EVARIST​O MENDES

Evaristo Mendes

Compra e venda de sociedades

(As SpQ e SA como objeto jurídico)

[O presente texto corresponde à apresentação feita no VI Congresso DSR, realizado em Lisboa, em outubro de 2021, e destina-se a ser publicado no livro dedicado ao mesmo]

Resumo: O presente artigo ocupa-se da corrente compra e venda, uno actu, da totalidade das quotas e ações (não cotadas) de uma SpQ ou SA, defendendo-se nele que a operação é suscetível de ser vista como uma compra e venda da própria sociedade, dotada de personalidade jurídica, com a respetiva empresa e o respetivo património; sendo, portanto, a sociedade, enquanto centro de atividade produtiva personificado, que se transaciona (objeto do tráfico jurídico). E acrescenta-se que a mesma pode, ainda, ser encarada como um objeto de atribuição jurídica.

Abstract : The paper argues that, even from a legal point of view, it is correct to talk about the sale of a business company and that, despite of its legal personhood, the company is owned by the shareholders, being a person and being also a “thing” in the system of law.

Palavras-chaves : venda de sociedades – personalidade jurídica – objeto jurídico – empresa social

Keywords : sale of companies – legal person – legal thing – business enterprise

Introdução

1. Na linguagem corrente e dos negócios, é frequente falar-se em compra e venda de sociedades; e, de facto, generalizou-se, sobretudo no último quartel do séc. XX, um tráfico jurídico-negocial translativo tendo como quid de referência sociedades por quotas (SpQ) e anónimas (SA) [i] . A este fenómeno se reporta o presente texto.

Porém, a primeira questão a que importa responder é a seguinte: é correto, juridicamente, falar em tráfico de sociedades e, mais especificamente, em compra e venda de SpQ e de SA? As sociedades de capitais – além de serem pessoas coletivas, sujeitos de direito – também são objetos jurídicos? Mais ainda: elas são não apenas objeto do tráfico jurídico, mas, inclusive, objeto de atribuição jurídica? Utilizando o termo «propriedade» em sentido amplo, sobre elas incide um direito de propriedade, compropriedade, propriedade em comum ou outra forma de propriedade de alguém? Estamos perante sujeitos-objetos jurídicos?

Na jurisprudência e na literatura jurídica, o panorama mostra-se diferenciado. Por um lado, há obras dedicadas especificamente à compra e venda de sociedades, há alusões aos sócios comodomini da sua sociedade, fala-se em propriedade corporativa dos sócios – extensiva, mediatamente, através da superstrutura corporativa, à empresa societária – e há, mesmo, quem explicitamente considere as sociedades em apreço – apesar da sua subjetividade jurídica – como objeto de propriedade ou direito equiparável. Por outro lado, detetam-se naturais resistências ou hesitações a tal respeito; e, mais radicalmente, a communis opinio é no sentido de que, se alguém tem personalidade jurídica, singular ou coletiva, não pode, simultaneamente, ser objeto jurídico. Como se estabelecia no art. 369 do Código de Seabra, «Coisa diz-se em direito tudo aquilo que carece de personalidade jurídica».

2. O presente estudo parte do dado sócio-económico da atual existência de um tráfico jurídico de SpQ e SA – desenvolvido em grande medida como alternativa, mais eficiente, ao trespasse de empresas societárias – e procura demonstrar, não apenas a correção jurídica da expressão compra e venda de sociedades, mas a própria tese de que, apesar de as sociedades serem organizações de meios de produção, incluindo pessoas, dotadas de personalidade jurídica, dado o seu caráter instrumental, que as distingue das pessoas singulares, para certos efeitos, há vantagem em encará-las, simultaneamente, como objetos jurídicos, ou seja, como sujeitos-objetos [ii] . E defende-se esta tese na sua expressão mais radical: em causa, não está simplesmente afirmar que uma data estrutura jurídico-societária pode ser vista sob duas óticas ou perfis – como sujeito jurídico e como objeto jurídico –, mas a ideia de que sobre essa estrutura, dotada de personalidade jurídica, incide uma adicional qualificação da mesma como objeto jurídico. A subjetividade jurídica é uma qualidade fundamental que, reforçando a sua unidade jurídica e operacionalidade, torna tal estrutura atrativa como objeto jurídico, mormente como objeto do tráfico jurídico-negocial.

Noutros termos, a perspetiva defendida é a que se segue. A compra e venda, uno actu, da totalidade das quotas e ações de SpQ e de SA (ações não cotadas) é suscetível de ser vista como uma compra e venda da própria sociedade, dotada de personalidade jurídica, com a respetiva empresa e o respetivo património; sendo, portanto, a sociedade, enquanto centro de atividade produtiva personificado, que se transaciona (objeto do tráfico jurídico). E a mesma pode, ainda, ser encarada como um objeto de atribuição (ou afetação) jurídica, no sentido de que sobre ela recai uma titularidade por quotas ou ações dos respetivos investidores em capital de risco (espécie de contitularidade externa, conjunta), a que corresponde um poder de domínio interno, por via da qualidade de sócio, de exercício coletivo e de base censitária (poder de domínio corporativo).

Acresce o seguinte: naquele tráfico, via de regra, está em causa a transmissão dessa titularidade com a «inerente» qualidade de sócio que confere este domínio. Porém, não tem que ser assim: pode, designadamente, haver uma compra e venda com imediata «entrega» da sociedade ao comprador, que assume a correspondente qualidade de sócio e o domínio corporativo, mas manter-se a titularidade das quotas ou ações nos vendedores (reserva de propriedade) até ao integral pagamento do preço.

3. O foco de análise é esta compra e venda com transmissão uno actu da totalidade das quotas ou ações da sociedade, por uma ou mais pessoas, a favor de uma outra ou de um grupo de outras pessoas atuando concertadamente; e centra-se nas entidades jurídica e economicamente independentes – não integradas em agrupamento societário –, embora a aquisição possa visar a integração da sociedade numa empresa plurissocietária. É certo que o exposto será aplicável, mutatis mutandis, às demais transmissões de controlo ou domínio, como aliás, a respeito de situações de domínio qualificado, o revelam as referências contidas no texto; mas aqui a espécie e o conteúdo das participações sociais, bem como a titularidade das participações minoritárias, assumem relevo próprio, na economia do contrato, sendo aspeto de que não tratamos. Podem também algumas das considerações expendidas aplicar-se à compra e venda de participações minoritárias, mormente aquelas a que é inerente um poder de influência significativo (embora não dominante) [iii] ; mas não nos ocupamos delas. As SpQ e SA profissionais, em relação às quais o aludido tráfico jurídico negocial não existe, pelo menos com a expressão que assume nas sociedades empresariais, estão, igualmente, de fora [iv] .

O plano do trabalho é o que se segue. Começa-se pelo estado da arte relativo ao objeto da compra e venda (I). Segue-se uma breve caracterização das SpQ e SA como organizações produtivas ou centros de atividade produtiva (II). Trata-se depois do problema da respetiva atribuição jurídica (III). Por fim, alude-se a algumas implicações da tese defendida (IV).

Importa, contudo, fazer uma advertência de ordem geral. O presente texto não constitui nem sequer um esboço de ensaio sobre a natureza jurídica do fenómeno societário e da personalidade jurídica societária [v] . Limita-se a expor que, relativamente às SpQ e SA (não cotadas) portuguesas típicas – essencialmente organizações económico-patrimoniais (estruturas de acumulação de capital), a que se refere o corrente tráfico conjunto, uno actu, de quotas e ações –, a perspetiva nele contida traduz uma construção jurídica possível, adequada à realidade e não artificialmente restritiva da autonomia privada. E cabe observar o seguinte: embora nesta construção se entenda a sociedade, com a sua substância económico-patrimonial (empresa e restante património sociais), formando um todo unitário, como um objeto jurídico, apesar de ser uma entidade dotada de subjetividade jurídica, nela a personalidade jurídica é realçada: constitui um fator de valorização do quid transmitido (quando se confronta este com um possível quid análogo não personificado), simplifica e reduz drasticamente os custos das transações [vi] . [vii]

I

Objeto do contrato

a) Considerações gerais

4. Quando se pensa no objeto do contrato, pode ter-se em vista o quid de referência para as partes – o que, atendendo às utilidades que está em condições de proporcionar e lhe conferem um maior ou menor valor, alguém quer comprar e que o titular está disposto a vender, passando o domínio do mesmo do vendedor para o comprador, mediante um preço – (objeto mediato); ou a transmissão desse quid (ou do direito pleno sobre ele) e a obrigação de entrega do mesmo ao comprador, isto é, a passagem plena do domínio, jurídico e de facto, do alienante para o adquirente (objeto imediato). A presente análise centra-se nesse quid (objeto mediato).

Em termos gerais, este objeto pode consistir: i) em simples quotas ou ações, como entende alguma doutrina civilista minoritária [viii] ; ii) em quotas ou ações, enquanto conferentes do poder de domínio da sociedade e, indireta ou mediatamente, da respetiva empresa e (restante) património, sendo por isso a operação equiparada, para certos efeitos, a uma compra e venda da empresa social ou, mais precisamente, à compra e venda do património social (incluindo o eventual património não empresarial) [ix] ; iii) na empresa social, ainda que indiretamente e para certos efeitos (equiparação), ou também nela [x] ; e iv) na sociedade, com a respetiva empresa e o respetivo património [xi] . Isso coenvolve as seguintes questões: i) o que são quotas e ações? ii) O que se entende, neste contexto, por empresa social? iii) A sociedade – com a sua empresa e/ou o respetivo património – é, aqui, uma simples estrutura jurídico-formal (enformadora da empresa) ou a pessoa coletiva societária (entidade societário-empresarial), de que se é titular?

5. No que respeita às quotas e ações, importa distinguir, por um lado, entre a participação social em sentido objetivo e em sentido subjetivo e, por outro lado, entre a corrente construção monista da primeira e uma possível construção dualista. A participação social em sentido subjetivo identifica-se com a posição global do sócio, em regra conferida pela titularidade de uma ou mais quotas ou ações.

As quotas e ações são participações sociais em sentido objetivo. Na perspetiva monista, são posições de sócio ou membro de uma sociedade correspondentes a outras tantas frações do capital social (quotas de capital, unidades ou frações de capital); ou seja, são quotas sociais e ações «sociais». Em sintonia com o princípio da divisão do capital em quotas ou ações, também pode falar-se numa divisão da posição do sócio (participação social em sentido subjetivo) em quotas ou ações.

Numa possível perspetiva dualista, as participações sociais em sentido objetivo têm uma dupla dimensão: são quotas-valores ou unidades de valor (elementares e uniformes) no caso das ações – frações do valor nominal, contabilístico e económico-financeiro (líquido ou residual) da sociedade – com a inerente qualidade de sócio. Aceitando-se a construção defendida adiante, neste texto, em vez de simples quotas-valores ou unidades de valor, teremos quotas de contitularidade ou «compropriedade» da sociedade-empresa (CAP societário) enquanto objeto jurídico.

Em qualquer das perspetivas, as quotas e as ações são bens de segundo grau, isto é uma forma de riqueza de índole financeira e mobiliária representativa da riqueza económico-patrimonial consubstanciada na sociedade e afeta à respetiva função produtiva. Um instrumento de projeção na esfera pessoal dos seus titulares de uma fração ou quota-parte do valor líquido da sociedade, que se manifesta, designadamente, quando as mesmas são alienadas onerosamente, na liquidação da sociedade, em caso de exoneração e exclusão de sócios, etc. E, como o valor da sociedade em causa lhe é conferido essencialmente pela respetiva empresa e o restante património, pode dizer que as quotas e ações são instrumentos de circulação de valores de empresa [xii] .

