõe-se a ação e ela existe em função desta: constitui-se, aumenta, reduz-se ou extingue-se em função da titularidade das ações. Mas a história destas [xxxiii] e um seu exame mais atento também levam a considerá-la, não propriamente como um bem sobre o qual recai um direito, mas como o próprio direito de participação, a que a lei deu uma especial configuração. Seja como for, a possibilidade de as mesmas serem objeto de transmissão mediante um preço não suscita dúvidas.

Como é sabido, a natureza jurídica do estabelecimento é largamente controvertida, embora a maioria dos autores lhe atribua, hoje em dia, ou a natureza de universalidade, ou a de um bem imaterial [xxxiv] . Para quem considere a universalidade em si como um bem imaterial e o estabelecimento como universalidade [xxxv] , ele será, simultaneamente, um bem imaterial e uma universalidade. É, no entanto, de realçar que, quando os autores discutem a natureza jurídica do estabelecimento, eles nem sempre estão a discutir a natureza jurídica do mesmo fenómeno, refletindo, muitas vezes, a divergência de opiniões esta diversidade de pontos de partida. A realidade que têm em vista qualificar não é a mesma. Noutros casos, entram em jogo diferentes conceções acerca das universalidades, sendo aquela divergência de opiniões o resultado desta diferença de conceções.

Pondo de parte os sentidos não técnicos e de uma forma muito esquemática, pode dizer-se que a palavra estabelecimento se emprega para identificar duas realidades distintas. A doutrina que se enquadra numa linha de pensamento mais tradicional e menos espiritualista identifica o estabelecimento com o conjunto organizado de elementos (materiais e imateriais) de caráter patrimonial que servem de base ou instrumento do exercício de uma atividade empresarial. E, dentro deste grupo de autores, uns consideram essencial a existência de uma efetiva afetação funcional desse conjunto ao exercício da atividade, enquanto para outros é suficiente a existência daquele conjunto organizado em função desse exercício que, porém, ainda não foi iniciado.

Outros autores chamam estabelecimento àquilo que poderemos designar como “organização de mercado” ou, de forma menos própria mas mais sugestiva, como “posição de mercado”. Esta tem, tipicamente, como suporte uma organização de fatores de produção sem, no entanto, se confundir com ela. O conjunto organizado de bens que, para os autores do primeiro grupo, constitui a essência do estabelecimento é aqui encarado como um simples suporte típico do bem ou coisa produtiva (isto é, dotada de aptidão para gerar lucros, de uma certa fertilidade, ou aviamento) que a posição de mercado conquistada (na sua teia de relações mais ou menos estáveis) constitui.

No primeiro caso, o estabelecimento poderá, porventura, qualificar-se como universalidade, se se tiver desta uma conceção suficientemente elástica e se tiver da organização uma conceção relativamente estreita. Não assim no segundo caso. O estabelecimento tem tipicamente como suporte (e, neste sentido, engloba) um conjunto organizado de elementos, qualificável, talvez, como universalidade, mas não se confunde com ele. Ele constitui um bem autónomo, de caráter imaterial, distinto dessa universalidade.

Quando o estabelecimento aparece como objeto de compra e venda, pode estar em causa o estabelecimento como conjunto organizado de elementos – o que é, naturalmente, o caso se esse conjunto, embora organizado em função do mercado, não serve ainda de suporte a uma efetiva posição nesse mercado. Havendo já uma posição de mercado constituída, o natural é que seja esta, diretamente e em primeira linha, considerada como o objeto do contrato – embora seja concebível uma «autonomização» do conjunto de elementos que lhe serve de suporte e a eleição deste como objeto (único) do negócio.

Como quer que seja, há hoje uma relativa convergência, sobretudo na doutrina nacional, quanto a este ponto: o estabelecimento é um bem autónomo, objeto de um direito [xxxvi] , e, desse modo, também objeto passível de compra e venda.

Já no que se refere aos segredos, a generalidade da doutrina considera que estes não são objeto de um verdadeiro direito, mas uma simples situação de facto juridicamente protegida. Ao reconhecimento de um direito sobre o segredo, considerado como bem imaterial, opor-se-ia a filosofia subjacente ao direito da concorrência e da propriedade industrial - assente no princípio da liberdade de imitação e de apropriação dos resultados do trabalho alheio, salvo na medida em que estes estejam protegidos por patente ou, excecionalmente, na medida em que aquele ato de apropriação ofenda gravemente os bons costumes ou «os usos honestos do comércio» [xxxvii] . A resultado semelhante poderia chegar-se por outra via, considerando o sistema dos direitos privativos como um sistema fechado ou típico, por aplicação, no domínio da propriedade industrial, do princípio do numerus clausus.

Importa, no entanto, distinguir dois planos. Não há dúvida de que, na nossa ordem jurídica como na dos demais países com ordenamentos semelhantes ao nosso, ao detentor do segredo não é reconhecido um direito privativo sobre o objeto do mesmo; e, portanto, se o seu caráter secreto desaparecer, mesmo por ato ilícito, ele perde definitivamente o valor patrimonial que o segredo lhe conferia e o poder de realizar o interesse que dependia da sua existência. Mas, enquanto o segredo existir, ele tem o direito de usar, fruir e dispor do respectivo objecto como «coisa» sua e de o defender contra as ameaças e tentativas de destruição de terceiros - ainda que os meios de defesa sejam um tanto limitados e possam não ser eficazes, precisamente, porque não se trata de um direito privativo. Trata-se de um direito que recai sobre um bem de natureza precária, protegendo a lei a sua existência apenas de forma embrionária e indireta, enquanto quid que beneficia de um exclusivo de facto proporcionado pelo segredo. Mas nem por isso deixamos de estar perante um bem, de caráter incorpóreo, objeto de um direito, cuja natureza não cabe aqui discutir. Este direito pode ser objeto de compra e venda e, neste caso, tendo o comprador direito à entrega do suporte material que o revela ou à sua revelação por outro meio. É claro que o resultado contratualmente previsto pode não se consumar porque, apesar de o segredo ter sido vendido, com ou sem obrigação do vendedor de deixar de fazer uso dele, a entrega (ou o equivalente desta, a revelação oral) pode não se realizar e a obrigação respetiva ser inexequível. Mas esta é outra questão.

As mesmas observações podem fazer-se para o know-how, enquanto conjunto mais geral de conhecimentos confidenciais com valor comercial. Realça-se apenas que, neste caso, a economia do contrato está muitas vezes decisivamente centrada na obrigação de «entrega», que pode envolver uma vasta atividade de assistência técnica, necessária ao domínio da tecnologia em questão.

3.2 A natureza do objeto da atribuição translativa pode ter uma importância maior ou menor quanto à determinação do regime e da eficácia translativa do contrato. Assim, quando o objeto da compra e venda está sujeito a um regime particular de circulação, como acontece, nomeadamente, com os créditos, os bens registados, a posição contratual, ou os títulos de crédito, este regime deve ser respeitado. E já se viu também que o fenómeno translativo adquire um significado especial (embora exista) no caso de objeto da transmissão ser um direito representado por título de crédito (cf. «supra», 2.1); e, ainda, que há determinados pressupostos gerais desse fenómeno translativo: é necessária a existência, na esfera jurídica do disponente, de um direito presente e recaindo sobre o objeto individualizado para que ele ocorra (cf. «supra», 2.4).

Importa agora – tomando como objeto de análise, em especial, a compra e venda de coisas e tendo em conta os pressupostos gerais do fenómeno translativo que acabam de referir-se – ver a importância que assume o caráter futuro ou genérico do bem que constitui o objeto da atribuição translativa [xxxviii] . Uma venda que tenha como objeto da atribuição translativa um bem desta natureza apresenta, antes de mais, uma eficácia translativa diferida, que só se torna operativa com a conversão do bem futuro em bem presente e a do bem genérico em específico ou determinado (art. 408.2; cf. os arts. 880.1 e 541).

Daqui decorrem determinadas consequência ao nível do seu regime, como a obrigação do vendedor a que se refere o art. 880.1 e, em matéria de vícios da coisa, a aplicação da norma do art. 918. Mas a questão principal prende-se com a própria natureza da venda. Segundo a doutrina italiana dominante, trata-se, nos dois casos, de uma compra e venda obrigatória ou obrigacional [xxxix] . E, no que se refere à compra e venda de bens futuros, há ainda quem a configure como um contrato incompleto ou em formação [xl] por lhe faltar um elemento essencial – o objeto. Entre nós, adere a esta posição o Prof. Raúl Ventura [xli] .

Diferente de qualquer destas construções é a do Prof. Galvão Teles [xlii] . Neste autor, é clara a distinção entre, por um lado, a qualidade translativa ou real quoad effectum do contrato e, por outro, a produção do efeito real ou translação do domínio. Aquela mantém-se intocada apesar de o objeto da transmissão ser um bem futuro; a alienação, quando se der e se se der, será ainda um efeito direto da venda. A produção do efeito é diferida, mais propriamente, fica em suspenso, condicionada à superveniência do bem. O contrato tem todos os elementos apesar de não existir um objeto atual. O objeto deixa de ser um requisito de validade e passa a ser um requisito de eficácia. A lei transforma-o num condicio iuris, num elemento futuro e eventual a que está subordinada a plenitude dos efeitos da convenção. Se não chegar a existir, a finalidade económica do acordo é frustrada, falta um pressuposto indispensável de eficácia e o contrato tem-se por não celebrado. É o regime da venda sob condição suspensiva.

Afigura-se que tese do negócio em formação ou «negozio a consenso antecipato» deve ser rejeitada. Com efeito, o legislador prevê expressamente no art. 880 a venda de bens futuros, tal como prevê, nos arts. 203 e 211, que as coisas futuras possam, enquanto tais, ser objeto de relações jurídicas (cf. o art. 202). Isto é, prevê que possa haver um contrato translativo [cf. os arts. 874 e 879a)] de um bem futuro, um contrato cuja atribuição patrimonial translativa tenha por objeto um bem ainda não presente na esfera jurídica do vendedor. E parece partir desta ideia também quando, no art. 408, regula a produção do efeito translativo por um contrato real (existente, completo e com esta natureza real) tendo por objeto a transmissão de um bem com esta característica.

Ora, a ideia de um contrato em formação por falta de objeto ao tempo do acordo, verdadeiramente, nega que a compra e venda, como contrato real que é, possa ter por objeto a transmissão de um bem futuro. O contrato só existirá quando o bem se converter em bem presente e, portanto, tiver por objeto a transmissão de um bem desta natureza e não um bem futuro. Tudo se passa como se fosse inconcebível um contrato translativo de um bem futuro. Esta ideia, além de contrariar a lei, que expressamente concebe este tipo de contrato, parece ter na sua base uma confusão de dois planos: o da natureza real ou translativa do contrato e o da produção do efeito translativo por um contrato desta natureza. Aquela implicaria a produção imediata deste ou, pelo menos, a possibilidade dessa produção; não seria concebível sem esta. Esses dois planos, como se salientou, são, porém, distintos: uma coisa é o contrato ter natureza real, de que resulta ser a transmissão uma consequência direta do acordo, e outra é ser essa transmissão um efeito imediato ou não desse acordo, o que já não depende da natureza do contrato, mas de pressupostos exteriores a ele, condicionadores da sua eficácia, isto é, da produção do efeito que ele é apto a gerar. Esta distinção, que também não é feita pelo Prof. Vaz Serra no estudo já citado quando da análise do art. 408, é clara o último estudo citado do Prof. Galvão Teles.

Uma análise do objeto do contrato esclarecerá melhor este assunto. Consideremos, em primeiro lugar, o objeto imediato do contrato. Um contrato de compra e venda de um bem ou direito futuro é, como qualquer outro contrato deste tipo, um contrato translativo, real quoad effectum. Tem, por isso, como objeto imediato a transmissão do direito. Mas como essa transmissão é de um direito ainda não presente na esfera jurídica do vendedor, ela é, por esta característica do seu objeto, uma transmissão diferida, suspensa. Isto é, neste caso, o contrato tem por objeto a transmissão que há de operar-se quando se der o pressuposto de que depende: ficar o direito sob o império do contrato, o que só acontece quando ele surgir na esfera jurídica (ou disponibilidade) do vendedor. Este objeto, assim concebido, pode ser, como qualquer outro objeto de negócios jurídicos, um objeto, física ou legalmente, possível ou impossível, contrário ou não à lei, etc. A transmissão do direito identificado pelo contrato pode ser, no futuro, objetivamente possível, como acontece, nos casos normais, com a venda de prédio a construir. Mas essa transmissão, ainda que diferida, pode também ser originariamente (isto é, ao tempo do acordo) impossível, como acontecerá no caso de venda de edifício a construir num determinado terreno que se vem a descobrir não ter consistência para suportar a construção. O contrato tem por objeto a transferência de um direito que não pode vir a existir na esfera jurídica do vendedor, portanto uma transferência impossível, e é nulo (art. 280.1).