6 . Quanto à empresa social, o sentido corrente no presente contexto parece ser o da empresa em sentido objetivo, com o respetivo património empresarial ou de exploração, incluindo, porventura, no ativo circulante, não apenas as existências ou inventários, mas também os créditos resultantes da exploração, e o passivo de exploração, mormente dívidas a fornecedores [xiii] . Ainda assim, ficando de fora o passivo financeiro (remunerado) e eventuais ativos não afetos à exploração (bens de investimento), a alusão à mesma só pode entender-se como relativa ao elemento nuclear da substância económico-patrimonial da sociedade [xiv] .

Note-se, porém, que a perspetiva pode ser alargada de modo a compreender a empresa em sentido objetivo com o respetivo património empresarial (ou todo o património social) e a respetiva estrutura societária, como de algum modo acontece com as normas relativas à constituição económica. E, indo mais longe, o que pode estar em causa é a empresa em sentido subjetivo, isto é, a sociedade-empresa ou entidade empresarial societária, pessoa coletiva societária titular de empresa e de património. Esta visão das coisas já pressupõe, no entanto, que se aceite a tese da sociedade sujeito-objeto, defendida no presente texto.

7. No que respeita à sociedade, como quid de referência ou objeto mediato do contrato, também se concebem dois sentidos: o de uma estrutura jurídico-formal, enformadora da empresa, e o de umapessoa coletiva societária , com a respetiva empresa e o respetivo património, de que é titular (entidade societário-empresarial). Como se verá, esta segunda perspetiva é adotada por alguns autores: a sociedade – pessoa jurídica – é, simultaneamente, um objeto jurídico (sujeito-objeto). Mais especificamente: i) um objeto de atribuição jurídica [sobre ela – bem jurídico essencialmente imaterial, mas com lastro corpóreo, formal e publicamente instituído, «coisa produtiva» – incide um direito de «propriedade» (em sentido lato)] [xv] ; e ii) objeto do tráfico jurídico – é ela que o vendedor ou vendedores transmitem e entregam [xvi] .

b) Referências legais

8. Feito o enquadramento anterior, vejamos melhor o estado da arte acerca do tema que nos ocupa. Começa-se por algumas referências legais [xvii] . A empresa societária, com a respetiva forma jurídica, é, como as EPE (entidades públicas empresariais) e as antigas EP (empresas públicas) reguladas pelo DL 260/76, um «meio de produção»; integrando o setor de propriedade dos meios de produção público, se o poder de domínio pertence ao Estado ou outras entidades públicas, ou fazendo parte do setor privado, se o respetivo domínio ou gestão pertence a pessoas privadas, singulares ou coletivas (art. 82 da CRP). Como tal, é um possível objeto de apropriação pública, máxime nacionalização [cfr. os arts. 80d) e 83 da CRP], se integra o setor privado, e de privatização, se integra o setor público (cfr. o art. 293 da CRP [xviii] ).

Aquelas EP – criadas pelo Estado ou resultantes de nacionalização – eram organizações produtivas personificadas de caráter institucional, isto é, sem socialidade (ou membros) [xix] . O Estado exercia sobre elas o seu poder de domínio como entidade externa às mesmas (embora respeitando a sua autonomia de gestão, dentro das diretrizes gerais estabelecidas).

Tais entidades (organizações personificadas de índole empresarial) foram objeto de privatização mediante prévia transformação em SA (cfr. o art. 4 da LQP [xx] ), através, sobretudo, da alienação das respetivas ações, significando esta uma «reprivatização da titularidade de meios de produção» – isto é, de sociedades-empresas sob a forma de SA –, total ou parcial (cfr. a LQP, máxime, arts. 1 e 6) [xxi] .

Retira-se daqui, por um lado, que um sujeito de direito pode ser simultaneamente objeto de atribuição jurídica (caso das EP) [xxii] e, por outro lado, que uma organização empresarial societária dotada de personalidade jurídica pode ser objeto do tráfico jurídico, embora este se realize ou formalize tecnicamente através da transmissão das respetivas participações (máxime, ações). Na mesma linha, para o DL 133/2013 (RJSPE [xxiii] ), as empresas públicas são «organizações empresariais constituídas sob a forma de sociedade de responsabilidade limitada» ou de EPE (art. 5 do Regime), e, no preâmbulo, fala-se em «organizações empresariais detidas por entidades públicas» [xxiv] . [xxv]

9. No que respeita ao tráfico jurídico-negocial, interessa assinalar sobretudo o art. 135 do CVM, relativo às ofertas públicas de ações (OPS, OPV, OPA e OPT) e respetivo prospeto informativo [xxvi] , antes da sua revogação pela Lei 99-A/2021; embora o presente trabalho não incida sobre as sociedades abertas. Dispunha-se nele:

«1 - O prospeto deve conter informação completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita, que permita aos destinatários formar juízos fundados sobre a [I] oferta, [II] os valores mobiliáriosque dela são objeto e osdireitos que lhe são inerentes, [III] sobre as características específicas, a situação patrimonial, económica e financeira e as previsões relativas à evolução da atividade e dos resultados do emitente e de um eventual garante.

2 - As previsões relativas à evolução da atividade e dos resultados do emitentebem como à evolução dos preços dos valores mobiliários que são objeto da oferta devem: a) Ser claras e objetivas; b) Obedecer ao disposto no Regulamento (CE) n.º 809/2004, da Comissão, de 29 de abril.»

Quer dizer, as ofertas públicas de ações respeitam a estas ações, mas têm como quid de referência o todo constituído pela sociedade, com a respetiva substância económico-patrimonial. Note-se também que as privatizações de empresas públicas passagem de sociedade-empresa («meios de produção») do setor público empresarial para o setor privado, mediante alienação das participações (quotas ou ações) – tem sido frequentemente realizada através de uma OPVouvenda concursal, envolvendo designadamente uma avaliação independente da entidade a privatizar. O que reforça esta conclusão [xxvii] .

c) Prática negocial. Situações típicas

10. Nas últimas décadas, desenvolveu-se um importante tráfico jurídico-negocial relativo ao domínio ou controlo, total ou parcial, de sociedades, mormente sociedades anónimas, ou, noutros termos, a participações sociais (quotas e ações) que, sobretudo pelo poder de voto censitário associado, conferem esse domínio; tráfico esse promovido tanto pelo Estado, máxime ao abrigo da Lei-quadro das privatizações (cfr. supra, n.ºs 8 e 9), como pelos privados, salientando-se aqui as aquisições tendentes à formação e expansão de grupos societário-empresariais – ou empresas plurissocietárias –, bem como à reorganização interna destes. Nalguns casos, estão em causa sociedades cotadas (a modalidade por excelência de sociedades abertas) e um tráfico do controlo efetivado mediante ofertas públicas – OPV (também usadas nas privatizações), OPA e OPT –, a que já se aludiu ( supra, n.º 9), a respeito do art. 135 do CVM, que, como se observou, reserva à sociedade visada, emitente das ações transacionadas, lugar central. Noutros casos, trata-se de sociedades «fechadas» e nesse tráfico jurídico sobressaem os negócios de transmissão uno actu das respetivas quotas ou ações, sobre que incide diretamente a presente análise.

Via de regra, os contratos são complexos [xxviii] , envolvendo avaliações e auditorias, bem como um articulado sistema de garantias e declarações acerca da situação da sociedade, da respetiva empresa e das participações sociais, cláusulas relativas à fixação e ao pagamento do preço, à transferência das quotas ou ações, etc. Tipicamente, a transmissão das participações sociais é algo que acresce ao contrato propriamente dito; o que leva alguma doutrina – pelo menos no caso das ações – a identificá-lo como um paradigmático contrato de compra e venda meramente obrigacional, isto é, sem eficácia real [xxix] . Quer dizer, na economia do contrato, ocupa lugar central a própria sociedade; podendo, com propriedade falar-se numa compra e venda desta, a que acresce a transmissão das quotas ou ações, neste caso, segundo opinião largamente divulgada e dominante na jurisprudência, através do modus adquirendi que lhes é próprio (inscrição em conta ou entrega dos títulos com declaração de transmissão, a favor do adquirente) [xxx] .

Na verdade, a auditoria (due diligence) respeita às quotas e ações – em especial à legitimidade para dispor das mesmas e à sua não oneração –, mas incide sobretudo no todo constituído pela sociedade (regularidade da sua constituição, eventuais autorizações e licenças pessoais, situação patrimonial, etc.) e pela respetiva empresa (estrutura humano-técnico-produtiva, contratos estratégicos [xxxi] , posição de mercado conquistada e perspetivas de desenvolvimento, etc.); todo esse, cujo valor é projetado nas esferas jurídicas dos sócios através das quotas ou ações. Noutros termos, a análise levada a cabo no âmbito desta operação incide primacialmente na sociedade com a respetiva substância económico-patrimonial, em que avulta a empresa social, procurando o comprador obter através dela um retrato da sociedade-alvo, decisivo para a decisão de compra e os termos da transação [xxxii] .

O mesmo sucede com a tipicamente associada operação de avaliação, que se destina a determinar o valor objetivo normalizado da sociedade: via de regra, um valor de rendimento (em cuja determinação sobressai o método do DCF); em certos casos, também um valor de capitalização bolsista, direto ou analógico (método comparativo), com majoração do valor de cotação para ter em conta o chamado prémio de controlo; e, em situações especiais, como a das meras sociedades de investimento, mobiliário e imobiliário, um valor patrimonial assente no valor venal dos bens. E outro tanto vale para as garantias (e declarações) do vendedor ou vendedores: garantias de legitimidade e de não oneração das participações, mas sobretudo de regular constituição da sociedade, relativas a licenças e autorizações administrativas, patrimoniais e de rendimento. Com efeito, também elas respeitam ao todo constituído pela sociedade, com a respetiva substância económico patrimonial [xxxiii] . Podendo, ainda, acrescentar-se, no mesmo sentido, as frequentes as cláusulas de revisão ou fixação definitiva do preço, em função de determinados índices de rendibilidade da sociedade (com a respetiva empresa) [xxxiv] .

11. Merecem, ainda, destaque, neste contexto, dois fenómenos em particular. Em primeiro lugar, a prática negocial da venda com pagamento do preço (parcialmente) diferido e com reserva de propriedade tendente a garantir este pagamento. Na configuração da operação pelas partes, esta reserva cumpre uma mera função de garantia; não obstando à imediata «entrega» da sociedade ao(s) adquirente(s), que assume(m) a qualidade de sócio(s) correspondente às participações. Sendo esta a intenção dos contraentes e fazendo ela pleno sentido, não devem as construções jurídicas inviabilizá-la. Espera-se que o presente texto contribua para tal.

Em segundo lugar, a compra e venda de sociedades de prateleira . Aqui o que realmente se transaciona, na opinião das partes, é uma estrutura societária personificada, um centro de atividade produtiva formal e publicamente instituído, dotado de personalidade jurídica e pronto a funcionar, designadamente levando a cabo as diligências necessárias para a constituição ou aquisição de uma empresa. A transmissão das respetivas quotas ou ações é apenas o meio técnico de obtenção desse resultado.

12 . O que acaba de expor-se é meramente ilustrativo. Outros dados contratuais revelam que o quid de referência para as partes é essencialmente a sociedade com a respetiva substância económico-patrimonial. Estão neste caso: as cláusulas que impõem deveres de informação ao vendedor (além dos legais relativos às OPV) e fazem impender sobre o comprador um dever/ónus de se informar [xxxv] ; as cláusulas de transmissão com assunção do passivo financeiro da sociedade pelos cedentes; e as cláusulas impositivas de deveres de não concorrência aos vendedores [xxxvi] .

d) Linguagem corrente e referências doutrinais gerais

13. Na linguagem corrente, encontram-se afrmações como esta: «The easiest and quickest way for you to acquire a German limited liability company (GmbH) or a stock corporation (AG) is to purchase a company which is already incorporated and registered» [xxxvii] . Além disso, abundam as referências aos acionistas (ou sócios) como titulares ou proprietários da respetiva «sociedade-empresa» - ou como seus «proprietários económicos» [xxxviii] -, seja, em tom aprovativo, seja em tom crítico [xxxix] , mas evidenciando tratar-se de uma ideia generalizada. Dão-se, em seguida, alguns exemplos.

«Etre propriétaire d’une entreprise, cela signifie disposer du droit d’utiliser l’entreprise pour poursuivre ses objectifs économiques. Formellement, cela se traduit notamment par la jouissance de deux droits: le droit de contrôler l’entreprise et le droit de décider de l’affectation des excédents qu’elle génère, c’est-à-dire du surplus que l’on obtient, une fois que l’entreprise s’est acquittée de toutes ses charges contractuelles (salaires, impôts, charges financières, achats de biens et services). La forme d’entreprise la plus connue et la plus étudiée est celle de l’entreprise capitaliste. Dans une telle entreprise, les apporteurs de capitaux (actionnaires) en sont les propriétaires. Ils y ont investi du capital et, en échange du risque qu’ils ont pris, ils se voient attribuer les droits de propriété. Ils disposent du pouvoir formel de décision, le plus souvent proportionnellement au nombre de parts de capital qu’ils détiennent, selon la règle « 1 part de capital = 1voix » et ils disposent également du pouvoir de décider de l’affectation du surplus. Ils peuvent ainsi opter pour une mise en réserve des bénéfices ou pour une distribution de dividendes que l’on peut comprendre comme une rémunération variable mais proportionnelle du capital investi. D’autres formes d’entreprises existent, qui attribuent la propriété à différents acteurs économiques. Ainsi, dans l’entreprise publique, l’Etat exerce le rôle de propriétaire (…)» [xl] .

«The corporation is an instrument of the stockholders who own it» [xli] . «Shareholders are the legal owners of a corporation, but that does not give them the right to be involved in the day-to-day management of the company. Shareholders have the right to vote for members of the board of directors. The board runs the company for the benefit of shareholders. If a single shareholder owns enough shares, he can control appointments to the board or even appoint himself to the board.» [xlii]

«Le grand public semble considérer que les actionnaires sont propriétaires de leurs entreprises, au même titre que les patriciens romains l'étaient de leurs domaines, esclaves compris. Les agissements des conseils d'administration les confortent dans cette idée. Le comportement des dirigeants va dans le même sens. Cependant les actionnaires ne sont pas propriétaires de l'entreprise: ils sont propriétaires de son capital et rien de plus» [xliii] .

«L’un des mythes les plus tenaces de la gouvernance est celui selon lequel les actionnaires sont les propriétaires de la société par actions. En effet, dans une partie de la littérature qui assimile la société par actions à l’entreprise, les actionnaires sont dits les propriétaires et les maîtres de cette dernière» [xliv] .

e) Doutrina

14. Deixando de lado o debate de fundo acerca da natureza das sociedades e da respetiva governança [xlv] , realçam-se, no plano doutrinal, os dados que se seguem. Em primeiro lugar, cabe assinalar a existência de importantes textos e obras jurídicas explicitamente dedicados à compra e venda de sociedades, ainda que por vezes ressalvando que, mais precisamente, está em causa a transmissão de participações de controlo [xlvi] . Em segundo lugar, salienta-se a distinção corrente, a respeito do tráfico jurídico de empresas societárias, entre transmissões diretas (asset deals) e indiretas (share deals) [xlvii] , aplicando alguns institutos ou normas relativos às primeiras a estas segundas; o que, em última análise, revela ser a sociedade com a respetiva empresa, o respetivo património e o seu negócio o verdadeiro objeto de referência da transação, mas o não reconhecimento jurídico-dogmático da própria sociedade como objeto jurídico impede que o fenómeno seja visto (ou construído juridicamente) deste modo [xlviii] .

Num outro plano, mas com relevo para o anterior, importa, em terceiro lugar, recordar que as ações e as participações sociais em geral são vistas como uma forma de propriedade sui generis da empresa societária - a propriedade corporativa, mediatizada pela corporação, em que pontua o princípio maioritário [xlix] - e que é frequente a consideração dos acionistas como proprietários económicos da mesma [l] , [li] . Mas há quem vá mais longe: falando na titularidade da sociedade pessoa coletiva, encabeçada nos acionistas(Calvão da Silva, num primeiro momento, e Pessoa Jorge); especificando que a SA é uma «pessoa jurídica» sobre a qual os acionistas detêm um direito de «propriedade» (Iwai)); e entendendo que, apesar de ser pessoa jurídica, a sociedade também pode ser objeto de direito, incidindo a participação social sobre a totalidade da mesma nas sociedades unipessoais e sobre uma parte da mesma nas plurais (Pais de Vasconcelos). Vejamos mais em pormenor.

15. Já em 1948Ferrer Correia falava num dominus societatis [lii] , acrescentando: «pois que interesse prossegue a sociedade unipessoal senão o do dominus societatis [liii] , [liv] . Nas respetivas Lições, dada a personalidade jurídica das sociedades, recusava, porém, em geral, a equipação da transferência uno actu da totalidade das quotas ou ações ao trespasse do respetivo estabelecimento [lv] . Mais recentemente, em parecer assinado com Almeno de Sá, relativo à privatização da Sociedade Financeira Portuguesa (SFP), [lvi] , observa: que a «compra e venda de empresas» pode concretizar-se «fundamentalmente por duas diversas formas: ou através daaquisição directa do estabelecimento ou através da aquisição das participações sociais da sociedade que explora o estabelecimento»; e que, no caso concreto, o que se pretendeu foi « vender a SFP como um todo, como uma unidade», «ou seja, e mais rigorosamente, vender a empresa explorada por esta Sociedade» (privatizá-la desse modo) [lvii] ; reafirmando adiante que a finalidade da operação não era uma simples alienação de ações, mas antes a «alienação da empresa qua tale : a venda da Sociedade Financeira como um todo ou, mais rigorosamente, a venda da empresa explorada pela Sociedade» [lviii] . Salienta-se também que, ao tratar das duas vias de aquisição de uma empresa societária, a respeito da segunda, os autores falam na “«aquisição» do titular jurídico da empresa, isto é, da pessoa jurídica «sociedade» a que a empresa pertence” [lix] . Noutros trechos do parecer, a mesma ideia surge assim expressa: «o objectivo da operação de privatização não era uma simples venda de acções da SFP, mas antes a alienação da empresa explorada por esta» [lx] ; a aquisição respeitou ao «património da empresa» globalmente considerado [lxi] .

Ainda a respeito do caso da SFP, Menezes Cordeiro, num primeiro parecer, depois de referir que a mesma era uma pessoa coletiva societária de tipo corporacional [lxii] , afirmou: «A operação material e jurídica da compra e venda das acções foi apenas a parte visível duma realidade subjacente: a própria venda da SFP» [lxiii] .

De forma mais clara, ainda, no sentido da afirmação da existência de um tráfico jurídico-negocial de sociedades e da titularidade destas, apesar da sua subjetividade jurídica, pronunciaram-se, a propósito do mesmo caso, Pessoa Jorge [lxiv] e, num primeiro momento, Calvão da Silva [lxv] . Escreveu Pessoa Jorge: «Há que ter presente que se está perante a venda da totalidade das acções de uma sociedade, o que praticamente, representa a venda desta; como é usual em tais operações, o preço foi calculado com base na avaliação da empresa» [lxvi] . Na verdade, «...vender a totalidade das acções de uma sociedade é transmitir a titularidade da pessoa colectiva, com a empresa de que esta é forma jurídica, incluindo o seu património global» [lxvii] . Foi isso que aconteceu na privatização da SFP: «o BPSM,accionista único e [sociedade anónima] pertencente ao Estado, procedeu a uma venda nessas condições» [lxviii] .

Calvão da Silva, por seu turno, argumentou: «ao proceder à alienação» na BVL «das acções representativas da totalidade do capital social» da SFP, o BPSM «transmitiu a titularidade dessa sociedade»; « alienou uma sociedade como empresa colectiva ou uma empresa personalizada » numa das formas jurídicas que esta pode revestir, a da sociedade anónima, «com todo o seu património». Foi transmitida a «titularidade ou propriedade de uma empresa» [lxix] . [lxx]

16. Num plano mais geral, interessa referir as posições de dois outros autores, um reputado economista japonês – Katsuhito Iwai [lxxi] – e um conhecido jurista alemão – Friedrich Buchwald [lxxii] . Lê-se, em síntese, no primeiro:

«The law speaks of a corporation as a 'legal person' – as a subject of rights and duties capable of owning real property, entering into contracts, and suing and being sued in its own name separate and distinct from its shareholders. For many centuries there have been a heated controversy between corporate nominalists and corporate realists as to the 'essence' of this soulless and bodiless person.

The first purpose of this paper is to end this age-old 'corporate personality controversy' once and for all. It is, however, not by declaring victory for one side or the other, but by declaring victory for both. The key to this claim is the observation that an incorporated firm is composed of not one but two ownership relations: the shareholders own the corporation and the corporation in turn owns the corporate assets. The corporation thus plays a dual role of a 'person' and a 'thing' in the system of law.»

Buchwald, por sua vez, discorre: «Os sócios participam na própria sociedade, têm (partes ou) quotas na sociedade (Anteile an der Gesellschaft)». «A sociedade de capitais tem dupla natureza. Ela é simultaneamente sujeito de direito e objeto jurídico. Enquanto pessoa jurídica, é sujeito de direito, titular do património social. Isto di-lo expressamente a lei. Todavia, na relação com os sócios, ela é, simultaneamente, objeto jurídico. Os sócios têm nela (partes ou) quotas (Die Gesellschafter haben an ihr Anteile). Esta dupla qualidade/posição como sujeito de direito e objeto jurídico traduz a natureza (das Wesen) da sociedade de capitais», em oposição às sociedades de pessoas, que nem são legalmente uma coisa nem outra».