Pode acontecer também que a futura transferência fosse possível no momento da celebração do contrato mas se tenha tornado, entretanto, impossível. Será o caso da venda de um aparelho sofisticado a construir, em cuja composição entre um elemento conhecido e disponível no mercado mas de fabrico secreto, aparelho que deixou de poder ser construído por ter desaparecido aquele elemento juntamente com o detentor do segredo. E, neste caso, a impossibilidade de o contrato operar a transmissão e, portanto, a impossibilidade de se produzir o resultado contratualmente programado, pode ser casual ou culposa. Será culposa, por exemplo, se a não aquisição tempestiva do elemento de fabrico secreto se deveu a negligência do vendedor ou do comprador.

A compra e venda de bens futuros tem, portanto, não só um objeto atual – a transmissão futura do direito -, mas um objeto que pode ter as características gerais, positivas e negativas, do objeto dos negócios jurídicos. A produção do efeito translativo e o cumprimento da eventual obrigação de entrega podem ser, originária ou supervenientemente, impossíveis. Qual deve ser, porém, o regime neste caso (no caso normal de compra e venda de rei speratae)? O legislador regula as situações de impossibilidade superveniente do cumprimento das obrigações, mas é omisso quanto às consequências da impossibilidade superveniente da produção do efeito translativo em casos como este, em que ele não é um efeito imediato do acordo. Suponha-se, por exemplo, que se trata da venda de um futuro direito de patente sobre invenção do vendedor (caso em que não há obrigação de entrega) no país A e que o comprador, antes de ser requerida a patente nesse país, faz nele uma experiência com a invenção, observada por um indivíduo que a divulga. Admitindo que, nesse país, este facto constitui uma anterioridade prejudicial da novidade do invento, a compra do direito deixa de ter um objeto possível; a produção do efeito translativo do contrato, originariamente possível, tornou-se impossível, por culpa do comprador. E o mesmo pode dar-se por culpa do vendedor ou por caso fortuito.

Deve aplicar-se o regime do negócio sob condição suspensiva? Deve considerar-se que, independentemente da verificação do pressuposto de que depende a produção do efeito translativo, o contrato produziu os demais efeitos e que, portanto, a confirmação de que aquele pressuposto não se verificará terá um efeito resolutório? Ou seja, deve considerar-se que as partes submeteram implicitamente o contrato à condição resolutiva da não verificação do facto de que depende a produção do efeito translativo? Não devem antes aplicar-se por analogia as regras que regulam a impossibilidade de cumprimento das obrigações? Nos dois casos há, com efeito, uma impossibilidade de se obter o resultado contratualmente programado. A resposta a estas questões já não cabe num trabalho desta natureza (cf., no entanto, infra).

Importa agora considerar o contrato pelo prisma do seu objeto mediato. Aqui se revela com nitidez o menor acerto da tese do negócio em formação por falta de objeto e também da tese da natureza obrigatória da venda. O contrato de compra e venda, como contrato translativo, é um meio ou instrumento, posto à disposição dos interessados pela ordem jurídica para estes obterem um determinado resultado jurídico: a modificação da condição jurídica de um direito, a sua passagem da esfera jurídica do vendedor para a do comprador. Esta modificação faz parte de um programa contratual global destinado a conseguir um resultado prático: a troca de um bem por uma soma pecuniária. Aquele meio é o acordo ou consenso e tem como causa esta troca. É ela que, sendo reconhecida pela ordem jurídica como um fenómeno relevante do ponto de vista sócio-económico, confere ao acordo a natureza de um instrumento jurídico, isto é, reconhecido e tutelado pelo direito. Esse meio desempenha a sua função, nomeadamente, modificando a condição jurídica de um objeto. Para ele se tornar operativo, é, portanto, necessário um objeto sobre o qual a sua eficácia translativa atue. Esse objeto é um direito que existe individualizado na esfera jurídica do alienante. Só nestas condições o meio está em condições de atuar.

Aqui se vê claramente a separação que existe entre o contrato, como meio para obter um determinado resultado que a ordem jurídica reconhece, e o objeto sobre o qual esse meio atua. O objeto não é um elemento do contrato. Ele é o quid sobre o qual o contrato atua, modificando a sua condição. Sem ele, o contrato não cumpre a sua função, tal como, passe a comparação, uma plaina não cumpre a sua função e, portanto, é sem utilidade se não houver madeira para sobre ela atuar. Mas ninguém pensaria em considerar que a falta de madeira, para cujo polimento a plaina foi concebida, altera a natureza desta, ou que ela constitui um elemento sem o qual esta não é perfeita, ou não está completa. Do mesmo modo a falta do objeto cuja transmissão o contrato se destina a operar não muda a natureza deste, nem o torna incompleto. Ela apenas o deixa (parcialmente) «inativo», é um simples pressuposto da sua operatividade, da produção do efeito translativo. Se é originariamente impossível que esse objeto venha a estar em condições de cair sob o domínio da eficácia do contrato, este não nasce como meio capaz de desempenhar uma função útil e, portanto, não é reconhecido pela ordem jurídica. Se essa impossibilidade é superveniente, penso que a solução poderia ser a aplicação, por analogia, dos princípios que regulam a impossibilidade de cumprimento das obrigações nos contratos bilaterais (arts. 795, 801 s).

Contra a tese da natureza obrigacional da venda, tanto no caso de o seu objeto ser a transmissão de coisas genéricas, como no caso de se tratar de coisas futuras, é de observar, especialmente e em síntese, que a obrigação do vendedor de colaborar na produção do efeito translativo é meramente eventual (embora típica, no caso dos bens futuros), e, quando existe, a transferência do direito sobre a coisa não é um efeito da sua execução. Ela é apenas relativa ao pressuposto geral, já várias vezes referido, de que depende a produção do efeito translativo, sendo este uma consequência direta do mero acordo, que constitui a sua única causa. Aquele pressuposto é uma mera condição dessa produção.

4. O preço

A contrapartida da atribuição patrimonial do vendedor é um preço, que pode ser pago antecipadamente, no momento da celebração do contrato ou num momento posterior. Nos primeiros casos, a obrigação de pagar ou nem chega a nascer ou é logo cumprida. No último caso, o cumprimento da obrigação pode ser, simplesmente, diferido ou ser feito em prestações (arts. 934 ss).

4.1 O preço é uma soma pecuniária [xliii] . Trata-se de um elemento já presente no primeiro e mais importante negócio iuris civilis destinado a atuar uma troca no antigo direito romano – a mancipatio. Mas o que se mostra verdadeiramente significativo é a circunstância de, na época clássica, a compra e venda aparecer como um dos quatro negócios em que surgiam obrigações solo consensu; estando o caráter pecuniário da prestação do comprador patente no facto de uma tentativa sabiniana para englobar a troca na noção de compra e venda não ter tido êxito. O direito justinianeu conservou esta tradição.

No direito vigente, ao contrato de troca e outros contratos onerosos de alienação de bens em que a contrapartida dessa alienação é um valor de natureza diferente da moeda aplica-se, na medida em que seja conforme com a sua natureza e não contrarie eventuais regras legais específicas, o regime da compra e venda, como dispõe o art. 939. A natureza pecuniária da prestação dá, porém, ao regime legal da compra e venda uma especificidade que é preciso ter em conta (cf., nomeadamente, os arts. 886, 884 e 911).

Questão diferente da da natureza da prestação do comprador é a dos modos de pagamento. O preço pode ser pago em numerário, mas também, designadamente, por meio de cheque, título de crédito cuja função é precisamente servir de moeda de troca, embora precária e destinada a ser «convertida» em moeda corrente, ou por meio de letra de câmbio, que pode cumprir idêntica função.

4.2 O contrato opera a transferência do direito mediante um preço. Este é, portanto, um correspetivo da atribuição patrimonial do vendedor. Quanto à correlação que deve haver entre a soma pecuniária e o valor do bem alienado para que aquela possa considerar-se como um preço e o contrato como uma compra e venda, salienta-se que as partes, ao abrigo da sua liberdade contratual (art. 405) – e desde que a composição de interesses operada pelo acordo seja digna de proteção legal -, são, em princípio, livres de convencionar a troca de um bem cujo valor seja objetivamente desproporcionado, em relação à soma, e vice-versa. Sem que haja simulação (art. 240), negócio usuário (art. 282), ou animus donandi. Mas, sendo irrisório o valor do bem ou o preço, esse acordo não deverá ser considerado como uma compra e venda, com sujeição ao regime legal a mesma.

É certo que no direito romano clássico a ideia de uma certa relação de equivalência era desconhecida e que, segundo a opinião dominante, o instituto posteriormente desenvolvido da lesão enorme não integra o nosso direito atual. Mas as situações são distintas.

A lesão enorme corresponde a uma ideia de grave desproporção entre os dois termos da troca: o preço não corresponde manifestamente ao valor real da coisa. Está em questão o equilíbrio ou desequilíbrio das atribuições patrimoniais. Apesar de se verificar um desequilíbrio objectivo, há uma troca de atribuições patrimoniais que ainda podem considerar-se correspetivas uma da outra. Neste ponto, embora o assunto mereça maior reflexão, o Código civil afigura-se conter a seguinte regra: quem define esse equilíbrio são as partes, sem a interferência tutelar do direito. A lei só intervém quando ocorra uma formação anómala da vontade das partes e, nomeadamente, o negócio seja usurário (art. 282).

A hipótese que se analisa está para além desse mero desequilíbrio: não há uma correlação mínima entre as atribuições patrimoniais que justifique a qualificação do contrato como uma compra e venda. Um determinado instituto jurídico tem um equilíbrio definido em função da sua causa. As partes podem servir-se dele e ajustá-lo para melhor realização dos seus interesses. Mas não podem desnaturá-lo, ficando, ainda assim, vinculadas pelo respetivo regime legal.

B) O resultado final típico e a causa do contrato

1. O resultado final típico que a compra e venda se destina a produzir é, segundo o art. 874, a transferência do direito e a transferência da soma pecuniária correspetiva. Este resultado deve ser completado – quando a realização do interesse contratual típico do comprador não se dá pela sua mera investidura na titularidade do direito, mas é necessário ainda pô-lo em condições de poder dispor e gozar normalmente desse direito e do seu objeto, assegurar-lhe a disponibilidade (material) da coisa – com a transferência da posse desta (ou do título relativo ao direito).

A produção deste resultado não é um mero efeito do acordo e, em muitos casos, também não é contemporânea do mesmo. Efeitos do acordo são a transferência do direito e a constituição das obrigações de pagar e de entrega (art. 879). Qualquer destes efeitos pode ser objeto de regulamentação das partes ou produzir-se de acordo com o respetivo regime legal (cf. os 408 s, 882 ss).

2 . Todo este programa contratual destinado a produzir aquele resultado é o meio jurídico de que as partes se servem para conseguir um resultado prático: a troca do bem pelo preço. Esta é, assim, a causa (final) do contrato. Tanto o resultado final acordado como o programa da sua realização estão em função dessa troca: constituem o meio ou instrumento jurídico por que ela se atua e dela depende a satisfação dos interesses individuais típicos do vendedor e do comprador.

Na perspetiva romanista do contrato de compra e venda, o acordo é um mero pressuposto do nascimento de uma entidade objetivamente considerada: a relação contratual recíproca. É esta que contém em si a justificação dos seus termos: as prestações do vendedor e do comprador são devidas porque são interdependentes. As obrigações e as respetivas prestações estão unidas por um nexo de causalidade recíproca. Essa interdependência é considerada como algo de objetivo e suficiente para justificar as obrigações de cada um dos contraentes. O acordo é apenas um pressuposto, ou facto que desencadeia o fenómeno: o quid que foi objectivamente contratado (contractus) e que o direito reconhece e protege.

O pensamento jurídico francês identificou definitivamente o contrato com o acordo. É este a fonte dos efeitos jurídicos. Mas a teoria do contrato ainda está bastante influenciada pela perspetiva romanista. Ela é ainda, em grande medida, a teoria das obrigações e da causa destas. É a causa das obrigações e não, verdadeiramente, a causa do contrato que constitui o fenómeno dominante. Esta confunde-se com aquela. Num contrato bilateral, cada uma das obrigações constitui a causa da outra… porque a relação é bilateral.