Entre nós, embora de forma menos clara, pode, ainda, referir-se Pais de Vasconcelos, neste sentido de que, apesar de ser pessoa jurídica, a sociedade também pode ser objeto de direito, incidindo a participação social sobre a totalidade da mesma nas sociedades unipessoais e sobre uma parte dela nas plurais (daí a designação) [lxxiii] . [lxxiv]

17. Embora o presente texto parta da conceção dominante da sociedade, segundo a qual a mesma se destina, pelo menos primacialmente, a criar valor em favor dos respetivos sócios, ainda que privilegiando uma ótica temporal de longo prazo, como pode deduzir-se do art. 980 do CC e do art. 64 do CSC [lxxv] , importa fazer uma breve referência à conceção francesa conhecida como doutrina da empresa, que constitui uma espécie de versão jurídico-gestória da conceção económica humanista e social-pluralista das partes interessadas (stakeholder theory) de origem norte-americana [lxxvi] , pretendendo ser uma terceira via – entre o antigo coletivismo soviético e o financialismo dominante, que promove a circulação do dinheiro sem acrescentar valor coletivo –, em que ocupa lugar importante a reabilitação do papel do empresário (em oposição à mera gestão financeira) [lxxvii] . Segundo tal conceção – centrada na empresa societária, sobretudo sob a forma de sociedade anónima –, a empresa é uma «unidade estratégica, económica e social dotada de um poder de organização decisório autónomo que exerce determinada atividade económica» [lxxviii] , numa economia de mercado [lxxix] . A forma organizativa principal é a da sociedade anónima, o que lhe confere personalidade jurídica [lxxx] . Ou seja, sob esta forma (mas o mesmo vale para outras formas jurídicas dotadas de personalidade jurídica), na summa divisio entre objetos e sujeitos de direito, trata-se de um sujeito de direito, um sujeito coletivo plural, prosseguindo um interesse próprio, distinto das diversas categorias de interesses nele presentes (acionistas, credores, trabalhadores, etc.); não de um objeto de apropriação comum (empresa-objeto), como era o entendimento marxista soviético e como ela é entendida pelo pensamento financialista que se tornou dominante nos anos 90 do século XX [lxxxi] .

Apesar disto, a respeito da transmissão do respetivo controlo (ou poder de domínio empresarial), observa-se o seguinte: i) esta constitui uma figura jurídica sui generis, não confundível com a mera transmissão de ações, sendo dotada de um regime jurídico específico, de elaboração jurisprudencial em conformidade com os ensinamentos da doutrina da empresa; embora a transmissão do poder de domínio empresarial em causa se opere formalmente através da transmissão de direitos sociais [a figura da participação social é desconhecida no pensamento jurídico francês], em termos substanciais, esta é uma mera técnica jurídica ao serviço da transmissão do domínio, que tem a empresa social, com o respetivo património e a respetiva capacidade lucrativa, como epicentro; ii) nas transmissões de controlo integral, já foi até sugerida a sua qualificação como «quase-fusão» (Contin); iii) o que se transmite, realmente, é a «empresa social», há uma «aquisição da sociedade» [lxxxii] .

f) Jurisprudência

18. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 108/88, refere-se que, como se escrevera no anterior acórdão n.º 11/84, a nacionalização importa a «apropriação... de empresas...», subtraindo à propriedade privada o bem que elas constituem; aludindo-se, ainda, à desnacionalização de empresa ou de capital (ações) (n.º 5) e distinguindo-se entre capital social ou capital jurídico e capital económico das empresas nacionalizadas (n.º 11) [lxxxiii] . Acerca do mesmo fenómeno, afirma-se no Acórdão do STJ de 15.03.2005 (Ponce de Leão) que a nacionalização é um «acto político-legislativo» de «transferência (...) da propriedade» privada de «bens económicos» para a titularidade pública, com o fim de os gerir no interesse colectivo, assentando, numa «concepção ideológico-política sobre o papel e o âmbito relativos dapropriedade pública dos bens de produção, principalmente empresas» [lxxxiv] .

A respeito do fenómeno inverso, da privatização, assinala-se, antes de mais, o Acórdão arbitral de 31.03.1993 (Fausto Quadros), que decidiu o aludido caso da SFP [lxxxv] , onde se encontram expressões e frases como as seguintes: « compra da referida sociedade» (SFP), «compra da S.F.P.» e «data da aquisição da S.F.P.» [lxxxvi] ; compradores «desconheciam que o património da sociedade posta à venda se achava onerado pelas duas garantias» [lxxxvii] ; estamos perante uma «compra e venda, tendo por objecto uma empresa, sobre a qual existiam ónus ocultados ou não revelados aos adquirentes» [lxxxviii] .

Na mesma linha, insere-se o Acórdão do STJ de 12.02.2009 (Moreira Alves) [lxxxix] , que, também a respeito de uma operação de privatização mediante venda de ações (OPV), teve de se pronunciar sobre a aplicação do regime da compra e venda de bens onerados e coisas defeituosas. Lê-se nele, designadamente:

«Antes de mais, aceita-se a tese defendida pelas recorrentes e pela doutrina em geral, que, em situações como a dos autos, se estará, juridicamente, perante a compra (e venda) das empresas cinditárias em questão nos autos. De facto, perante os factos disponíveis, a i nterpretação dos contratos, revela facilmente que aquilo que a 1ª A. pretendeu, foi adquirir as empresas em si mesmas, enquanto unidades jurídicas autónomas e objectivamente consideradas , enquanto que o objectivo do Estado foi, exactamente, vender as empresas, que previamente cindiu, de acordo com um plano estruturado para a privatização do sector dos transportes.

Por outro lado, também se aceita que casos como o dos autos se enquadrem juridicamente no âmbito da venda de bens onerados regulada nos arts. 905 a 912 do C.C. (verificados que sejam os respectivos pressupostos)».

19. Num plano mais geral [xc] , a referida conceção entre nós acolhida por Ferrer Correia e Almeno de Sá, Calvão da Silva, num segundo momento, etc., encontra-se afirmada, por exemplo, no Acórdão do TRP de 17.02.2000 (Pinto de Almeida) [xci] , relativo à compra e venda da quase totalidade das ações de uma sociedade anónima resultante de transformação, para o efeito, de anterior SpQ. Lê-se, designadamente, no sumário:

«I – Deve ser tida como compra da própria empresa explorada por uma sociedade a compra da totalidade das participações sociais, ou de uma parte delas que deixe na titularidade do vendedor ou de terceiro um número insignificativo, quando a vontade negocial seja precisamente de adquirir a empresa. II – Se os adquirentes procederam ao estudo prévio da situação patrimonial da sociedade, com vista à aquisição da totalidade das participações; se foi por um deles pedida a transformação da mesma em sociedade anónima; se no próprio dia em que foi celebrado o contrato da sociedade transformada foi celebrado o contrato de compra e venda da quase totalidade das participações sociais; se os adquirentes e pessoas da sua confiança foram desde logo designados para funções sociais ; e se se clausulou que a sociedade transformada continuaria a usar a mesma firma – o negócio não é de compra e venda das participações sociais, mas sim da própria empresa social

Também o STJ, em Acórdão de 26.06.2007 (Afonso Correia) [xcii] , apesar de ter negado a desconsideração da personalidade jurídica societária para efeitos de arrendamento, afirmou a mesma ideia datransmissão de ações como meio de transmissão de valores empresariais. No Aresto transcreve-se excerto da 1ª instância em que os sócios são considerados como os titulares da sociedade («titulares das sociedades» envolvidos no negócio de compra e venda das participações) e em que se afirma que a transmissão de uma participação social é um negócio societário, não de trespasse. E alude-se a dois autores em especial:

Pais de Vasconcelos, segundo o qual é corrente na prática a transmissão de estabelecimento comercial através da cessão da totalidade das quotas ou da venda da totalidade das ações, o que, de resto, tem vantagens, como a da não rutura das relações existentes, embora também envolva riscos, como o da existência de passivo ou responsabilidades com que não se contava (justificando a eventual aplicação do art. 252.2 CC) [Contratos atípicos, p. 253 e s. [xciii] ]; e

Pinto Monteiro, que, em parecer junto aos autos, afirma que «a transmissão das acções» é um « mecanismo de mobilização e circulação da riqueza empresarial» (não uma simples transmissão de património) e defende, inclusive, que essa «transmissão das ações como forma de mobilização da riqueza empresarial é a função típica das sociedades anónimas»; segundo ele, «este tipo societário existe exactamente para que, de modo fácil, seguro e expedito, possam circular no tráfico os valores empresariais, através da alienação de acções».

No Acórdão do STJ de 11.03.2010 (Serra Baptista) [xciv] , por sua vez, estava em causa uma situação particular, que merece ser sumariada. Uma sociedade por quotas (A) comprara a uma cooperativa, operadora de rádio local, o respetivo alvará de radiodifusão, e uma outra sociedade por quotas (B), a quem este alvará interessava, comprou a totalidade das quotas da primeira [xcv] , desconhecendo, apesar das diligências efetuadas (exame à escrita da sociedade alvo e nas finanças), que a cooperativa estava adstrita a certa dívida. Tendo o credor proposto ação pauliana contra a cooperativa (sua devedora) e contra a SpQ adquirente do alvará (A), a SpQ adquirente da totalidade das quotas da mesma (B), foi admitida como assistente, para a auxiliar na sua defesa. Contra o decidido pelo TRP, o STJ considerou a impugnação da venda do alvará improcedente, já que, no seu entender, a aquisição da totalidade das quotas deveria, in casu, equiparar-se a uma segunda transmissão do alvará e o impugnante não provara que a sub-adquirente por equiparação (ou ficção), quando da sua aquisição, tinha conhecimento da dívida, prejudicando com ela a garantia patrimonial do credor impugnante.

Para o que aqui interessa, a fundamentação do Supremo pode sumariar-se como se segue. I – Não pode, sem mais, afirmar-se que a aquisição da totalidade das quotas de uma SpQ por outra SpQ seja a mesma coisa que a aquisição da respetiva empresa, com o seu património, incluindo um alvará, como no caso vertente. Na verdade, «a venda das participações sociais, inclusive a venda da totalidade das mesmas participações sociais duma sociedade, não se identifica (não é o mesmo que) com a venda da empresa (em sentido objectivo) da sociedade. A sociedade, como ser jurídico distinto dos sócios é que é titular dos bens sociais, e não estes»; «o objecto daquela são as respectivas quotas (participações sociais). E objecto desta é a própria empresa, transferida da sociedade para outro sujeito». II – Todavia, como a outro respeito defende Coutinho de Abreu, «a venda de participações sociais, nalguns casos, e para certos efeitos, é equiparável à venda da empresa». Com efeito, por um lado, «a sociedade não vive por si e para si, antes existindo por e para os sócios, sendo destes instrumento» e «o património da sociedade não está ao serviço de interesses da pessoa jurídica em si mesma»; por outro lado, nas palavras deste autor, «através da compra e venda de todas ou da maioria das participações numa sociedade uma das partes cede e a outra parte adquire o domínio ou controlo societário e, consequentemente, o poder de determinar a gestão da empresa social; quem adquire as participações sociais consegue praticamente uma posição equiparável à de um empresário singular; há uma transmissão indirecta da empresa social – podendo mesmo falar-se de transferência da propriedade indirecta ou mediata sobre ela» [xcvi] . III – Havendo a aquisição da totalidade das quotas de uma SpQ por outra, constitui-se entre elas uma relação de grupo por domínio total, podendo a dominante determinar inteiramente a gestão da dominada. Assim, embora tal domínio «não possa equivaler à propriedade jurídica» da dominada e do seu património, incluindo, no caso, o alvará, deve entender-se que confere à dominante a sua propriedade «económica», podendo administrá-lo e fruir dele como entender. O que permite ficcionar que a aquisição das quotas (e do correspondente domínio) envolveu a transmissão do próprio alvará; conclusão reforçada pela circunstância de, in casu, tudo levar a crer que, com a aquisição das quotas, era este o bem pretendido.