A perspetiva aqui seguida é a da moderna doutrina italiana. O contrato é um acordo em função de um objetivo prático – a troca, no caso da compra e venda. É esta a sua causa, a fonte e a razão da interdependência dos seus efeitos (obrigacionais e não obrigacionais). Ela é o elemento significativo do contrato, o espírito do resultado contratual acordado: ela unifica os elementos desse resultado, é a chave do seu significado e do seu regime jurídico. É a síntese dos efeitos jurídicos do contrato se por síntese se entender, não o mero aglomerado dos seus efeitos essenciais, mas o todo unitário de efeitos essenciais interdependentes.

A causa genérica do contrato de compra e venda é uma troca de equivalentes. Deve, no entanto, ter-se presente a aludida ideia de que são as partes quem define essa equivalência; não podem é ultrapassar um limiar para além do qual não se pode dizer que os termos da troca sejam correspetivos.

A causa específica é a troca de um bem por um preço. É esta a razão de ser de todo o programa contratual.

§ 2º

Classificação do contrato e sistemas translativos de direitos

A) Principais classificações do contrato

Circunscrevendo o texto apenas às classificações principais – e deixando de lado o caso especial da compra e venda de bens futuros, a que as partes podem atribuir caráter aleatório (art. 880.2) -, decorre da caracterização do contrato que se fez acima que ele é um contratocomutativo, bilateral ou sinalagmático, oneroso e translativo. E, pela sua integração num sistema translativo caracterizado pelo princípio do mero contrato ou princípio consensualista – isto é, pelo princípio de que dominia rerum solo consensu transferuntur -, é também um contrato com eficácia real (ou translativo perfeito).

1. A compra e venda, como resulta da sua causa genérica (ela opera uma troca de valores patrimoniais entre dois sujeitos), pertence ao grupo dos contratos comutativos ou de «escambo», utilizando ambas as palavras num sentido amplo. Neste sentido, contrapõe-se aos contratos associativos, que têm no contrato de sociedade o seu paradigma. É igualmente um contrato comutativo no sentido, mais restrito, de que a cada uma das partes sabe que, «a surtir efeito o contrato, dá e recebe, e quanto dá e quanto recebe» [xliv] , contrapondo-se, portanto, aos contratos aleatórios e constituindo uma sub-espécie dos contratos onerosos.

2. A compra e venda é também comummente classificada como um contrato bilateral ou sinalagmático [xlv] . A este respeito, importa, no entanto, observar o que se segue.

Nas classificações doutrinais dos contratos, o contrato bilateral é aquele que gera obrigações recíprocas para ambas as partes, obrigações interdependentes, correspetivas uma(s) da(s) outra(s). A relevância da classificação manifesta-se, designadamente, na exceção de não cumprimento (arts. 428 ss).

Uma compra e venda determinada é, neste sentido da expressão, um contrato apenas eventualmente bilateral. Em abstrato, a lei configura-o como tal [cf. o art. 879, als. b) e c)]. Em concreto, isso pode não suceder, embora se trate sempre de um contrato com atribuições patrimoniais recíprocas.

Com efeito, num contrato com atribuições patrimoniais recíprocas, como é a compra e venda, o nexo de correspetividade ou interdependência, o sinalagma, não se estabelece apenas entre os efeitos obrigacionais do contrato, mas é extensivo aos próprios efeitos translativos. Todos eles integram o programa contratual destinado a operar o resultado prático que constitui a causa do contrato e por isso são solidários entre si. Por conseguinte, dizer que o contrato de compra e venda é um contrato sinalagmático, no sentido tradicional desta expressão, é, no nosso direito, algo de menos caracterizador do que dizê-lo no sentido de contrato com atribuições patrimoniais recíprocas.

3. Além disso, também parece de distinguir esta característica do contrato da ideia de equivalência das atribuições patrimoniais [xlvi] . O contrato é, por um lado, um contrato com atribuições patrimoniais correspetivas, ou sinalagmático hoc sensu, isto é em que estas são interdependentes ou solidárias na produção do resultado final visado. E, por outro, é um contrato oneroso, isto é, um contrato em que as partes consideram as respetivas atribuições patrimoniais como equivalentes. Noutros termos, a compra e venda é um contrato oneroso porque as vantagens patrimoniais obtidas e os sacrifícios suportados por cada uma das partes são tidos como equivalentes.

4. A compra e venda é, enfim, um contrato translativo. E, quando tem por objeto a transmissão de direitos reais, é um contrato real quoad effectum [cf. arts. 874 e 879a)].

O contrato é translativo porque opera a transmissão de direitos, não constitui apenas uma relação jurídica obrigacional. E, pode, em concreto, ter uma natureza mista, translativa e obrigacional, que é, aliás, a sua configuração típica. Neste sentido, ele opõe-se à compra e venda meramente obrigacional daqueles sistemas jurídicos que separam, por um lado, os negócios fundamentais ou casuais – pelos quais se definem os termos e o conteúdo da operação que as partes pretendem realizar -, e, por outro, os negócios de disposição ou aquisição de direitos.

É, inclusive, um contrato translativo perfeito, em virtude de o nosso sistema translativo de direitos ser caracterizado pelo princípio consensualista, a que também pode chamar-se princípio do mero contrato. O efeito translativo é um efeito direto do acordo. Neste sentido, opõe-se aos contratos translativos «imperfeitos» que caracterizam um outro sistema translativo, segundo o qual os contratos translativos só operam a transmissão em conexão com a tradição da coisa ou ato equivalente.

É, ainda, um contrato real («quoad effectum») quando tem por objeto a transmissão de um direito real, de acordo com a classificação doutrinal tradicional, que o legislador parece ter tido o propósito de conservar, ao referir-se no art. 408.1 apenas à transmissão e constituição de direitos reais, eliminando a alusão a «outro direito» constante no art. 5.1. do projeto de articulado do Prof. Vaz Serra [xlvii] . Na verdade, a doutrina contrapõe, em geral, os contratos reais ( quoad effectum) aos contratos obrigacionais, destinando-se aqueles a constituir, modificar ou extinguir relações jurídicas reais, e estes relações jurídicas creditórias. O Prof. Vaz Serra tinha, no seu projeto de articulado de que resultou o art. 408 e no estudo que o procedeu, implicitamente, abandonado o rigor conceptual desta classificação, considerando como contratos com eficácia real todos os contratos translativos e constitutivos de direitos, reais ou não reais. Seguindo por esta via, poder-se-ia utilizar a expressão contrato com eficácia real como sinónimo de contrato translativo perfeito ou completo, aplicável à transmissão de quaisquer bens e direitos [xlviii] .

B) O contrato de compra e venda como contrato translativo com eficácia real. Sistemas translativos de direitos [xlix]

Num breve apontamento, os sistemas conhecidos de transmissão de bens e direitos podem reconduzir-se a dois grupos. Ao primeiro grupo pertencem aqueles que podemos designar como sistemas unitários. O segundo integra os sistemas da dissociação ou cisão.

Os sistemas unitários caracterizam-se pelo facto de o processo translativo ser uno, isto é, integrar um único acordo de vontades. Nos sistemas da cisão, pelo contrário, o iter translativo é complexo, integrando dois tipos de atos jurídicos de diferente natureza: um negócio jurídico causal ou fundamental, de natureza obrigacional e, pelo menos, um ato dispositivo ou translativo. Naqueles, a compra e venda é um contrato translativo, mesmo quando é insuficiente, por si só, para operar a transmisssão. Neste, ela tem simples natureza obrigacional.

1. Os sistemas unitários são (essencialmente) dois. O primeiro, no qual Portugal se integra desde o Código civil de 1867, é caracterizado pelo chamado princípio do mero contrato ( reines Vertragsprinzig, também chamado princípio consensualista) ou princípio da eficácia real dos contratos translativos, afirmado como princípio teórico pela Escola do direito natural e consagrado legislativamente, pela primeira vez, no Código napoleónico. É ainda adotado, nomeadamente, pela Itália, pela Bélgica, pelo Luxemburgo, pelo México e pela Inglaterra no que toca ao tráfico mobiliário [l] . O segundo pode considerar-se uma variante do primeiro. Caracteriza-se, tal como o quarto referido adiante, pelo chamado princípio da tradição (ou transcrição), segundo o qual o acordo não tem eficácia translativa a não ser em conexão com a tradição da coisa, na sua forma real ou numa das suas formas espiritualizadas, ou ato a ela equiparado (por exemplo, o registo da transmissão de bens registáveis). Nele se enquadram, porventura, o nosso antigo direito [li] , o Allgemeines Landrecht da Prússia de 1794 (ALR) e os direitos suíço, brasileiro, uruguaio, etc.; mas cumpre observar que sem uma análise aprofundada da doutrina e da jurisprudência de cada um de tais direitos – incompatível com os limites do presente trabalho - não se mostra segura a sua recondução a este ou ao quarto sistema exposto adiante [lii] .

No primeiro sistema, a transferência de direitos é um mero efeito do contrato, decorre diretamente do simples acordo translativo e, em princípio, é também um efeito imediato desse acordo (art. 408.1 C.c.). Isto é, os contratos translativos, como a compra e venda, têm eficácia real. No segundo, a transferência de direitos ainda se reconduz à compra e venda e a outros contratos que visam provocar uma deslocação patrimonial de um sujeito para outro (sendo eles, nessa medida, contratos translativos). Mas o contrato, o mero acordo, é, pelo menos quanto às coisas (materiais) e aos direitos registados, insuficiente para operar a transmissão. Ele só o consegue, via de regra, através de um ato de execução ou, talvez melhor, em conexão com ele (em especial, a entrega, real ou ficta, da coisa vendida, trocada, etc., ou o registo da transmissão). Pode distinguir-se neste processo translativo um título (constituído pelo contrato de compra e venda, troca, etc.) e um modus adquirendi, a tradição (ou ato/instrumento a ela equiparado), mas esta é um simples ato de execução da compra e venda, condicionante da sua eficácia translativa, e não um novo acordo – um contrato real quoad constitutionem (ou equivalente) – ou um ato de execução de um novo acordo (esse sim, translativo) contemporâneo da tradição (ou transcrição).

Este segundo sistema é o que corresponde à evolução natural dos atos jurídicos que – nas sociedades arcaicas e, nomeadamente, nas da Europa ocidental a seguir à queda do Império romano do ocidente – desempenhavam a função de operar uma troca de bens por dinheiro. O primeiro é, essencialmente, uma herança espiritual da Escola de Direito Natural. É certo que, em Portugal, se pode dizer que a sua consagração foi apenas o último passo de uma evolução, já que as formas espiritualizadas da tradição e o constituto possessório [liii] tinham esvaziado de conteúdo material o princípio de que nudis pactis dominia rerum non transferuntur e, além disso, se é correta a interpretação que se faz das palavras de Coelho Rocha, tinha-se mesmo admitido, ainda antes do CC de 1867, que as partes pudessem nos contratos escritos atribuir eficácia real ao acordo translativo [liv] . A ser assim, este Código, no art. 715 (cf. também o art. 1549), apenas terá generalizado e consagrado uma regra da prática. O mesmo se terá, aliás, passado noutros países, como a Itália [lv] . No entanto, foi a conceção voluntarista do direito e do contrato da Escola de Direito Natural que influenciou decisivamente o pensamento jurídico francês, sobretudo Domat e Pothier, e que levou à sua consagração legal pela primeira vez no Código napoleónico.

2. O sistema da separação entre negócios (ou atos jurídicos) de disposição (ou de aquisição), por um lado, e negócios causais ou fundamentais de natureza meramente obrigatória, entre os quais se conta a compra e venda, por outro lado, já praticado na época clássica romana, é o sistema do Código civil alemão vigente (BGB) (cfr. sobretudo o § 929) e, ainda, o de outros direitos que seguem numa certa linha de interpretação da teoria do título e do modo, que podem reconduzir-se ao modelo do ABGB austríaco (cfr. sobretudo os §§ 425 e 1053) [lvi] .

Há, no entanto, diferenças assinaláveis entre o direito alemão, por um lado, e aqueles que seguem o modelo austríaco, por outro lado; encontrando-se este último, inclusive, em termos substanciais, mais próximo do segundo sistema acima assinalado. Quer dizer, o sistema da separação engloba, na realidade, dois sistemas distintos: o sistema germânico da transmissão abstrata - que combina um princípio da separação (Trennungsprinzip) com o princípio da abstracção ou independência dos negócios dispositivos ( Abstraktionsprinzip) [lvii] - e o sistema da transmissão causal, em que no lugar deste último princípio surge um princípio causalista, de dependência dos negócios de disposição relativamente aos contratos fundamentais, de índole obrigacional. No primeiro caso, estamos perante um sistema da separação, dissociação ou cisão com princípio da abstração. No segundo perante um sistema da separação com transmissão causal.

O sistema da cisão ou princípio da separação representou, no caso do direito romano, um progresso (com o surgimento dos contratos obrigacionais de natureza consensual); e cumpre, no direito alemão, para além de uma função de simplificação sistemática, a de servir de base ao princípio da abstração. Desaparecidas as razões que estiveram na sua origem e afirmado o princípio causalista, pareceria lógica a interpretação dos textos que seguem na linha do jus commune e do ABGB no sentido de ver neles uma expressão do sistema unitário com princípio da tradição (ou transcrição). A doutrina dominante em vários países tem-se, no entanto, mantido fiel à tradição romanista da separação entre os negócios causais (entre os quais se conta a compra e venda), meramente obrigacionais, e os negócios dispositivos, ambos necessários para a transmissão de direitos.

2.1 No direito romano antigo, o ato jurídico que operava a função sócio-económica de uma compra e venda da propriedade quiritária era a mancipatio, por isso considerada, correntemente, como a própria «venda» iuris civilis dos tempos anteriores à época clássica. Ao lado dela existia um outra forma de realizar uma troca manual de bens por dinheiro, a traditio, mais propriamente, a dupla traditio, ato informal este, usado no tráfico com os estrangeiros e das coisas de menor importância sócio-económica ( res nec mancipi). Mas, como só as res mancipi eram objeto de dominium ex jure Quiritium (tutelado peloreivindicatio), apenas a mancipatio – ato solene de aquisição como convinha à natureza do seu objeto – constituía um meum esse ex iure Quiritium. As res nec mancipi eram apenas objeto de possessio e, por isso, a traditio constituía um simples meum esse, um título de posse, para o accipiens. Só numa época menos recuada, difícil de precisar, a traditio se transformou num instituto jurídico, sendo então a aquisição do dominium considerada como uma consequência da transferência da possessio.

Estes atos tinham uma estrutura jurídica diferente da de um contrato. Limitando agora a análise ao verdadeiro ato iuris civilis dos tempos mais antigos, a mancipatio, ela tinha essencialmente o caráter de uma vindicatio pacífica da coisa por parte do comprador, era um ato unilateral de aquisição, justificando este a sua constituição como dominus com a declaração solene de ter comprado a coisa pagando o preço: «hunc ego hominem ex iure quiritium meum esse aio isque mihi emptus esto hoc aere aeneaque libra». Inicialmente, era uma forma solene de operar uma «venda» manual. Posteriormente, ter-se-á admitido uma transferência da propriedade independentemente do pagamento efetivo do preço. O que importa aqui realçar é, no entanto, que este ato - que desempenhava a função sócio-económica típica de atual compra e venda no nosso sistema jurídico - tinha uma estrutura jurídica completamente diferente.

Na época clássica, a troca manual de bens por dinheiro continuou a fazer-se através da mancipatio e da traditio. Mas, ao lado destas formas simples de troca, aparecia já um processo translativo de bens contra um preço mais complexo e mais espiritualizado, composto por um contrato consensual de compra e venda e pela mancipatio (mais raramente a in iure cessio) ou pela traditio, cumprindo estas uma função de simples modos de aquisiçãoda coisa vendida.

O centro de gravidade do sistema estava aqui no contrato de compra e venda, que, porém, era um mero contrato obrigacional e com efeitos algo limitados. Ela não era um contrato translativo, ainda que imperfeito. A palavra contrato era sinónimo de contrato obrigacional (enquanto os atos de aquisição tinham uma estrutura unilateral, como se disse). Além disso, tinha um significado objetivo, bem diferente daquele que a palavra tem hoje, como se observou mais acima.

Este sistema representou um progresso relativamente ao sistema translativo unitário do direito antigo na medida em que se reconheceu juridicamente um simples contrato consensual de compra e venda, independente, portanto, das formalidades da mancipatio e da presença e entrega da coisa. Ele correspondia às necessidades (e conveniências) do tráfico dos bens, facilitava as transações.

2.2 Inspirando-se num suposto modelo romano clássico e, sobretudo, no pensamento de Savigny, o BGB (cf. os §§ 433 ss, 873, 925 ss, 929 ss) consagra um sistema de transmissão de coisas caracterizado integralmente pelo princípio da separação entre o negócio causal de compra e venda (de troca, etc.) e o negócio de disposição. Mesmo no caso de uma compra e venda manual, entendida pelo senso comum como um ato unitário, ela é juridicamente cindida em três negócios: o negócio causal de compra e venda, de natureza obrigacional, e os negócios «reais» de disposição da coisa e da soma pecuniária. É, portanto, um sistema criado artificialmente, sem correspondência na vida real, e destinado a introduzir no processo translativo dos bens um princípio de abstração que visa garantir a segurança do tráfico jurídico. Por este princípio, o negócio translativo, que é constituído por um acordo e pela tradição da coisa ou pelo registo dos bens a ele sujeitos (discute-se, no entanto, se a tradição e o registo são elementos de perfeição do contrato ou se são meros requisitos de eficácia [lviii] ), opera uma transmissão independente da validade ou não e da sorte do negócio causal [lix] .

Este sistema tem esta vantagem da segurança das transações, que lhe advém do princípio de abstração, mas apresenta também desvantagens, umas decorrentes da própria abstração e outras do princípio da separação. Ele é, por isso, contestado por uma parte dos autores na própria Alemanha, propondo, por exemplo, Larenz um sistema translativo essencialmente com as características do segundo sistema do primeiro grupo acima referido [lx] .

2.3 O ABGB austríaco (cf. §§ 423 ss, 431 e 1053), inserindo-se na tradição romanista e do jus commune (de acordo com a interpretação que deste é feita por uma parte da doutrina [lxi] ), é o modelo atual do quarto sistema, caracterizado pelo princípio da dissociação entre os negócios jurídicos obrigacionais, por um lado, e os negócios jurídicos dispositivos, por outro, mas sendo estes últimos negócios dependentes dos primeiros (não abstratos) e, segundo o entendimento hoje dominante, concluídos (em regra de forma implícita) quando da conclusão dos negócios causais ou subjacentes, não no momento da tradição da coisa. Neste sistema, a compra e venda é, pois, um contrato meramente obrigacional, servindo de causa ou justificação da transmissão operada por um distinto negócio translativo.

3. No direito português, assinalou-se que o contrato de compra e venda é um contrato translativo, operando directamente a transmissão de quaisquer bens ou direitos; e, por virtude do acolhimento legislativo do princípio da eficácia real deste tipo de contratos, também um contrato real quoad effectum. Como resulta da própria coexistência, no direito comparado, de vários sistemas translativos, o sistema adotado pelo legislador nacional tem vantagens e inconvenientes [lxii] , mas é aquele que corresponde à nossa tradição jurídica de mais de um século e ao sentir do comum dos cidadãos [lxiii] .

4. Termina-se este ponto com algumas observações finais. Primeira : a classificação dos sistemas translativos acabada de traçar respeita sobretudo à propriedade de coisas (materiais) e utiliza como critério fundamental de distinção a existência ou não de um princípio de separação entre negócios obrigacionais e negócios de disposição. Todavia, outras se podem fazer. A mais importante é a que distingue três sistemas: o consensualista (ou napoleónico), com princípio causalista e sem princípio da tradição; o do título e do modo (tradicional), com princípio da tradição e com princípio causalista, que agrupa o segundo e o quarto acima referidos; e o germânico, caracterizado pelos princípios da separação e da abstracção.

Segunda : não há, no entanto, sistemas puros. No sistema consensualista, que é também um sistema causalista, o princípio do mero contrato apenas se torna operativo relativamente a bens e direitos atuais e determinados (de que o alienante pode dispor) e conhece diversas limitações, mormente em matéria de direitos registados; havendo, inclusive, quem exclua a sua aplicação no domínio dos títulos de crédito circulantes e dos valores mobiliários, em grande medida porque a teorização destes é de origem germânica e não houve o trabalho de os inserir no âmbito dos sistemas causalistas para os quais as teorias foram importadas. Nos sistemas do título e do modo, com ou sem separação dos negócios causais e dos negócios de disposição, o princípio da tradição não tem aplicação universal e admite formas de «entrega» (traditio) puramente fictícias, simbólicas ou nominais; o mesmo sucedendo no sistema germânico. Foi, de resto, em boa medida essa circunstância que, historicamente, levou ao seu abandono, em favor do sistema consensualista. No direito espanhol, por exemplo (cfr., em geral, os arts. 609.2 e 1095 do CC), a par da entrega real da coisa, o CC admite expressamente a transferência da propriedade mediante contrato de compra e venda a que seja dada a forma da escritura pública (art. 1462), a chamada tradição simbólica de bens à guarda de outrem, mediante entrega das chaves do local em que estão guardadas ou armazenadas (art. 1463) e, inclusive, a chamada «tradição consensual», sem necessidade de entrega, quando a coisa já está em poder do comprador (art. 1463); cabendo ainda salientar que a delimitação não se considera fechada [lxiv] .

Terceira : a legitimidade do alienante é um pressuposto ou requisito geral da transmissão, com aquisição derivada do direito alienado, comum a todos os sistemas. Mas há ordenamentos consensualistas em que existe uma especial preocupação com a tutela do adquirente de boa fé, pelo menos em matéria de bens móveis, perante a eventual ilegitimidade do disponente (casos da França e da Itália), a par de outros em que isso não acontece (como é o caso de Portugal, ao menos como regra). E nos ordenamentos enquadráveis nos sistemas do título e do modo, aparentemente mais preocupados com a segurança da circulação dos bens, também se verifica divergência semelhante.

§ 3º

A compra e venda e figuras afins

1. Compra e venda (de bens futuros) e empreitada

Na distinção entre os dois tipos contratuais em epígrafe, a primeira questão que surge consiste em definir o âmbito de cada um e em saber se o contrato pelo qual alguém se encarrega de executar uma obra fornecendo a matéria necessária para a sua realização se reconduz a algum deles e a qual. No que se refere à compra e venda de bens futuros, defendeu um autor italiano [lxv] que aqueles casos em que a existência da coisa dependesse de uma atividade positiva do disponente – de produção (fabrico ou construção) da coisa – não integrariam este tipo contratual.

Contraposta a esta posição, está a tradição romanista [lxvi] , segundo a qual o contrato pelo qual alguém se obriga a produzir uma coisa com matéria por si fornecida deveria ser qualificado (segundo a conceção que prevaleceu) como uma compra e venda. No direito alemão, que se integra, em grande parte, nesta tradição, distinguem-se duas situações [lxvii] . Quando se trata de produzir uma coisa fungível, está em causa essencialmente o seu fornecimento e só em segundo plano aparece a obrigação de a produzir. O contrato é de compra e venda ( Lieferungskauf), com a única particularidade de o vendedor ser o produtor da coisa. Quando se trata de produzir coisa infungível, a sua produção segundo o acordado pelas partes é, em regra pelo menos, tão importante como o fornecimento. Neste caso, estamos perante um tipo contratual autónomo, reunindo elementos dos contratos de compra e venda e de empreitada (obra), denominado contrato de fornecimento de obra (Werklieferungsvertrag). Conceptualmente, é uma compra e venda mas, substancialmente, está mais próximo do contrato de empreitada do que do contrato de compra e venda. Em primeiro plano está, na verdade, já não a venda, mas a produção, a atividade do produtor dirigida à realização da obra.

No direito português, parece dever aceitar-se a opinião dominante em Itália [lxviii] , que considera, por um lado, compatível com a compra e venda de bens futuros a assunção, por parte do vendedor, da obrigação – expressa ou implícita – de produzir a coisa vendida; e, por outro lado, como de empreitada aquele contrato pelo qual alguém assume o encargo de realizar certa obra fornecendo também a matéria necessária a essa realização (cf. os arts. 1207, 1210.1 e 1212) [lxix] . E, como esta obra se materializa num objeto, a obrigação de produzir uma coisa pode existir, tanto no caso da compra e venda, como no da empreitada.

Duas tarefas, portanto, se impõem ao intérprete. A primeira consiste em distinguir, em abstrato os dois tipos contratuais em causa. É ainda uma questão de interpretação da lei. A segunda consiste em procurar critérios ou regras de qualificação dos contratos concretamente celebrados pelas partes.

1.1 De uma forma muito genérica, e como resulta do confronto dos arts. 874 e 1207, pode dizer-se que, na compra e venda de bens futuros, há a troca de um bem – considerado em si e por si – por uma soma pecuniária. Na empreitada há a «troca» de um serviço, de um resultado específico da atividade manual ou empresarial (porventura também intelectual) – uma obra -, por um preço. Naquele caso, paga-se um bem a produzir. Neste caso, paga-se uma obra a realizar, um serviço de produção. Essencial, naquele caso, é a própria coisa; sendo o contrato um meio destinado a operar uma alteração da sua condição jurídica (subjetiva), que se dá com a transferência da propriedade e da posse do transmitente para o transmissário. No segundo caso, essencial é uma determinada obra destinada a materializar-se numa coisa; e o contrato é um meio destinado a operar essa materialização executando-a, operando uma modificação de um estado de coisas pré-existente.