Em breves palavras, entendeu o Supremo que, se a SpQ B, adquirente da totalidade das quotas da SpQ A, dada a sua boa fé, seria tutelada contra a privação do alvará caso o tivesse adquirido a esta diretamente, também o deve ser tendo adquirido a totalidade das suas quotas e, portanto, o seu domínio absoluto, como forma de chegar a ele; ou, noutros termos, também merece tutela idêntica se comprou a sociedade com o respetivo alvará (ou o domínio absoluto da mesma e do respetivo alvará), desconsiderando-se, neste caso, a respetiva personalidade jurídica e a correspondente ausência de uma transmissão do alvará qua tale. [xcvii]

Por fim, no acórdão do STJ de 26.11.2014 (Tavares de Paiva) [xcviii] , salienta-se no sumário: «I - A aquisição de uma empresa pode ser efectuada quer através da sua aquisição directa, com a transmissão do estabelecimento, quer indirectamente, mediante a aquisição da totalidade ou da maioria do capital social da sociedade comercial que é titular da empresa. II - Para indagar se com a compra e venda de acções se pretendeu, apenas, a transmissão das participações sociais (compra de direitos) ou, também, da empresa (compra de uma coisa), terá de recorrer-se, entre outros, aos seguintes elementos: interpretação do clausulado contratual, percentagem de participações sociais alienadas, análise do processo que conduziu à formação do contrato e modo de fixação do preço das participações sociais. III - A distinção entre compra de participações sociais e compra de empresa é especialmente relevante, em caso de existência de desconformidades na empresa, para efeitos de aplicação do regime da compra e venda de coisas defeituosas.

IV - Tendo uma sociedade comercial, através da compra e venda de acções de uma sociedade anónima, adquirido, além dos direitos e deveres societários inerentes às participações, a própria empresa, com a legítima expectativa de que ela reunia as qualidades devidas para o cabal exercício do seu escopo social, a falta dessas qualidades, traduzindo uma situação de desconformidade com o contrato, consubstancia a existência de defeitos ou vícios. V - Se, aquando daquela aquisição, os representantes da sociedade compradora das acções conheciam as condições concretas em que a empresa adquirida laborava, uma vez que eram seus utilizadores, designadamente que a mesma não estava licenciada a título definitivo para exercer a sua actividade, é de afastar a existência de erro-vício incidente sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio. VI - Uma vez que o contrato de compra e venda (das acções e da empresa) é um contrato de execução instantânea, produzindo imediatamente os seus efeitos, o prazo para o exercício dos direitos decorrentes da compra e venda da coisa defeituosa (i.e., anulação do contrato, redução do preço, indemnização, reparação da coisa ou sua substituição) começa a contar a partir da data do conhecimento do defeito. VII - Nas situações de aquisição de empresas, sem prejuízo dos deveres de informação, de comunicação e de esclarecimento na fase negocial do contrato, existe, da parte do comprador, um ónus reforçado de informação deste. (…) IX -Tendo sido convencionada uma cláusula penal compulsória, por via da qual a sociedade adquirente da empresa se vinculava a mantê-la em laboração por um determinado período temporal, o encerramento de um dos seus estabelecimentos, antes de transcorrido aquele prazo, não é susceptível de desencadear o accionamento daquela cláusula, nomeadamente, quando a compradora logrou afastar a presunção de culpa de incumprimento, a que alude o art. 799.º, n.º 1, do CC, e se verifica uma situação de venda de coisa defeituosa.»

g) Conclusão intercalar

20 . Infere-se do exposto que, na compra e venda uno actu da totalidade das quotas e ações de uma SpQ e SA, o quid de referência a que se reporta o acordo das partes é, via de regra, a própria sociedade com a respetiva substância económico-patrimonial, ou seja, enquanto unidade ou organização produtiva; e, como o seu objeto imediato é a exploração de uma empresa, sendo esta que lhe confere utilidade e o essencial do seu valor, também via de regra, é o domínio corporativo desta que sobretudo se quer adquirir. Esta ideia é também confirmada, não infirmada, quando se pensa nas quotas e nas ações, dado que estas são uma mera forma de riqueza representativa da riqueza consubstanciada na sociedade (afeta à atividade produtiva), projetando na esfera jurídica dos titulares uma fração do valor líquido da mesma; e ainda se tornará mais patente se se aceitar a tese de que a sociedade é um objeto jurídico, sendo as quotas e ações «quotas de contitularidade ou compropriedade» da mesma.

A ideia da sociedade como objeto jurídico tem estado, no entanto, ausente do pensamento jurídico dominante, sobretudo porque, legal e dogmaticamente, a sociedade é dotada de personalidade jurídica e – supostamente – um sujeito de direito não poderia ser, simultaneamente, objeto jurídico. Daí a preferência da maioria dos autores por construir o fenómeno translativo em apreço – nuclearmente (mesmo quando tal não se diga expressamente) – como de transmissão indireta ou mediata da empresa societária, rectius, do direito ou poder de domínio corporativo da mesma; o que se justifica também pela circunstância de a utilidade e o valor principais da organização globalmente considerada residirem nela.

Neste estudo, afronta-se, no entanto, diretamente o problema e – na linha de Iwai e Buchwald, mas também, em parte, de autores como Pessoa Jorge e Calvão da Silva (e com algum apoio na lei) – propõe-se a consideração das SpQ e SA ainda não ativadas (ou de prateleira) e, sobretudo, das já ativadas, com a respetiva substância económico-empresarial e patrimonial, como sujeitos-objetos jurídicos. Antes de entrar diretamente no tema, tecem-se, contudo, a seguir, algumas considerações acerca do fenómeno societário-empresarial, que poderão ser úteis, para o efeito.

II

As SpQ e SA como organizações produtivas personificadas

a) CAPs societários

21. O ordenamento jurídico compreende um setor normativo e institucional que podemos designar como direito da atividade produtiva, de contornos ainda mal definidos, mas compreendendo nuclearmente o direito comercial e, mais latamente, o direito empresarial, mercantil e não mercantil, e o direito da atividade profissional, em que sobressai o direito das profissões liberais «protegidas». O fenómeno regulado é o sistema produtivo nacional, cuja célula básica é a empresa, entendida como uma autónoma organização produtiva de mercado, suscetível de se situar e ser exercida, designadamente, no âmbito da esfera jurídica geral de uma pessoa singular, no quadro patrimonial autónomo do EIRL e no âmbito da esfera jurídica de pessoas coletivas como as cooperativas e as sociedades; mas sendo a estrutura societária também utilizada para a formação de empresas complexas, plurissocietárias, em que, tipicamente, uma SpQ ou SA assegura a direção unitária das várias unidades, formalmente autónomas, que a compõem. A par das organizações empresariais, existem, porém, as práticas profissionais, mormente as liberais, individuais e coletivas, e pequenas unidades produtivas, incluindo sob forma de SuQ e SpQ e sociedades simples ou gerais (informais), sem verdadeira dimensão empresarial.

Nem todas estas unidades produtivas têm relevância sistémica, isto é, são importantes para a instituição de um sistema produtivo convenientemente organizado e funcionante de modo a conseguir-se o objetivo último do progresso económico e do bem-estar social. Por isso, o direito regulador da atividade produtiva centra-se na empresa; a que acresce a regulação das profissões liberais, em que avultam, hoje em dia, as práticas coletivas organizadas sob forma societária, as quais, em boa parte, contêm importantes elementos empresariais e são sistematicamente relevantes [xcix] .

Neste quadro, a sociedade é apenas uma forma jurídica organizativa e de enquadramento da atividade empresarial e profissional. Ou seja, numa perspetiva substancialista do sistema e do tecido produtivos, constitui um elemento secundário e fungível deste. Ainda assim, ela mostra-se relevante, como o demonstram a existência de um CSC e o facto de a numerosa regulação económica setorial tomar quase sempre como objeto de regulação as entidades empresariais (empresa em sentido subjetivo) e impor, em grande medida, as SpQ e SA como formas organizativas [c] ; e também em virtude do comummente afirmado princípio da tipicidade das pessoas coletivas [ci] (e das estruturas jurídicas com responsabilidade limitada), que faz com que as sociedades de direito mercantil, personificadas, sejam a forma privilegiada de organização da empresa e de exercício da atividade empresarial.

22 . Para os fins deste estudo, interessa-nos esta perspetiva substancial e integrada do fenómeno empresarial societário e plurissocietário, em consonância, designadamente, com a constituição económica – conceitos de empresa e «meios de produção», públicos e privados, suscetíveis de apropriação pública e privatização –, com o direito regulatório setorial, que se refere, em geral, às entidades produtivas (empresariais), máxime societárias, como empresas, o direito jusmobiliário e o moderno conceito de empresa plurissocietária. Ou seja, dá-se o devido relevo à forma societária, às estruturas societárias da empresa e à pessoa coletiva societária, mas sem a exacerbação que estas não raro têm nos cultores do Direito comercial: as sociedades personificadas do CSC são apenas a forma principal das organizações produtivas existentes, profissionais e empresariais, e a razão de ser da personificação reside, não na forma societária, mas na substância económico-produtiva que constitui o seu objeto; a forma é meramente instrumental.

Na verdade, quando se transacionam uno actu as quotas ou ações de certa sociedade, como resulta das referências constantes do título anterior, a realidade nuclear que se quer transferir do domínio do ou dos vendedores para o do ou dos compradores, havendo uma empresa envolvida, que funciona no quadro de uma SpQ ou SA, é, tipicamente, essa empresa, com a respetiva forma societária, a que acrescem eventuais ativos não integrados na empresa e o passivo financeiro (incluindo o fiscal e parafiscal), quando não ressalvados pelos contraentes. Noutros termos, o real objeto da transação é a sociedade com a respetiva substância económico-patrimonial, que lhe confere o seu principal valor e utilidade.

Numa obra dedicada ao tema, escreveu Catarina Monteiro Pires: «O Direito, na sua aplicação prática, não tolera compartimentações e, em matéria de aquisição de empresas, é essencial que a “dimensão contratual” (apesar de ser a mais saliente) não anule, nem contrarie, a “dimensão” societária”» [cii] . Uso este mote para contrariar a corrente contraposição, sem reservas e em todos os contextos, da sociedade, pessoa jurídica de base ou substrato pessoal, à respetiva empresa, de que ela é titular [ciii] . Na verdade, para efeitos analíticos e regulatórios [civ] e para alguns efeitos jurídicos, tal pode fazer sentido (e faz efetivamente); mas traduz uma compartimentação da realidade, que impede a devida consideração jurídica do todo, necessária em contextos como aquele em que nos situamos.

A própria noção de sociedade que se extrai do art. 980 do CC vai neste sentido [cv] : aí, o centro de gravidade do fenómeno societário reside claramente na atividade económico-produtiva (criadora de valor ou riqueza, não de mera fruição) exercida em comum pelos sócios em benefício próprio. Mais especificamente, a sociedade é encarada como uma organização, ou centro de atividade produtiva, instituída por duas ou mais pessoas - que a integram como seus membros e que, supletivamente, de forma disjunta (cfr. os arts. 985 e 996.1 do CC), embora coordenada, levam a cabo tal atividade, num quadro patrimonial relativamente autónomo (arts. 997 a 999 e 1016.2) - a fim de repartirem entre si o resultado conseguido. Figurino que também encontramos nas formalmente personificadas sociedades profissionais (cfr. os arts. 2.1, 3d) e e), 7 e 11.3 da Lei 53/2015), incluindo SpQ e SA (art. 4 da Lei; cfr. também o art. 1.4 do CSC); com a explicitação de que, sendo a sociedade dotada de personalidade jurídica (art. 5 da Lei), o exercício em comum consiste na realização do objeto social (a prestação de serviços profissionais) da pessoa coletiva em apreço (art. 2.2; cfr. os arts. 6 e 7.1 da Lei).