No primeiro caso, no centro do programa contratual relativo ao vendedor, está a transferência do direito e, eventualmente, da posse da coisa. Aquela é um efeito direto do contrato e dá-se, em princípio, quando se verificar o pressuposto geral da transmissão: a existência no património do vendedor do direito a transmitir. A segunda dá-se com a execução da obrigação de entrega. Neste programa contratual pode estar, implícita ou explícita, a obrigação de produzir a coisa, isto é, de fazer com que se verifique o pressuposto que permite ao contrato operar a transmissão e torna possível a execução da obrigação de entrega. Mas esta obrigação é meramente instrumental relativamente ao resultado contratual programado. O vendedor é responsável pela não obtenção deste resultado se tal ficou a dever-se a culpa sua. Mas, como a produção da coisa está fora do objeto do contrato, a obra é do vendedor, o comprador não tem uma ação autónoma destinada a coagi-lo ao cumprimento da obrigação de fabricar ou construir a coisa, nem há um nexo de correspetividade entre esta obrigação e a de pagar o preço. E também não tem o direito de interferir no processo produtivo da coisa, fiscalizando-o, nem de alterar a encomenda. Em contrapartida, uma alteração dos custos de produção também não o afeta.

No segundo caso, no centro do programa contratual relativo ao empreiteiro, está a realização da obra «do comitente». Aquele deve proporcionar a este determinado resultado da atividade produtiva. É este o resultado contratual programado. E dá-se com o cumprimento da obrigação que constitui o efeito principal do contrato a cargo daquele. A economia do contrato gira toda em torno da obra a realizar. Assim, a obrigação de a executar e a obrigação de pagar o preço são interdependentes. Como a obra é do dono e não do empreiteiro (mesmo fornecendo ele a matéria), aquele tem o direito, em certos termos, de modificar o seu plano (art. 1216) e de fiscalizar o processo da sua execução (ou concretização) (art. 1209). É certo ainda que, sendo a obra do dono e surgindo a sua materialização como um bem no património do empreiteiro (cf. art. 1212.1) – porque não intervém no caso a regra de que a construção segue o imóvel em que é realizada (art. 1212.2) -, o resultado contratual só se completa com a transferência do direito e, eventualmente, da posse sobre a coisa em que a obra se corporizou. Só com esta o empreiteiro proporciona efetivamente ao dono da obra assim corporizada o seu gozo e domínio sobre ela. Mas também neste ponto se revela estar a obra no centro do contrato. Aquela transferência do direito é um corolário do cumprimento da obrigação do empreiteiro, mas só se dá tendo havido boa execução, confirmada, em princípio, pela aceitação (cf. os art. 1212.1 e 1218 s).

Desta caracterização dos contratos resulta claramente e, em síntese, que eles têm objetos diferentes. A compra e venda destina-se a operar a troca de um bem a produzir por um preço, através da transferência do direito (e eventualmente da posse da coisa). É um contrato essencialmente translativo. A empreitada destina-se a «trocar» um serviço de produção por um preço, através do cumprimento da obrigação de executar uma obra que corresponde a um interesse específico do dono desta previamente definido e concretizado num plano acordado entre as partes. Trata-se de um contrato essencialmente obrigacional. A transferência do direito é um corolário da obrigação assumida pelo empreiteiro de proporcionar ao comitente o resultado da sua atividade.

1.2 Quais são os critérios que permitam determinar, em concreto, se estamos perante um contrato de compra e venda de coisa futura ou de um contrato de empreitada? Noutros termos: quais são os critérios de qualificação do contrato [lxx] ?

Há dois casos que não levantam dificuldades especiais. Se a coisa a produzir é fungível, também o é a atividade produtiva. O processo produtivo está fora do programa contratual. O contrato é de compra e venda de coisa futura. Esta situação ocorre, no comum dos casos, quando a coisa corresponde à produção normal, em série, do vendedor. E, se se trata de construir um imóvel em terreno do comitente da construção, estamos perante um contrato de empreitada.

Nos restantes casos, haverá, antes de tudo, que ver se as partes tiveram essencialmente em consideração (como objeto do negócio) um bem em si ou um bem enquanto resultado da atividade específica de uma delas, procurando determinar se o que prevalece é a elaboração ou o fornecimento da matéria. Haverá empreitada se o fornecimento da matéria for apenas um meio para realizar a obra. Haverá compra e venda se o trabalho é apenas um meio para transformar a matéria na coisa pretendida. Mas o valor económico relativo do trabalho e dos materiais é um mero índice e não um critério determinante daquela prevalência, ou do caráter meramente acessório ou principal da matéria.

Outros fatores a considerar serão, por um lado, a eventual prova de que a coisa, embora específica, não foi construída por ordem de quem paga o preço, mas já fora decidida a sua produção antes e independentemente da encomenda de quem paga. Por outro lado, o desinteresse que o pagador tenha relevado pelo processo produtivo.

2. Compra e venda e contrato estimatório (ou «venda à consignação»)

Nem sempre o risco de revenda de bens (ao público) é suportável para aqueles que desempenham a atividade de intermediários entre a oferta e a procura desses bens, o que pode dever-se a vários fatores: imprevisibilidade das preferências do público, valor unitário dos bens excessivamente elevado em relação ao volume de negócios dos retalhistas, etc. Mas é do interesse, tanto dos produtores, como daqueles que se dedicam à comercialização dos produtos, que estes detenham materialmente a coisa – para poder ser vista pelo público e entregue imediatamente se este decidir adquiri-la – e que possam dispor dela.

Aos comerciantes pode interessar ainda terem um poder de disposição exclusivo e irrevogável durante um certo período de tempo e terem autonomia negocial, com os custos e benefícios dos negócios de revenda que façam. Em contrapartida, aos produtores interessa a transferência imediata do risco de perecimento e deterioração da coisa para o detentor desta.

Para realizar estes objetivos, foi concebido um instrumento jurídico já conhecido dos romanos e expressamente regulado no Código civil italiano (arts. 1556 ss), denominado contrato estimatório, entre nós também conhecido por «venda à consignação». É de salientar que os negócios que se realizam, na prática, sob este nome não correspondem todos exatamente ao tipo contratual regulado pelo direito italiano. Na impossibilidade, porém, de desenvolver aqui o assunto, tomar-se-á este tipo como modelo para um confronto com a compra e venda.

O contrato estimatório pode definir-se como aquele pelo qual um indivíduo (tradens) entrega a outro (accipiens) coisas móveis determinadas e lhe confere um poder de disposição irrevogável sobre elas, assumindo o segundo a obrigação de pagar, dentro de certo prazo, o preço estimado das coisas – mas podendo desvincular-se desta obrigação restituindo-as dentro daquele prazo se elas estiverem em condições de ser restituídas, isto é, se existirem ainda e não estiverem danificadas (cf. os arts. 1556 s do CCit). Por efeito do contrato, otradens perde o poder de disposição das coisas em favor do accipiens, mas conserva a propriedade até à sua alienação por este ou até ao pagamento do preço (cf. o art. 1558 do CC it). Essencial é também aquisição da disponibilidade material da coisa pelo accipiens.

Decorrido o prazo contratualmente estipulado, vencida a obrigação de pagar e não tendo o accipiens alienado a coisa, o tradens continua proprietário até ao pagamento do preço. Em caso de alienação da coisa pelo accipiens, é discutível se a transferência da propriedade se dá diretamente entre otradens e o terceiro adquirente ou se passa pelo accipiens. Parece, no entanto, salvo maior reflexão sobre o assunto, que a alienação pelo accipiens é uma alienação autorizada de coisa alheia, perdendo o tradens a propriedade diretamente para o terceiro adquirente.

Quanto à natureza jurídica do contrato, pode afirmar-se que se trata de um contrato real quoad constitutionem e de habilitação ou legitimação irrevogável e a título oneroso do accipiens, susceptível de se converter num negócio oneroso de alienação entre o tradens e o accipiens se este não optar por, dentro do prazo contratual, restituir a coisa. Embora um autor italiano [lxxi] tenha defendido tratar-se de uma compra e venda translativa, real quoad constitutionem, à qual se aplicaria, portanto, diretamente, o regime da compra e venda, a restante doutrina é no sentido de ver neste negócio um tipo contratual autónomo, quer devido ao seu caráter real quoad constitutionem [lxxii] , quer porque o programa contratual não é normalmente destinado a operar uma transferência da propriedade do tradens para o accipiens, mas a assegurar a este a disponibilidade da coisa, consentindo-lhe a sua venda a terceiros [lxxiii] . O contrato não se destina, tipicamente, a operar uma troca da coisa por um preço entre o tradens e o accipiens, mas a tornar possível a este operar uma troca com terceiros.

3. Compra e venda (de coisa genérica) e contrato de fornecimento

O contrato de fornecimento de coisas é aquele pelo qual se estabelece uma relação de troca continuada ou periódica de bens de certo género por um preço. Considerado por uma parte da doutrina simplesmente como uma modalidade da compra e venda de coisas genéricas, foi reconhecido pelo Código civil italiano como um tipo contratual autónomo. Poderíamos defini-lo, seguindo de muito perto a noção do art. 1559 deste Código e servindo-nos das palavras do Prof. Galvão Teles, como o «acordo pelo qual uma das partes se obriga a prestar contínua ou periodicamente coisas de certo género, mediante o correlativo preço» [lxxiv] .

Enquanto a compra e venda tem como causa a troca de uma bem por um preço, e esgota a sua eficácia com a transferência da propriedade e da posse desse bem e da soma correspetiva, ainda que a entrega do bem e o pagamento desta soma possam ser repartidos, o contrato de fornecimento, enquanto meio para a satisfação de necessidades que se repetem, destina-se a operar uma troca continuada ou periódica de bens, renovando contínua ou periodicamente a sua eficácia (obrigacional e translativa). Naquele caso, as atribuições patrimoniais do vendedor e do comprador são únicas, ainda que submetidas a um regime particular de execução. No contrato de fornecimento, decorrem do contrato a obrigação contínua ou obrigações periódicas de entrega de bens do género convencionado a que correspondem outras tantas obrigações de pagar, dividindo idealmente, para o efeito, a prestação contínua em prestações que se efetuam durante um certo período de tempo. Há uma série de atribuições patrimoniais autónomas a cargo de cada uma das partes.

O caráter duradouro do contrato imprime-lhe uma fisionomia específica que não permite reconduzi-lo a uma mera compra e venda especial [lxxv] .

4. Compra e venda e dação em cumprimento

A dação em cumprimento (ou datio in solutum), regulada nos arts. 837 e seguintes, ao assumir a forma de um negócio jurídico oneroso translativo de um direito, tem certas afinidades com a compra e venda e são-lhe aplicáveis as regras dos arts. 874 e seguintes compatíveis com a sua natureza (art. 939). Distingue-se, porém, desta desde logo por ser diversa a função dos dois instintos. Na compra e venda, há uma troca de um bem por um preço. A dação tem uma função solutória. A transferência do direito destina-se a satisfazer um crédito e, por conseguinte, a extinguir a obrigação correspondente, em substituição da prestação devida. Não há, portanto, a transferência do direito contra o pagamento de um preço. E da função solutória do instituto decorre uma especificidade do seu regime (cf. o art. 838), dependendo a dação da existência e natureza da obrigação extinta, nomeadamente, do seu caráter oneroso ou gratuito [lxxvi] .

A dação pode ainda - relativamente a um contrato de compra e venda existente, se se destina a extinguir a obrigação de pagar o preço - constituir um modo de execução da venda, não alterando a natureza deste contrato [lxxvii] .

5. Compra e venda e contrato de locação financeira ( leasing )

O contrato de «leasing» financeiro é definido pelo art. 1º do DL 171/79, de 6 de junho, como «o contrato pelo qual uma das partes se obriga, contra retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de uma coisa, adquirida ou construída por indicação desta e que a mesma pode comprar, total ou parcialmente, num prazo convencionado, mediante o pagamento de um preço determinado ou determinável, nos termos do próprio contrato». O montante global dos alugueres ou rendas deve permitir, no termo do prazo contratual, a amortização do bem locado e a remuneração do interesse financeiro do locador (art. 10.1 daquele DL); correspondendo o preço da (eventual) aquisição do bem a um valor meramente residual (art. 10.3).

A lei expressamente configura o contrato como um contrato obrigacional, com opção de compra, o que o distingue claramente da compra e venda. E, no que se refere ao contrato resultante do exercício pelo locatário da sua opção de compra, ele também não representa uma troca autónoma de equivalentes. Há a transferência de um bem por um preço mas este não corresponde (necessariamente) ao valor real do bem; o valor é calculado previamente tendo em conta que o bem já se encontra «essencialmente pago» pelas rendas ou alugueres.

São, porém, indiscutíveis algumas afinidades com a compra e venda a prestações com reserva de propriedade. Na verdade, se a propriedade do bem é formalmente do locador, o locatário tem um direito de o utilizar a seu custo e risco. A propriedade tem essencialmente uma função de garantia. O locador não se obriga a proporcionar ao locatário o gozo do bem. As rendas ou alugueres não são o correspetivo do gozo do bem, mas o reembolso substancial do financiamento «in natura» recebido. A posição material do locatário é, portanto, em certo sentido, análoga à do comprador na compra e venda a prestações com reserva de propriedade até ao pagamento integral do preço. A operação é, funcionalmente, de financiamento e este elemento também está presente na compra e venda a prestações.

Apesar destas semelhanças, os dois institutos distinguem-se claramente. A operação de «leasing» é uma operação de financiamento em espécie, tendo a conservação da propriedade uma função de garantia da recuperação total do capital investido nessa operação. Ela não possui uma natureza translativa. No termo do prazo contratual, o locatário tem um simples direito de aquisição do bem locado por determinada soma. Na compra e venda, a aquisição da propriedade é um efeito do contrato e dá-se com o pagamento da última prestação do preço. As rendas ou alugueres destinam-se a remunerar o valor económico (essencialmente um valor de uso) que o bem vai perdendo com a respectiva utilização e o decurso do tempo (por obsolescência), o que é importante, nomeadamente, em caso de resolução do contrato.

Em suma, o «leasing» é um tipo negocial autónomo, podendo definir-se, em alternativa à noção fornecida pela lei, como um «contrato tendo por objeto a concessão a médio prazo do gozo de um bem de rápida obsolescência com risco a cargo do concessionário e mediante uma remuneração da sua depreciação económica» [lxxviii] . Não é um contrato destinado a transmitir direitos, com o fim de realizar uma troca de um bem por um preço, como é característico da compra e venda, mas «um modo de financiamento in natura».

6. Compra e venda (de créditos) e contrato de «factoring »

Na respectiva configuração legal, o «factoring» é, fundamentalmente, um contrato de aquisição onerosa e continuada dos créditos a curto prazo (cf. o art. 1º do DL 56/86, de 18 de março) que vão surgindo no decurso da atividade de uma empresa (comercial ou industrial), feita por uma empresa parabancária, o factor, com ou sem pagamento antecipado do valor desses créditos (art. 4º do DL citado) e podendo ser firme essa aquisição.

Trata-se, portanto, de um contrato duradouro de aquisição, não de créditos singularmente considerados, mas de todos os créditos resultantes do exercício da atividade de uma empresa (salvo estipulação contratual mais restritiva). A operação pode desempenhar, cumulativamente, uma função de cobertura de risco dos créditos emergentes da atividade da empresa e de financiamento. Estas características dão a esta operação uma configuração própria distinguindo-a da simples compra de créditos. A sua função não se esgota numa simples troca isolada de crédito(s) por um preço [lxxix] . Além disso, diferentemente do que sucede nalguns outros países, em que o factor assume tipicamente o risco da sua cobrança, na prática nacional conhecida, ele surge correntemente com cláusulas «salvo boa cobrança», o que reforça a sua índole financeira.

7. Compra e venda (de frutos futuros) e locação (da coisa frutífera)

A compra e venda, destinada a operar a transferência de um direito e, eventualmente, da posse da coisa objeto desse direito mediante um preço, cumpre uma função de troca do próprio bem por esse preço. É um contrato, tipicamente, obrigatório e translativo. A locação cumpre uma função diferente: a de pôr uma das partes (o locatário) em condições de poder usar e fruir de uma coisa da outra outra parte (locador) mediante uma contrapartida por esse uso e fruição. E a essa função correspondem, naturalmente, um objeto e uma natureza do contrato também diferentes. Este tem natureza meramente obrigacional, obrigando-se o locador a proporcionar ao locatário o gozo da coisa em troca do pagamento de uma renda ou aluguer (arts. 1022, 1031, 1038).

Embora os tipos contratuais sejam bem distintos, suscitam-se, nalguns casos, dificuldades práticas de qualificação dos contratos concretamente celebrados pelas partes. Assim, pode ser difícil saber se estas celebram realmente um contrato de compra e venda de frutos da coisa com utilização temporária desta para a perceção daqueles ou um contrato de locação dessa coisa frutífera. Importa, por isso, procurar critérios de diferenciação destes dois tipos contratuais. Como ideia geral, pode dizer-se que, se o elemento decisivo e essencial é a passagem da propriedade de um produto da coisa, pelo menos genericamente determinado, estamos perante uma compra e venda. Se o elemento decisivo e essencial é a concessão do gozo de uma coisa frutífera, gozo esse que tem uma manifestação típica no seu cultivo, tratar-se-á de uma locação. Na determinação do efectivo sentido do contrato, apontam-se certos índices, como a duração da relação, as modalidades de pagamento da retribuição, a atividade reservada a cada uma das partes, etc. [lxxx]



[i] O presente texto, concluído em finais de outubro de 1986, corresponde ao relatório apresentado na disciplina de Direito Civil do primeiro Mestrado em Ciências Jurídico-Comerciais da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, sob o título «A noção e natureza da compra e venda civil: análise do direito positivo, com referências histórico-comparativas», com pequenas alterações introduzidas no início de 1987, com vista à sua publicação. No entanto, o trabalho extraviou-se, quando do envio para a editora, pelo que ficou inédito. Tendo-se encontrado recentemente uma cópia do mesmo, optou-se pela presente publicação sem modificações, apesar dos estudos entretanto publicados sobre o tema, em que se salientam: de PEDRO DE ALBUQUERQUE,Direito das Obrigações. Contratos em especial, vol I - Compra e venda, Coimbra (Almedina) 2008, de NUNO PINTO DE OLIVEIRA, Contrato de compra e venda, Coimbra (Almedina) 2007, de CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos, II - Conteúdo. Contratos de troca, Coimbra (Almedina) 2007, e, ainda, de ASSUNÇÃO CRISTAS/MARIANA FRANÇA GOUVEIA, «Transmissão da Propriedade de Coisas Móveis e Contrato de Compra e Venda» , in ASSUNÇÃO CRISTAS/MARIANA FRANÇA GOUVEIA/VÍTOR NEVES, Transmissão da Propriedade e Contrato, Coimbra (Almedina), 2001, p. 15ss, e VIEIRA CURA, «Compra e venda e transferência da propriedade no direito romano clássico e justinianeu (a raiz do "sistema do título e do modo")», in BFD, volume comemorativo do 75º tomo, Coimbra 2003, p. 69ss, bem como, no plano jus-comparatístico, os National Reports on the Transfer of Movables in Europe, editados em vários volumes por W. FABER e B. LURGER. Alterou-se o título, porque o interesse e atualidade que o trabalho mantém respeita sobretudo à compra e venda como contrato translativo. Há, no entanto, matérias que, sendo objecto de tratamento por outros colegas do Mestrado, ficaram de fora, salientando-se a relativa à compra e venda de bens alheios. A disciplina a que o relatório se reporta foi lecionada pelo Prof. Doutor INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, que aqui se evoca e a quem se presta merecida homenagem.

[ii] Os artigos citados sem referência ao código ou lei a que pertencem são do código civil vigente.

[iii] Cfr. KASER, Das römiche Privatrecht, I, Munique 1955, p. 201.

[iv] É uma questão controversa a de saber se a conventio (ou pactum) era já reconhecida como verdadeiro instituto jurídico ou era uma simples categoria lógica, contraposta ao contrato, embora constituindo o embrião do contrato moderno. Cfr. sobre o assunto: ASTUTI, «Contratto (dirittointermedio)», in Enciclopedia del Diritto IX, p. 759, 761 ss; GROSSO, «Contratto (diritto romano)», in Enciclopedia del Diritto IX, p. 753 s, OSTI, «Contratto», in Nov. Dig. It. IV, p. 464, 465 ss; bem como ALMEIDA COSTA, «Contrato», in Polis, I, col. 1222, 1225 s.

[v] Acerca do regime e da natureza jurídica da venda executiva, cfr., designadamente: ALBERTO DOS REIS, «Da venda do processo de execução», in ROA 1 (1942), nº 4, p. 410 ss (máxime, 443 ss); ANSELMO DE CASTRO, Acção Executiva singular, comum e especial, Coimbra 1977, p. 198 ss (máxime, 255 ss), e literatura citada nas páginas 256 e 258, nota 2; CERINO CANOVA, «Vendita forzata ed effetto traslativo», in Riv. dir. civ. 1980/ I, p. 137 ss. Cf., ainda, o parecer da PGR nº 110/84, de 25/7/1985, in BMJ 352 (1986), p. 87, 93 s, e o Acórdão do STJ de 17.12.1977, in BMJ 271 (1977), p. 166-171.

[vi] Cf., por todos, I. GALVÃO TELES, Teoria geral do fenómeno jurídico sucessório (Noções fundamentais) , Lisboa 1944, p. 15 s, 20 ss, Algumas considerações sobre o conceito jurídico de sucessão, Lisboa 1965, separata da RFDUL XIX (1965), p. 9ss, 32ss, 43ss, 47s, e, ainda, Direito das Sucessões, Lisboa 1973, p. 23 ss. Cf. também MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra 1985 (3ª ed.), p. 365s.

[vii] Cf. GALVÃO TELES, Teoria geral do fenómeno jurídico sucessório (1944), cit. na nota 6, p. 25 s [trata-se de uma sucessão imperfeita, em virtude da inoponibilidade de excepções, num duplo sentido: da não possibilidade de invocar perante o portador atual relações estranhas ao título em que ele não interveio (art. 17 da LULL) e da inadmissibilidade de precedentes titulares invocarem face a ele eventuais vícios da aquisição, salvo prova da sua má fé (art. 16 da LULL)].

[viii] Cf. GALVÃO TELES, Teoria geral do fenómeno jurídico sucessório (1944), cit. na nota 6, p. 20. Contra, a doutrina dominante em Itália (cf. BIANCA, cit. na nota seguinte, p. 19).

[ix] Sobre o primeiro ponto, cf. BIANCA, La vendita e la permuta, Turim 1972, p. 19 (o negócio tem uma causa autónoma de garantia). Sobre o segundo, cf. RUBINO, La compravendita, Milão 1971, p. 77 s.

[x] Para maiores desenvolvimentos, vid. GALVÃO TELES, «Venda obrigatória e venda real», in RFDUL VII (1950), p. 76 ss; e BURDESE, «Vendita (Diritto romano)», in Nov. Dig, It. XX, p. 594, 597 ss.

[xi] Cf., por exemplo, LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts II, Munique 1981(12ª edição), p. 10 ss, 21 ss; ENNECCERUS/LEHMANN, Derecho de Obligaciones (trad.), Barcelona 1966, 1ª parte, p. 19 ss, 45 ss.

[xii] Cf. ARCHI , Il trasferimento della proprietà nella compravendita romana , Pádua 1934, p. 81 ss, 90 ss, e KASER, Das römische Privatrecht (1955), cit na nota 3, p. 40 e 115 ss (para a mancipatio).

[xiii] Cf. BURDESE, «Vendita (Diritto romano)», cit. na nota 9, p. 594, 597; ARCHI, cit. na nota anterior, p. 163 ss, 167ss; KASER, Das römische Privatrecht, II (1959), cit. na nota 3, p. 281 s.

[xiv] Cf. COELHO DA ROCHA, Instituições de direito civil portuguez, Lisboa 1907 (7ª ed.), II, p. 754. No mesmo sentido, cfr. GALVÃO TELES, «Venda obrigatória e venda real» (1950), cit. na nota 10, p. 84s.

[xv] Cf. GALVÃO TELES, «Contratos Civis», in BMJ 83 (1959), p. 114, 117 ss, «Venda obrigatória e venda real», cit na nota 10, p. 85 s; VAZ SERRA, «Efeitos dos contratos», in BMJ 74 (1958), p. 333, 349 ss; RAÚL VENTURA, «O contrato de compra e venda no Código civil», in ROA 43 (1983), p. 588 ss, 593 ss. Cf., ainda, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código civil anotado (CCA), II, Coimbra 1986, anotações 2 e 4 ao art. 874 (p. 166s), anotação 1 ao art. 879 (p. 173) e, ainda, CCA I, 1982, anotações ao art. 408 (p. 356), bem como ALMEIDA COSTA, «Contrato», in Polis, cit na nota 4., col. 1238 s, «Contrato civil», ibidem, p. 1256, 1258 s, e Direito das Obrigações, Coimbra 1984 (4ª ed.), p. 192ss.