23 . Explicita-se a seguir esta ideia, a respeito das SpQ e SA empresariais utilizando um quadro conceptual um pouco diferente [cvi] . Cada uma delas constitui um centro de atividade económico-produtiva (CAP) de índole social ou corporativa (business corporation), legalmente típico, formal e publicamente instituído e dotado de personalidade jurídica, que – no contexto da respetiva envolvente de mercado e mais latamente político-social – leva a cabo o exercício de uma atividade empresarial própria, separada da atividade pessoal dos membros e titulares dos órgãos sociais, num quadro patrimonial também próprio [cvii] . Compõe-se de uma superstrutura formal, social e orgânica e de uma infraestrutura patrimonial eempresarial (envolvendo também trabalhadores), encabeçada pelo órgão de administração, que faz a ponte entre as duas esferas. Sendo dotado de personalidade jurídica, o CAP é provido de órgãos sociais, titular do seu próprio património e da empresa, atua no tráfico jurídico-negocial e estabelece relações com os membros e os titulares dos órgãos sociais que compõem a respetiva superstrutura.

Na superstrutura corporativa, além da firma social (sob a qual a atividade empresarial é desenvolvida) e outros elementos de índole formal (sede, capital social, etc.) que formam os requisitos constitutivos da organização, encontramos os órgãos sociais – coletividade dos sócios, órgão de administração e, pelo menos nas SA, órgão de fiscalização – e os membros do CAP, fundadores, aderentes e/ou sucessores, já que o CAP societário é uma organização produtiva com membros (variáveis), que o integram numa dupla qualidade: a título individual e enquanto titulares do órgão de base, a coletividade social.

Na infraestrutura, podemos encontrar: a empresa, organização produtiva de mercado destacável da respetiva estrutura societária, transacionável autonomamente, embora o trespasse possa revelar-se especialmente complexo e difícil e envolver perda de elementos e valor; um conjunto de créditos e débitos resultantes da exploração empresarial, contingentes, mas que podem apresentar valores relativamente estáveis num horizonte de longo prazo; eventuais ativos não afetos à atividade empresarial; e outro passivo, mormente passivo financeiro remunerado.

A atividade empresarial é – sob a firma social – exercida, superiormente, pelo órgão de administração do CAP, que, em regra se ocupa essencialmente da respetiva gestão estratégica, sendo a atividade operacional levada a cabo, sob a sua direção, por uma estrutura de colaboradores mais ou menos extensa e complexa, de configuração variável, mas envolvendo tipicamente o concurso de trabalhadores subordinados, com o auxílio de uma estrutura de meios mais ou menos estável e importante. Porém, estando em causa uma organização produtiva de mercado – desenvolvendo-se a atividade em ambiente de mercado, competitivo, sujeita à lei da oferta e da procura –, assume especial relevo a conseguida e concorrencialmente sustentável implantação nos mercados relevantes para a atividade em apreço (posição de mercado favorável face aos destinatários dos bens ou serviços, fornecedores, financiadores, etc.), com a correspondente estrutura de suporte: marcas, redes e canais de distribuição, local de funcionamento, que, além de elemento logístico, pode ter um significado referencial para o mercado, etc. [cviii]

Tratando-se de uma organização produtiva, tendente a criar valor (ou a autovalorizar-se) em benefício (último) dos sócios, detém tipicamente, enquanto tal, i.e, enquanto organismo vivo e atuante (going concern), certo valor patrimonial, que, no essencial, lhe é conferido pela capacidade de gerar – através da respetiva empresa, explorando, de forma dinâmica e mais ou menos criativa, as oportunidades e potencialidades de negócio que os mercados relevantes estão em condições de lhe proporcionar, num arco temporal de longo prazo, tendencialmente ilimitado –, de forma concorrencialmente sustentável, um excedente monetário suscetível de apropriação pelos respetivos sócios. Valor esse que, uma vez acrescentado do valor venal dos ativos não afetos à exploração e deduzido do passivo não englobado no cálculo previsional deste excedente, representa aquilo que a sociedade, com a sua substância económico-patrimonial, vale para os sócios.

b) Controlo e tráfico de participações de controlo

24. Ainda no plano da superstrutura social ou corporativa, as SpQ e SA são estruturas de poder censitário: via de regra, detêm o respetivo poder de domínio interno (domínio corporativo) os membros titulares de quotas ou ações conferentes de mais de 50% dos votos, contando-se um voto por cada cêntimo de capital ou por cada ação (unidade elementar de capital) (arts. 250.1 e 384.1 do CSC). Em geral, este poder de domínio – exercido no quadro do órgão de base da sociedade, a coletividade social – compreende, designadamente: i) o poder de fazer aprovar a designação (em geral) e destituição dos titulares dos demais órgãos sociais e, nomeadamente, tratando-se de pessoas singulares, o poder de se fazer eleger como titular do órgão de administração, que detém a gestão do CAP, incluindo o poder de gerir e dispor da respetiva empresa e do seu património [cix] , e de se conservar no cargo; ii) o poder de fazer aprovar as contas dos exercícios sociais (arts. 65 e ss., 263, 451 e 376); iii) o poder de definir a remuneração dos cargos sociais (arts. 255, 399 e 422-A); iv) dentro dos limites dos arts. 217.1 e 294.1, o poder de decidir acerca da distribuição dos resultados apurados nas contas anuais; v) se a transmissibilidade das quotas ou ações estiver dependente do consentimento da sociedade [cfr. os arts. 228.2 e 229 e o art. 328.2 a)], o poder de filtrar as entradas de novos sócios, salvaguardando a homogeneidade da coletividade social ou do grupo de controlo; vi) nas SpQ, o poder de determinar a gestão que é levada a cabo pelos gerentes (art. 259); etc. Se este domínio for qualificado, é suscetível de compreender, ainda: i) um poder quase absoluto quanto à política de dividendos (mesmos arts. 217.1 e 294.1); ii) o poder de conformação da superstrutura corporativa, fazendo aprovar a alteração do tipo social, a redução e o aumento do capital, com ou sem supressão do direito de subscrição preferencial de novas quotas e ações, e outras modificações dos estatutos (arts. 265 e s., 386.3/4 e 460); iii) o poder de fazer aprovar a integração do CAP num outro, mediante fusão ou contrato (arts. 100 e ss., 265, 386.3/4 e 496) e de o desdobrar ou desmembrar (arts. 118 e ss.); iv) o poder de fazer aprovar dissolução e de definir o destino da respetiva empresa (arts. 141.1b), 265 e 386.3/4, e arts. 148 e 152); etc.

25. Este poder de domínio tem um valor de mercado próprio: transacionar quotas e ações que conferem uma participação simples, ainda que dotada de um poder de influência significativa, não é vista pelo mercado da mesma maneira que a transação de participações de domínio ou de controlo. E a diferença não é meramente quantitativa, mas qualitativa: o domínio da sociedade (CAP), mormente o qualificado, ainda que sujeito a alguns limites, designadamente porque se trata de uma organização de fim comum – sujeita aos princípios da paridade de tratamento, da lealdade e da proporcionalidade, que coenvolvem também um princípio de salvaguarda dos interesses dos minoritários ou tutela das minorias – e na qual convergem diversas categorias de interesses, como o dos credores e dos trabalhadores, é qualitativamente diverso de um simples poder de influência, ainda que significativa. Daí que o existente tráfico do controlo societário tenha, em geral, associado um maior valor, comummente designado prémio de controlo, e que as participações minoritárias se transacionem correntemente com descontos de minoria. Na França, por ex., em que a compra e venda de ações é, em geral, um negócio jurídico civil, a jurisprudência, com o apoio da doutrina, qualifica a compra e venda de lotes de controlo como ato de comércio, sujeito a um regime especial (não escrito) [cx] .

26. Na transmissão global, uno actu, das quotas e ações, está em causa também este poder de domínio corporativo, agora sem limites internos porque não há interesses minoritários a salvaguardar, que a titularidade agregada das participações proporciona. Mas há mais que isso. O que as partes no contrato pretendem tipicamente transacionar é, na sua totalidade, o próprio organismo económico-produtivo de membros variáveis (CAP) que a sociedade, com a respetiva empresa e o restante património, constitui. Noutros termos, aquilo que elas querem tipicamente passar da esfera jurídica dos alienantes para a dos adquirentes, investindo estes no poder de domínio corporativo «absoluto» que a titularidade agregada das participações proporciona, é a organização produtiva no seu todo, sem os membros existentes, dado que o seu lugar vai ser ocupado pelos adquirentes. Ao comprador pode só interessar a empresa, ou até só determinado elemento da empresa (certo ativo ou equipa tecnológicos, certa marca ou posição de mercado, certa licença como no AcSTJ de 11.03.2010, etc.); preferindo, designadamente, uma aquisição sem o passivo social. Mas, na falta de uma ressalva quanto a este, quanto a eventuais ativos, mormente não afetos à exploração, etc., o objeto do negócio é formado pelo todo.

Diferentemente do que sucede nas operações de tráfico do domínio não absoluto, mesmo sendo este qualificado, o adquirente já não tem que se preocupar com a existência de eventuais direitos especiais ou categorias especiais de ações, com limites legais à alteração dos estatutos destinados a proteger os sócios (minoritários), com a índole e os interesses dos sócios minoritários, que não existem, etc. É suposto as quotas e as ações adquiridas estarem livres de ónus ou encargos (cfr. a seguir), mas outros aspetos relativos às participações sociais são irrelevantes.

c) Legitimidade para dispor e transmissão com reserva de propriedade

27 . No existente tráfico jurídico-negocial, são correntes as cláusulas pelas quais os vendedores declaram ter plena legitimidade para dispor das quotas ou ações e declaram ou garantem que sobre elas não incide qualquer vínculo ou oneração, sendo a alienação das mesmas livre de ónus ou encargos; e, por vezes, sendo o pagamento do preço diferido, a alienação dá-se com reserva de propriedade até ao integral pagamento. As cláusulas deste segundo tipo confirmam que o quid de referência do negócio é o próprio CAP societário-empresarial no seu todo, com o inerente poder de domínio corporativo. As do primeiro tipo requerem análise mais fina. Em ambos os casos, a situação só será plenamente compreendida quando analisarmos o problema da atribuição jurídica (título III). Importa, no entanto, aludir-lhes brevemente, começando por aquelas.

As cláusulas de reserva de propriedade respeitam às quotas ou ações, que permanecem na titularidade dos alienantes, até ao pagamento do preço. Porém, a vontade dos contratantes é a da imediata «entrega» da sociedade (CAP societário-empresarial) ao adquirente, assumindo este o respetivo poder de domínio corporativo. Como se assegura juridicamente este resultado? Dificilmente, segundo as dominantes doutrinas monistas da participação social, que entendem as quotas como quotas sociais - participações sociais em sentido objetivo [cxi] , posições de sócio objetivamente delimitadas e com determinada medida de direitos e vinculações - e entendimento semelhante vale para as ações, vendo-as como as participações sociais características das SA e SCA. Com efeito, nesta construção, os vendedores mantêm a respetiva qualidade de sócios; sendo difícil conceber a atribuição ao comprador do correspondente poder de domínio corporativo. O que, aparentemente, tem prejudicado o recurso a este esquema negocial, embora a menor utilização do mesmo também tenha razões mais substanciais: em operações deste tipo, mesmo havendo perturbações no pagamento do preço, via de regra, os vendedores não estarão interessados em recuperar o pleno domínio da sociedade alienada.