[xvi] Cf. VAZ SERRA, cit. na nota anterior, p. 349 ss, 354 ss.

[xvii] Cf. BMJ 74 (1958), p. 367.

[xviii] Cf. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, CCA, cit na nota 15, anotação 1 ao art. 408. Mas cf. RAÚL VENTURA, estudo cit. na nota 15, p. 596 ss; e supra, no texto, nºs 2.4 e 2.4.1.

[xix] Cf. DIAS FERREIRA, Código Civil Portuguez anotado, II, Lisboa 1871, p. 279 s, e GUILHERME MOREIRA,Instituições do direito civil portuguez, II - Das obrigações, Coimbra 1925, p. 197 ss.

[xx] Cf. MOTA PINTO, Cessão da posição contratual, Coimbra 1970, p. 474 ss. Cf também ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, II, Coimbra 1974, p. 538. É também opinião maioritária em Itália (cf., por exemplo, ZACCARIA, «Cessione del contrato e garanzia della sua validità», in Riv. dir. civ. 1985, p. 241, 248 s, notas 20 e 22). Sobre a questão na jurisprudência portuguesa, cf. os Acórdãos do STJ de 3.03.1977, RLJ 111 (1978-79), p. 35 ss (com anotação de Vaz Serra, p. 39ss), e de 12.07.1979, BMJ 289 (1979), p. 286 ss, 290 s; e o texto infra.

[xxi] Cf. MOTA PINTO, Cessão (1970), cit na nota anterior, p. 78 ss.

[xxii] Vid ., por exemplo, MANARA, Trattato teorico-pratico delle società e delle associazioni commerciali , Turim 1902, Parte geral, vol. 1, p. 508 ss. Cf. MARGHIERI, Il Codice di commercio commentato (de Bolaffio/Vivante), vol III, Delle società e delle associazioni commerciali, Verona 1904, anotações ao art. 79, p. 45 ss.

[xxiii] Para o direito anterior, vid. RAÚL VENTURA, Cessão de quotas, Lisboa 1967, p. 59 s.

[xxiv] Cf. RIPERT/DURAND/ROBLOT, Traité élémentaitre de droit commercial, I, Paris 1968 (6ª ed.), p.878.

[xxv] Para a doutrina francesa (especialmente a relativa aos valores mobiliários); vid., nomeadamente, ESCARRA/RAULT,Traité théorique et pratique de droit comercial,Les sociétés commerciales, III ( Sociétés par actions), Paris 1955, nº 1248 (p. 325 s); HÉMARD/TÉRRÉ/MABILAT, Sociétés commerciales , III, Paris 1978, nº 18 (p. 12), nº 21 (p.13 s); HOUPIN/BOSVIEUX, Traité général des sociétés, II, Paris 1929, nº 394 (p. 458 s), e a doutrina citada na nota 3 da p. 458; LAMY SOCIÉTÉS..., p. 801 ss, em especial 802; PIC, Des sociétés commerciales , Paris 1930 (?), nº 740 (p. 65 s); e a Cassation, Sentença de 7/5/1981 (comentada por GILBERTEAU), in Revue des sociétés/Journal des sociétés 100 (1982), p. 92 ss.

Para a doutrina italiana, vid., por exemplo, BIGIAVI, «I1 trasferimento dei titloi di credito», in Riv. trim. dir. proc. civile 1950, p. 1 ss; COTTINO, «Società per azioni», in Nov. Dig. It. XVII, p. 570 ss, 604; DE FERRA, La circolazione delle partecipazioni azionarie, Milão 1964, p. 77 ss; GALGANO, Diritto privato, Pádua 1981, p. 393 s. Para a posição da jurisprudência, cf., em Cottino, p. 604, as notas 6 e 7 e, em Galgano, Trattato di Diritto commerciale e di Diritto publico dell’economia , VII, La società per azioni, a nota 12 da p. 138.

Para a doutrina portuguesa (com referência aos valores mobiliários), vid. VASCO XAVIER, «Acção», in Polis, I, col. 62 ss; VAZ SERRA, «Acções nominativas e ao portador», in BMJ 176 (1968), p. 67 ss, 78 s, e BMJ 177 (1968), p. 5 ss, 27 s; BRITO CORREIA, Direito Comercial, II, Lisboa (AAFDL) 1983/84, p. 176 (só acções nominativas); CUNHA GONÇALVES, Comentáro ao código comercial, Lisboa 1914, vol III, p. 64 (títulos nominativos; mas cf. p. 60 e 62 para os restantes títulos).

[xxvi] Cf. BIANCA, «Alienazione dei titoli di credito ed efficacia nei confronti dei creditori dell’alienante», in Studi in onore di A. Asquini, I, Pádua 1965, p. 69 ss.

[xxvii] Cf., nomeadamente, STUMPF, Der Know-how Vertrag, Heidelberg 1977, p. 20 ss; KRASSER, «Der Schutz des know-how nach deutchem Recht», in GRUR 1970, p. 587 ss, e «Grundlagen des zivilrechtlichen Schutzes von Geschäfts – und Betriebsgeheimnissen sowie von know-how», in GRUR 1977, p. 183 ss. Cfr. também GOMEZ SEGADE, El secreto industrial (Know-how). Concepto y proteccion, Madrid 1974.

[xxviii] Ver, por exemplo, Manual dos contratos em geral, Lisboa 1962, p. 364 s, ou «Cessão do Contrato», in RFDUL VI (1949), p. 148, 164 s. Sobre a questão na jurisprudência, cf. os Acórdãos do STJ de 12.12.1961, BMJ 112 (1962), p. 505, 509, e de 12.07.1979, BMJ 289 (1979), p. 286, 291.

[xxix] Cf. MOTA PINTO, Cessão da posição contratual (1970), cit. na nota 20, p. 437 ss. Mas cf., em sentido diferente, PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, CCA I, cit., anotação 3 ao art. 424 (p. 377).

[xxx] Cf. os citados Acórdãos do STJ de 12.12.1961, BMJ 112 (1962), p. 505, 509, e de 12.07.1979, BMJ 289 (1979), p. 286 ss, e ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral (1974), cit na nota 20, p. 356.

[xxxi] Cf., nomeadamente, ASCARELLI, «Sui limiti statutari alla circolazione delle partecipazioni azionarie», in Saggi di diritto commerciale, Milão 1955, p. 359 ss, 374 ss; SPATAZZA, Le società per azioni, I,Turim 1972, p. 354; DE MARTINI, «Effetti dei limiti legali e statutari alla circolazione delle partecipazioni azionarie», in Riv. Dir. comm. 1954, II, p. 422 ss, 430ss; DE GREGORIO, Corso di diritto commerciale (Imprenditori – società), Milão 1973, p. 260; DE FERRA, La circolazione delle partecipazioni azionarie, Milão 1964, p. 3 ss.

[xxxii] Vid ., nomeadamente, G. FERRI, Manuale di diritto commerciale, Turim 1976, p. 302 ss.

[xxxiii] Vid., nomeadamente, K. LEHMANN, Die geschiechtliche Entwicklung des Aktienrechts bis zum Code de commerce , Frankfurt 1968 (reimpressão), p. 66 ss.

[xxxiv] No curso de Mestrado em que este relatório foi feito, o estudo do estabelecimento como objecto da compra e venda esteve a cargo de outros participantes. Ele está por isso ausente deste trabalho, o mesmo acontecendo com as universalidades em geral e com os escritórios, consultórios e ateliers de profissionais livres. As considerações que aqui se fazem não são mais que um esboço de apresentação do tema.

[xxxv] Cf., neste sentido, por ex., GALVÃO TELES, Das Universalidades (Estudo de direito privado), Lisboa 1940.

[xxxvi] Vid. sobre o tema, nomeadamente, FERRARA JUNIOR, Teoria jurídica de la hacienda mercantil (trad.), Madrid 1950; GIERKE (J.), Handelsrecht und Schiffahrtsrecht, 8ª ed., Berlim 1958, p. 71 ss (parágrafo 15); e, na doutrina portuguesa, ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura do estabelecimento comercial, I, Atlântida 1967, passim, bem como o comentário ao acórdão do STJ de 24 de Junho de 1975, in RLJ 110, p. 102 ss, e, ainda, «Alguns aspectos da negociação do estabelecimento», in RLJ 114, p. 360 ss, RLJ 115, p. 9 ss; FERRER CORREIA, «Sobre a projectada reforma da legislação comercial portuguesa», in ROA 44 (1984), p. 5, 20 ss, e, de entre as obras anteriores, cf. Lições de direito comercial, I, Coimbra 1973, p. 201 ss; VASCO XAVIER, «Estabelecimento comercial», in Polis 2, cols. 1121 ss; e, ainda, PINTO COELHO, «O trespasse do estabelecimento e a transmissão das letras», in BFDUC, suplemento 15 (Coimbra 1961), p. 1, 19 ss; AZEVEDO E SILVA, «A propriedade dos estabelecimentos comerciais», inEstudos de direito comercial, Lisboa 1906, p. 25 ss ( Gaz. Ass. Adv. Lisboa, ano IV (1894-95) p. 294 ss, 315 ss, 326 ss); e BARBOSA DE MAGALHÃES, Do estabelecimento comercial, (2ª ed) Ática 1964.

Cf., entre outros, FERNANDO OLAVO, «A empresa e o estabelecimento comercial», in Ciência e Técnica Fiscal X (1963), p. 9, 15 ss; MÁRIO DE FIGUEIREDO, «Natureza jurídica do estabelecimento comercial», in BFDUC VIII (1923-25), Coimbra 1926, p. 48 ss; e, ainda, RUI DE ALARCÃO, «Sobre a transferência da posição do arrendatário no caso de trespasse», in BFDUC XLVII (1971), p. 21-54 ; STJ, Ac. 1.3.1968, in RLJ 102 (1969-70), p. 69 ss, com. anot. de ANTUNES VARELA (p. 71 ss); STJ, Ac. de 27.3.1962, in BMJ 115, p. 548 ss; STJ, Ac. de 24.6.1975, in BMJ 248 (1975), p. 439 ss; Parecer da PGR nº 110/84, de 25.7.1985, in BMJ 352 (1986), p. 87 ss; e, na doutrina estrangeira, CASANOVA, Impresa e azienda, Turim 1974 (2ª ed.) p. 323 ss, 729 ss; ROTONDI, «O aviamento na teoria geral do estabelecimento comercial», in Jorn. Foro 20 (1956), p. 97 ss, e Jorn. Foro 21 (1957), p. 149 ss.

[xxxvii] Cf., por exemplo, REIMER, La concurrence déloyale en Allemagne (trad.), Economica 1976, p. 265 ss; NORDMANN, Wettbewerbsrecht., 1981, p. 141 ss; BAUMBACH/HEFERMEHL, Wettbewerbsrecht, p. 61 ss, 213 ss, 680 ss.

[xxxviii] O estudo deste ponto, no que se refere à venda de bens futuros, tem apenas por objecto a emptio rei speratae.

[xxxix] Cf. por exemplo, BIANCA, «Vendita (Diritto vigente)», in Nov. Dig. It., nº 25, p. 611 s, nºs 30 ss, p. 613 s; e, ainda, GRECO/COTTINO, Della vendita, Bolonha 1962, p. 7, 56 ss. Mas veja-se, para o significado de «venda obrigatória», RUBINO, La compravendita, Milão 1971, p. 310; GRECO/COTTINO, cit., p. 6 ss; e RAÚL VENTURA, «O contrato de compra e venda do Código civil», in ROA 43 (1983), cit. na nota 15, p. 590 ss; cf. também o art. 1476 do CCit.

[xl] Cf. RUBINO, Compravendita, cit. na nota anterior, nº 66, p. 178 s.

[xli] Cf. RAÚL VENTURA, estudo cit. na nota 39, p. 283 ss, 287.

[xlii] Cf. GALVÃO TELES, «Contratos civis», in BMJ 83 (1959), p. 114 ss, 122 ss.

[xliii] Cf. os arts. 833 ss e PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, CCA II, cit. na nota 15, anotação 6 ao art. 879 (p. 174).

[xliv] Cfr. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Coimbra (Almedina) 1974 (reimpressão), p. 57.

[xlv] Embora, em bom rigor, os conceitos de contrato bilateral e de contrato sinalagmático devam distinguir-se, não se afigura essencial essa distinção para os fins deste trabalho.

[xlvi] Mas cf. MANUEL DE ANDRADE, ob. cit. na antepenúltima nota, p. 54 ss.

[xlvii] Cf. BMJ 74 (1958), p. 367, e «supra», § 1º, A), 2.4.

[xlviii] É certo que o legislador português não seguiu esta via. Mas não é menos certo que o rigor conceitual levou-o a deixar uma lacuna no sistema jurídico, já que o art. 408 não deve, manifestamente, aplicar-se apenas à transferência e constituição de direitos reais. Cf. também os arts 577 e seguintes.

[xlix] Vid ., em geral, sobre este título, SACCO, «Le transfert de la propriété des choses mobilières déterminées par acte entre vifs en droit comparé», in Riv. dir. civ. 25 (1979) p. 442, 451 ss. Cf., ainda, LARENZ, Schuldrecht (1981), cit. na nota 11, p. 15 ss, CASTAN TOBEÑAS / GARCIA CANTERO e DIEZ-PICAZO / GULLON, citados adiante, bem como ABALADEJO GARCIA, «La obligación de transmitir la propiedad en la compraventa», inRev. Leg. Jur. 1947, I, p. 409 ss, e ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações (1984)), cit. na nota 14, p. 192ss, com mais indicações.

[l] Assim sucede no sale of goods Act. Vid., no entanto, para as particularidades do sistema inglês e dos direitos dele derivados (nomeadamente, os da quase totalidade dos Estados norte-americanos), o estudo de SACCO, citado na nota anterior.

[li] Cf., sobre este, além das Ordenações Filipinas, L. 4, tit. 7, CABRAL DE MONCADA, «A “traditio” e a transferência da propriedade imobiliária no direito português (sécs. XII-XV)», in BFDC VI (1920-21), p. 472 ss; COELHO DA ROCHA, Instituições de direito civil portuguêz, Lisboa 1907 (7ª ed.), II, p. 333 s, 643 s; e GALVÃO TELES, «Venda obrigatória e venda real» (1950), cit. na nota 10, p. 76, 82 ss.

[lii] Ambos os sistemas apresentam, na verdade, um ponto de partida comum: a teoria medieval do título e do modo – segundo a qual, para a transmissão da propriedade são necessários um título ou causa remota (contratos de compra e venda, doação, etc.) e um modo (a tradição) -, da qual representam, no entanto, interpretações divergentes. No sentido do texto, (explicitamente) quanto ao ALR, cf. LARENZ, cit. na nota 11, p. 17. Quanto ao direito suíço, cf., nomeadamente, os arts. 656 s e 714 do Código civil e SACCO, citado na nota 49. Para o direito uruguaio, cf. o art. 1.664, 1º, do CC. Para o direito brasileiro, cf. os arts. 531 e 620 do CC e, para a doutrina respectiva, CLÓVIS BEVILÁQUA, Direito das coisas, I, Rio de Janeiro s/d (5ª ed. actualizada por AGUIAR DIAS), p. 125 ss (§50), e Código civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, vol. 3, Rio de Janeiro 1953 (9ª ed., por ACHILLES BEVILÁQUA), p. 65 ss, 167 ss; e CAIO MÁRIO PEREIRA DA SILVA, Instituições de direito civil, vol III, Forense 1978, p. 147, vol. IV, p. 107 ss/ 111 ss, p. 146 ss /156 ss.

[liii] Segundo SACCO – cit. na nota 49 – na evolução do sistema do jus commune para o sistema do Código napoleónico, ter-se-á verificado, em primeiro lugar, uma substituição da tradição pelo constituto possessório (nalguns casos), sendo este, mais tarde, concebido como convenção de alienação.

[liv] Cfr. «supra», nota 14 e texto correspondente.

[lv] Cf. BENEDETTO, «Vendita (Diritto intermedio)», in Nov. Dig. It. XX, p. 600, 603 s, bem como GALVÃO TELES, «Venda obrigatória e venda real» (1950), cit. na nota 10, p. 80ss.

[lvi] São comummente incluídos neste modelo o direito de países socialistas como a URSS, a Checoslováquia e a RDA, o direito espanhol, etc.

[lvii] Para uma parte da doutrina, o modelo em apreço seria inspirado no direito romano clássico, como defendeu Savigny (cfr. «infra»). Todavia, segundo FLUME -Allgemeiner Teil des Burgerlichen Rechts, t. 2, Das Rechtsgeschäft, 3ª ed., Heidelberg 1979, p. 175 - a opinião hoje dominante na doutrina é no sentido de que a “transmissão” da propriedade que no direito romano clássico se operava através da traditio não era um contrato abstrato no sentido da doutrina savigniana.

[lviii] Cf. por ex., LENT-SCHWAB, Sachenrecht, Munique 1974 (14ª ed.), p. 45 s.

[lix] Com vista a facilitar e tornar seguro o tráfico, uma vez que os negócios de disposição, para operarem a transmissão, pressupõem a legitimidade do disponente, o BGB, na linha do CC francês (cfr. o art. 2279 [hoje, 2276]), contém ainda uma regra de tutela das aquisições de boa fé (§ 932).

[lx] Cf. LARENZ, Schuldrecht (1981), cit. na nota 11, p. 20.

[lxi] Cf., no entanto, LARENZ, Schuldrecht (1981), cit. na nota 11, p.16. Para o direito espanhol, vid. os arts. 609 e 1.095 do Código civil e cf. as posições dos seguintes autores: SANTOS BRIZ, tradutor de Larenz, Derecho de Obligaciones, II, Madrid 1959, p. 30 (nota) – considerando o direito espanhol como integrado no mesmo sistema do ALR -, e BELTRÁN DE HERÉDIA DE ÓNIS, «La tradición como modo de adquirir la propiedad», in Rev. Der. Privado 51 (1967), p. 103 ss – sobretudo p. 108 ss, defendendo que a tradição, enquanto elemento integrante do sistema translativo, é um mero acto jurídico em sentido estrito e não um contrato, como defende a doutrina espanhola dominante -, por um lado; PEREZ GONZÁLEZ / ALGUER, tradutores do Tratado de Derecho Civil de Enneccerus/Kipp/Wolff, notas ao tomo III, Derecho de cosas, I, Barcelona 1971, de Wolff/Raiser, 3ª ed. espanhola por PUIG BRUTAU, p. 435 ss, e CASTAN TOBEÑAS/ GARCIA CAMTERO,Derecho Civil Español, Comum y Foral, II ( Derecho de Cosas) /1º, Madrid 1978 (11ª ed.), p. 244 ss, 255 ss, 290 ss, por outro lado. Cf. ainda ESPÍN, «La transmisión de los derechos reales en el código civil español», in Rev. Der. Privado 29 (1945), p. 349, 354 ss; DÍEZ-PICAZO / GULLON, Sistema de Derecho Civil, III, Derecho de Cosas, Madrid 1978, p. 146 ss, 150 s; e DIEZ-PICAZO, «La tradición y los acuerdos translativos en el Derecho español», in Anuário de Derecho Civil 19 (1966), p. 555 ss (que não pude consultar).

[lxii] Vid . LARENZ, Schuldrecht, cit. na nota 11, p.18 s.

[lxiii] Cf. GALVÃO TELES, «Venda obrigatória e venda real» (1950), cit, na nota 10, p. 85.

[lxiv] Cf. art. 609.2: La propiedad y los demás derechos sobre los bienes se adquieren y transmiten por la ley, por donación, por sucesión testada e intestada, y por consecuencia de ciertos contratos mediante la tradición. Art. 1095: El acreedor tiene derecho a los frutos de la cosa desde que nace la obligación de entregarla. Sin embargo, no adquirirá derecho real sobre ella hasta que le haya sido entregada. Art. 1462: Se entenderá entregada la cosa vendida, cuando se ponga en poder y posesión del comprador. Cuando se haga la venta mediante escritura pública, el otorgamiento de ésta equivaldrá a la entrega de la cosa objeto del contrato, si de la misma escritura no resultare o se dedujere claramente lo contrario. Art. 1463: Fuera de los casos que expresa el artículo precedente, la entrega de los bienes muebles se efectuará: por la entrega de las llaves del lugar o sitio donde se hallan almacenados o guardados; y por el solo acuerdo o conformidad de los contratantes, si la cosa vendida no puede trasladarse a poder del comprador en el instante de la venta, o si éste la tenía ya en su poder por algún otro motivo. Art. 1464: Respecto de los bienes incorporales, regirá lo dispuesto en el párrafo segundo del artículo 1462. En cualquier otro caso en que éste no tenga aplicación se entenderá por entrega el hecho de poner en poder del comprador los títulos de pertenencia, o el uso que haga de su derecho el mismo comprador, consintiéndolo el vendedor.

[lxv] Cf. LIPARI, Riv. trim. dir proc. civ. 1960, p. 827, 829 ss.

[lxvi] Para o direito romano, cf. BURDESE, cit. na nota 10, p. 596, KASER, cit.,..., p. 458. Para o direito francês, vid. PLANIOL/RIPERT/HAMEL,Traité pratique de droit civil français, tomo X, Contrats Civils, Paris 1956, p. 7s [só não haverá compra e venda de bem futuro se o valor do trabalho for muito superior ao da matéria (caso do pintor que pinta um quadro), ou se a tal obstar o princípio de que aedificium solo cedit].

[lxvii] Vid . LARENZ, cit. na nota 11, § 53, p. 277 ss; ESSER/WEIYERS, Schuldrecht II, Heidelberg 1984, p. 225 ss; ENNECCERUS/LEHMANN, cit. na nota 11, p. 510 s, 552 ss.

[lxviii] Cf., por exemplo, BIANCA, La vendita e la permuta (1972), cit. na nota 9, p. 39 ss; RUBINO, L’Appalto, Turim 1958, p. 4, 20 ss.

[lxix] Cf. VAZ SERRA, BMJ 145 (1965), p. 45 ss; e PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, CCA II, cit. na nota 15, anotação 4 ao art. 1207 (p. 788 s).

[lxx] Sobre este ponto, vid., nomeadamente, RUBINO, L´Appalto, cit. na nota 68, p. 20 ss (e La compravendita, cit. na nota 9, p. 208 ss). Cf., ainda, BIANCA, La vendita e la permuta, cit. na nota 9, p. 39 ss; GIANNATTASIO, L´Appalto, Milão 1977, p. 27 ss; GRECO/COTTINO, Della vendita, cit. na nota 39, p. 60 ss.

[lxxi] Cf. BALBI, Il contratto estimatorio, Turim 1954, p. 16 s, 21 ss, 41 ss, 45 ss.

[lxxii] Cf. GALVÃO TELES, «Aspectos comuns aos vários contratos», in RFDUL V (1948), p. 234, 299 s; GIANNATTASIO, «Contrato estimatorio», in Enciclopedia del diritto X, p. 87, 91, e La permuta, il contrato estimatorio, la somministrazione, Milão 1960, p. 85, 117 s, 124 s; MESSINEO, Manuale de diritto civile e commerciale, Milão 1954, vol. IV, § 143, p. 155, 158.

[lxxiii] Cf. MESSINEO, cit. na nota ant., p. 155 ss, 159.

[lxxiv] Cfr. GALVÃO TELLES, «Aspectos comuns», cit. na nota 72, p. 301.

[lxxv] Vid . CORRADO, «Somministrazione», in Nov. Dig. It. XVII, p. 881, 893 ss, e La somministrazione, Turim 1954, p. 33 ss; GIANNATASIO, La permuta…, cit. na nota 72, p. 175, 185 ss, 195 ss.

[lxxvi] Cf. BIANCA, La vendita e la permuta (1972), cit. na nota 9, p. 69; PLANIOL/RIPERT/HAMEL, cit. na nota 66, p. 9.

[lxxvii] Cf. BIANCA, La vendita e la permuta (1972), cit. na nota 9, p.70.

[lxxviii] Cf. BIANCA, La vendita e la permuta (1972), cit. na nota 9, p. 56.

[lxxix] Sobre a questão, cf. por ex., LARENZ, cit. na nota 11, p. 461 s.

[lxxx] Para maiores desenvolvimentos, vid. RUBINO, La compravendita, cit. na nota 9, p. 203 ss (que, porém, parte de um critério algo discutível: na venda de frutos, toda a actividade necessária à produção estaria a cargo do vendedor); cf. BIANCA, La vendita e la permuta (1972), cit.na nota 9, p. 51 ss; GRECO/COTTINO, cit. na nota 39, p. 70 ss; PLANIOL/RIPERT/HAMEL, cit. na nota 66, p. 4 ss. Vid, também, GALVÃO TELES, Arrendamento (Lições publicadas pelos alunos B. Garcia Domingues e M. A. Ribeiro, Lisboa 1944-45), p. 38 ss; PINTO LOUREIRO, Tratado da locação, I, Lisboa 1946, p. 179 ss; PEREIRA COELHO, Direito civil I ( Arrendamento), Lições de 1980-81, Coimbra, p. 23 s. Cf. o Acórdão da Rel. Coimbra de 21.4.1981, in Col. Jur. VI (1981/II), p. 73 ss.