Daí que se proponha uma diferente construção jurídica, não indireta e artificialmente restritiva da autonomia privada e que tem, ainda, outras virtualidades positivas, como se verá mais adiante. Na sua versão mais próxima dos textos legais, ela pode sumariar-se como se segue.

28. No CSC, o legislador refere-se frequentemente às quotas e ações e aos direitos e obrigações inerentes às mesmas (cfr., por ex., os arts. 219.6, 222.1, 303.1 e 324.1). Estes direitos e obrigações são aqueles que integram a posição de sócio. Nesta medida, pode falar-se em quotas [quotas de capital – cfr. os arts. 197.1 e 199a)] e ações (frações do capital – cfr. o art. 271) com a inerente qualidade de sócio. Dando ao princípio da divisão do capital, em quotas ou ações (arts. 197.1 e 271), um sentido substancial, tais quotas e ações corresponderão a frações ou quotas-partes do valor da sociedade: nominal, contabilístico, real ou de capitalização bolsista; conferindo a respetiva titularidade ao seu beneficiário uma fração ou quota-parte deste valor. O todo formado pelas quotas e ações com a correspondente qualidade de sócio constitui uma participação social, em sentido objetivo; e, integrando a posição de sócio um direito geral a uma quota-parte desse valor (que se desdobra num direito ao lucro e à quota de liquidação e que se concretiza num direito a quinhoar noutras distribuições de valor que venham a ocorrer, no direito a receber o valor da participação em caso de exoneração, etc.), o conteúdo da posição jurídica de quotista ou acionista (titular de uma fração do valor da sociedade) encontra-se absorvido por essa posição de sócio; havendo um natural princípio de coincidência da titularidade das quotas e ações e da qualidade de sócio. Mas esta coincidência é meramente tendencial: a «inerência» e o princípio são relativos. Assim, quando a sociedade adquire quotas ou ações próprias, a correspondente qualidade de sócio suspende-se [arts. 220.4 e 324.1a)]; se o seu titular as aliena, enquanto a transmissão não se tornar eficaz em relação à sociedade a qualidade de sócio permanece no alienante, apesar de a titularidade das quotas ou ações passar para o adquirente; se um sócio de uma SpQ é excluído judicialmente, perdendo a qualidade de sócio, ainda conserva durante algum tempo a titularidade da quota (art. 242); se, por força do regime de bens do casamento, a quota ou as ações adquiridas por um sócio integrarem a comunhão conjugal, a qualidade de sócio não se comunica ao seu cônjuge (art. 8.2); etc.

Vendo por este prisma a situação em apreço, verifica-se também, em virtude da compra e venda do CAP com reserva de propriedade, uma dissociação temporária entre a titularidade das quotas e ações, que permanecem na esfera jurídica dos vendedores, e a posição de sócio, em que ficam investidos os compradores. Uma vez pago o preço, extingue-se a reserva e a participação social dos adquirentes readquire a sua condição normal de quota ou ação com a «inerente» qualidade de sócio.

29. Consideremos agora o problema da legitimidade. Se, no todo ou em parte, as quotas ou ações integrarem a comunhão conjugal de algum dos sócios alienantes [cxii] , apesar da não comunicação da qualidade de sócio, o poder de dispor das mesmas pertence a ambos os cônjuges; ou melhor, o sócio que tem esta qualidade com base numa quota comum, ou em ações comuns, tem uma legitimidade imperfeita ou incompleta, carecendo do consentimento do seu cônjuge para dispor das mesmas [cxiii] . Pode também suceder que um sócio tenha alienado as respetivas quota(s) ou ações, mantendo a correspondente qualidade de sócio (por ex., no caso das ações tituladas, mantendo-se registado na sociedade como titular das mesmas), ou as tenha onerado. No primeiro caso, quem tem legitimidade para alienar é o titular das mesmas; não o sócio. No segundo caso, pela cláusula referida, é obrigado a desonerá-las.

Como se assinalou, para a plena compreensão deste tema, importa, no entanto, analisar o tema da atribuição (ou afetação) jurídica do CAP. O que se faz em seguida.

III

Atribuição jurídica da organização. Natureza das quotas e ações

Vejamos agora se o CAP societário sob a forma de uma SpQ ou SA pode ser objeto de atribuição jurídica e, portanto, se, na respetiva compra e venda, se aliena o mesmo – ou um direito sobre ele – contra um preço. Para o efeito, começa-se por uma pequena «história» ilustrativa.

a) Uma história ilustrativa

30. Considerando uma atual sociedade anónima, constituída por 5 sócios, dois dos quais casados sob o regime da comunhão de adquiridos [cxiv] , suponha-se que, originariamente, o negócio foi montado e desenvolvido pelo atual sócio A, já na constância do casamento. A dado passo, o A constituiu um EIRL, para o qual passou a respetiva empresa com o património de exploração associado. Quando em 1996 o legislador admitiu a SuQ, A operou a transformação simplificada do EIRL nesta SuQ. Anos depois, com o consentimento do cônjuge, A resolveu dar parte no negócio a um filho, o atual sócio B, operando uma transformação simplificada da SuQ em SpQ, mediante divisão da sua «participação social» em duas quotas e cessão de uma delas ao filho. Passado algum tempo, a SpQ incorporou uma outra SpQ, que desenvolvia uma atividade complementar, composta pelos atuais sócios C, D e E, e transformou-se em SA. Temos, assim, a aludida SA composta pelos 5 sócios. Note-se, contudo, que a forma jurídica é, para o que aqui interessa, indiferente: em vez da transformação em SA, a sociedade poderia ter-se mantido como SpQ.

31. Em termos jurídicos, inicialmente, o negócio (business, Handeslgeschäft), estabelecimento ou empresa (em sentido objetivo) foi constituído pelo A, no exercício da respetiva liberdade de empresa (art. 61.1 da CRP); ficando ele, por isso, dono do mesmo, enquanto fruto ou resultado do seu trabalho e investimento, e assumindo a qualidade de empresário mercantil (comerciante) correspondente ao exercício profissional da respetiva atividade empresarial [cxv] .

Por força do regime de bens do casamento - regime este atinente ao património, não à atividade produtiva [acerca desta, proclama-se a liberdade profissional de cada cônjuge (art. 1677-D do CC)] -, tendo na base uma espécie de presunção de que a empresa foi constituída com recursos do casal e a ideia de que, em princípio, as aquisições realizadas por um cônjuge na constância do casamento pertencem à «esfera» comum do casal, não à esfera pessoal do agente, a empresa (ou estabelecimento) integra a comunhão conjugal (arts. 1724 e s. do CC); isto é, embora seja fruto direto da atividade do A, no plano civil, jurídico-patrimonial, ela é da titularidade em comum do casal (acerca da legitimidade para alienar, cfr. o art. 1682-A.1b); na partilha, cfr. o art. 1731).

Todavia, sendo ela o resultado do exercício da liberdade económico-produtiva e o instrumento de «trabalho» do A (a base da sua esfera de ação profissional), este tem o direito de a gerir de forma autónoma, sem interferência do cônjuge,e só ele tem a qualidade de empresário mercantil (comerciante), com os direitos e vinculações que integram o respetivo estatuto. Para o direito mercantil, não é indiferente a pertença da empresa ao casal, dado o regime de responsabilidade por dívidas (cfr. os arts. 1691.1d) e 1695 do CC [cxvi] ); mas, com base na titularidade comum da mesma, quem exerce, de direito e de facto, o domínio efetivo da mesma é apenas o A (salvo se este prescindir da sua autonomia profissional) [cxvii] .

O CAP informalexistente, reconhecido como tal pelo mercado, tem como membro apenas o A, sendo a atividade exercida em seu nome e sob sua responsabilidade, embora com (natural) repercussão na esfera do casal (aumento ou diminuição do valor do património comum consoante o andamento do negócio; responsabilidade por dívidas, presuntivamente contraídas no interesse comum do casal – pais e filhos se for o caso).

32. Com o EIRL, dá-se uma autonomização ou separação, jurídica e formal, na esfera jurídica do A e do casal, da atividade profissional do A, passando esta a ser exercida num quadro patrimonial autónomo. A empresa passa ser dotada de uma forma jurídica própria, que a destaca formal e juridicamente da esfera jurídica geral do titular, isto é, passa a haver um CAP formal e publicamente instituído, que separa juridicamente a atividade produtiva em causa e lhe dá um enquadramento patrimonial específico. O EIRL é isso: um centro de atividade económico-produtiva, legalmente típico, unipessoal, formal e publicamente instituído, dotado de uma firma, de uma sede, etc., sem personalidade jurídica, mas patrimonialmente autónomo, sendo as situações jurídicas que compõem o respetivo património formalmente encabeçadas por quem for, em cada momento, titular do mesmo [cxviii] .

Tal como a empresa originária, o EIRL, com a respetiva substância económico-produtiva, é obra do seu fundador e eventuais sucessores, o resultado da sua atividade empresarial; no caso, do A. Trata-se, portanto, de um novo e original bem jurídico, uma espécie de «coisa produtiva», como a empresa stricto sensu, com uma essência imaterial e um lastro corpóreo, mas, diferentemente desta, jurídico-formalmente delimitado; e o A é, segundo a respetiva lei mercantil (DL 248/86), o seu titular e administrador, detendo o domínio e o poder de dispor dele.

Todavia, por força do regime de bens do casamento, ele integra a comunhão conjugal. Embora – enquanto obra sua e instrumento de exercício da respetiva liberdade empresarial – o domínio efetivo seja do A, sem interferências externas não consentidas (o EIRL é uma técnica de separação da respetiva atividade empresarial e o seu espaço de liberdade económico-produtiva), apesar de este ser o seu único membro e de, em caso de partilha da comunhão conjugal, o mesmo A ter preferência na sua adjudicação (cfr. o art. 1731 CC), externamente, é da titularidade em comum do A e do respetivo cônjuge; o que parece determinar a aplicação da regra de legitimidade dispositiva do art. 1682-A.1b) do CC, que também vale para o estabelecimento «nu».

Considerando-se as situações jurídico-patrimoniais que integram o respetivo património formalmente encabeçadas por quem dele for titular (espécie de «inerência») – ou por ele e o respetivo cônjuge, em comum se for o caso –, sendo o EIRL transmitido, estas passam para o adquirente. Porém, como ele não é dotado de personalidade jurídica, há um fenómeno translativo-aquisitivo, que (apesar daquela inerência) pode sofrer entraves decorrentes do regime de circulação de cada uma dessas situações. Mesmo que se entenda - em virtude de se tratar de um CAP cuja atividade é exercida sob firma própria e é dotado de autonomia patrimonial - que, este regime, ao menos em parte, não será de aplicar, como acontece com a generalidade das posições contratuais, haverá sempre dificuldades e possíveis discussões jurídicas. Daí, o interesse no passo seguinte: a sua transformação numa SuQ.

33. Quando da introdução da SuQ em Portugal (com caráter geral), A decidiu transformar o EIRL numa tal sociedade, mediante simples declaração escrita, como previsto no art. 270-A.5 do CSC. Trata-se de uma transformação simplificada, tornada possível e facilitada pelo facto de o EIRL já ser um CAP patrimonialmente autónomo. Na verdade, o CAPmuda de forma jurídica e passa a ser dotado de personalidade jurídica, o que lhe permite uma maior agilidade e autonomia na sua atuação no tráfico jurídico, mas, em termos substanciais, é o mesmo: a sua identidade material não se altera.

A operação em apreço insere-se, ainda, no exercício da liberdade de empresa do A (sem interferência do cônjuge): a SuQ, com a respetiva substância económico-produtiva e patrimonial, é um produto ou resultado do exercício dessa liberdade. Daí, a questão: ao transmudar-se num CAP societário – unipessoal como o anterior, mas personificado – o CAP que já vinha de trás, apesar de ter sofrido apenas uma transformação (simplificada), porque passou a ser dotado de personalidade jurídica (constituindo um sujeito de direito), deixou de ser um bem jurídico? O A (ou o casal) perdeu a sua titularidade? O salto qualitativo para a subjetividade jurídica fez-lhe perder essa condição jurídica anterior?

A tese que proponho é a de que não: a subjetividade jurídica é apenas um mais – uma nova qualidade – que acresce ao que já existia, tornando o agora CAP societário mais ágil no tráfico jurídico negocial em que participa e também um objeto jurídico muito mais fácil de transacionar: basta um negócio escrito de disposição do mesmo (cfr. o art. 228.1, aplicável por força do art. 270-G do CSC), sem os entraves assinalados a respeito do EIRL, porque a empresa e as situações jurídicas que integram o respetivo património não mudam de titular.

E não se afigura haver nenhum obstáculo a que uma pessoa jurídica meramente instrumental, como é a pessoa jurídica societária em análise [cxix] , tenha um dono, alguém titular ou «proprietário» da mesma: dentro dos limites da lei, senhor da sua administração, conformação e destino.

Legalmente, teremos, então, um CAP societário unipessoal, integrado pelo A, como seu membro único (cfr. o art. 8.2 do CSC); e, por força do regime de bens do casamento, ele é da titularidade em comum do A e do respetivo cônjuge (integra a comunhão conjugal). Mas, como no caso do EIRL, trata-se de uma titularidade meramente externa e o seu conteúdo dominial encontra-se quase todo absorvido pela posição que o A tem enquanto membro único do mesmo .

34. Quando o A opera uma transformação da SuQ numa SpQ – mais uma vez, através de um procedimento simplificado, agora de divisão da existente posição de domínio unitária e «partilha» da socialidade com B (art. 270-D do CSC), criando duas quotas com a inerente qualidade de sócio –, no fundo, está, por um lado, a mudar a titularidade ou «propriedade» que previamente existia sobre a SuQ numa contitularidade ou «compropriedade» com duas quotas ideais, uma do casal e outra de B. Por outro lado, está a mudar o capital da sociedade, até aí indiviso (apesar de a lei falar em «quota»), que passa a estar dividido em duas quotas. E muda também a composição pessoal da superstrutura do CAP societário, que passa a integrar o A e o B, ou seja, dois membros: o órgão de base da sociedade passa a ser uma coletividade social. Isto permite responder a uma questão anterior (supra, I), que agora nos interessa diretamente: o que são quotas?

A resposta mais intuitiva é: pertencendo, em última análise, o valor líquido da sociedade aos sócios, são quotas de capital ou quotas-valores, representando uma determinada fração desse valor líquido ou residual da sociedade (nominal contabilístico e real), a que é «inerente» a qualidade de sócio, com o estatuto jurídico correspondente (posição jurídica de sócio, status socii) (cfr. supra, n.º 27). Logo, participações sociais em sentido objetivo, com esta configuração.

Mas, em face do que antecede, pode ir-se mais longe: sendo a própria SpQ (CAP personificado instrumental), como a SuQ e o EIRL, um bem jurídico, objeto de atribuição jurídica, as quotas são quotas ideais de contitularidade ou compropriedade da mesma. Com a especificidade de que o respetivo conteúdo dominial se encontra quase todo absorvido pelo conteúdo das posições de sócio.

Como nos casos anteriores, a quota do A é, na verdade, por força do regime de bens do casamento, da titularidade em comum dele e do seu cônjuge. Mas, com base nela, apenas ele é sócio (art. 8.2 do CSC).

A ulterior incorporação de outra sociedade pela SpQ reforçou o seu património e o seu negócio ou empresa e provocou o aumento das quotas e dos sócios para 5, mas não alterou substancialmente as coisas. E o mesmo sucede com a posterior transformação em SA. Apenas, em vez das quotas preexistentes, passa a haver quotas ou frações de contitularidade ou compropriedade uniformes e de montante (tipicamente) reduzido, normalmente com o VN de 1 € cada uma: as ações.

b) Dogmática jurídica

35. Decorre do exposto, sumariamente, o seguinte. UmaSpQ ou uma SA (ativada) é um CAP personificado, legalmente típico, formal e publicamente instituído, de índole capitalista, dotado de uma superstrutura formal, orgânica e corporativa - que, designadamente, integra os respetivos fundadores, aderentes e/ou sucessores como membros, a título individual e na qualidade de titulares do respetivo órgão de base - e de uma infraestrutura económico-patrimonial, tipicamente empresarial. O seu valor reside nuclearmente na capacidade da respetiva empresa ou negócio para, num arco temporal de longo prazo, tendencialmente indefinido no comum das situações, gerar de forma sustentável um excedente monetário suscetível de apropriação pelos sócios; sendo o método teórico mais acreditado de o determinar o dos fluxos de caixa descontados (DCF). A tal valor de exploração ou económico acresce o valor (tipicamente o valor venal) de eventuais ativos não afetos e, para se apurar o que a sociedade vale para os sócios, ao mesmo deve ser deduzido o passivo financeiro (não o passivo de exploração que é englobado na determinação daquele excedente monetário) [cxx] .

Apesar de se tratar de um CAP personificado, sendo o resultado da atividade empreendedora e do investimento dos respetivos fundadores, aderentes e/ou sucessores [cxxi] , e de quem eles encarregaram de o administrar, e tratando-se de um sujeito de direito meramente instrumental, ele é, simultaneamente, qua tale, um objeto jurídico (res privata): objeto do tráfico jurídico-negocial e objeto de atribuição jurídica. Ou seja, os fundadores-investidores da sociedade em capital de risco são, nos termos gerais, os respetivos (con) domini iniciais (posição jurídica externa, de direito comum); pelo menos o seu valor líquido ou residual pertence-lhes. E a posição de contitular estende-se aos futuros aderentes e respetivos sucessores.

Todavia, por um lado, esta titularidade apresenta especificidades por incidir sobre um CAP com membros (socialidade): os fundadores, aderentes e sucessores, em geral, são também sócios (posição jurídica interna, de direito societário). O efetivo poder ou direito de domínio é inerente à qualidade de sócio [cxxii] , tem uma índole corporativa e absorve o essencial do conteúdo que, nos termos gerais, a posição de contitular deveria ter. Por outro lado, as especificidades ainda se adensam por se se tratar de um CAP personificado (sujeito-objeto), com identidade, órgãos e vida próprios.

Na verdade, este efetivo poder de domínio corporativo – que é um poder interno, intra-corporativo – apresenta-se, mais concretamente, repartido por dois órgãos: a coletividade dos sócios (ou sócio único) e o órgão de administração. O primeiro é a sede fundamental do poder, na medida em que detém o poder de eleger e destituir os membros dos outros órgãos, o poder de conformação (estatutária) do CAP e o poder de decidir acerca do seu destino e do seu valor. A supervisão da gestão pode caber a membros não executivos do órgão de administração e cabe, em última análise, à coletividade dos sócios, a quem o órgão de administração presta contas. A fiscalização do CAP compete, de forma difusa, aos sócios e, havendo-o, ao órgão de fiscalização.

Além disso, a titularidade assume também contornos especiais quando é plural, como em regra acontece. É uma titularidade fracionária: o CAP divide-se idealmente em quotas ou frações e pertence aos fundadores, aderentes e sucessores pro quota, em função das respetivas quotas ou ações; havendo uma pluralidade de sócios, o respetivo órgão de base tem um funcionamento corporativo, dominado pela regra da maioria.

Resulta daqui que os fundadores e aderentes da sociedade e seus sucessores têm, em geral, uma dupla qualidade: de titulares/contitulares do CAP (titularidade externa, de direito patrimonial geral, incluindo familiar e sucessório) e de sócios. A posição jurídica de (cont)itular do CAP é, de certo modo, vazia, porque o seu conteúdo é absorvido pela posição de sócio, com o correspondente conteúdo ativo e passivo (breviter, direitos e vinculações sociais). Todavia: i) ela manifesta-se nalguns contextos, como na transmissão das quotas e ações e na legitimidade para dispor destas; ii) é a única que existe quando a sociedade adquire quotas ou ações próprias, enquanto a situação durar (a sociedade não se torna sócia de si própria, membro da respetiva coletividade social e controladora de si mesma); e iii) pode ser detida em comum pelos cônjuges.

Pode haver uma dissociação da qualidade de dominus (ou condominus) do CAP e da qualidade de sócio; total ou parcial, originária ou superveniente (comunhão conjugal, transmissão de quotas/ações ineficaz em relação à sociedade, quotas/ações próprias da sociedade). No caso das quotas e ações inseridas em comunhão conjugal, há uma titularidade em comum das mesmas – a que corresponde, em princípio, uma legitimidade para dispor conjunta – mas, no comum das situações, apenas um dos cônjuges tem a qualidade de sócio (art. 8.2). Ocorrendo uma transmissão de quotas ou ações entre vivos ineficaz em relação à sociedade - ou seja, sem que se cumpram as condições jussocietárias para a aquisição da correspondente qualidade de sócio –, há alguém que é titular da quota ou das ações (contitular ou titular de uma fração do CAP), o adquirente, mas a qualidade de sócio mantém-se no alienante. Nas transmissões por morte, as quotas e ações integram a herança (a titularidade passa para os sucessores com a aceitação desta), mas a qualidade de sócio não é adquirida automaticamente: é necessário que se cumpram os modos de aquisição do direito societário.

36. Em termos substanciais, na sua aceção tradicional (monista), as ações são posições jurídicas elementares de membro de uma SA, objetivamente delimitadas – correspondentes a cada uma das frações em que o capital estatutário ou nominal se divide –, participações sociais em sentido objetivo, com um conteúdo ativo patrimonial e corporativo, através das quais, devido aos direitos patrimoniais que as compõem (incluindo um direito geral e abstrato a uma fração do valor líquido da sociedade, que se desdobra no direito ao lucro, no direito à quota de liquidação, no direito a receber uma quota parte do capital exuberante distribuído, no direito à liquidação da ação em caso de exoneração, amortização, etc.), se projeta na esfera jurídica do titular uma fração ou quota-parte do valor líquido da sociedade . O seu valor é, portanto, reflexo: depende do valor da sociedade. Noutros termos, as ações são «bens de segundo grau» (Ascarelli).

Estando em causa apenas ações ordinárias (não havendo categorias especiais de ações), cada ação projeta na esfera de cada acionista um valor uniforme, correspondente a uma fração do valor líquido da sociedade. Porém, sendo a SA uma sociedade organizada corporativamente, dominada pelo princípio maioritário e cujos titulares do órgão de administração (e fiscalização) são em regra eleitos por maioria, do ponto de vista do tráfico jurídico, o valor de um lote de ações que confira o poder de controlo tende a ser superior ao valor legal agregado destas (inclui um prémio de controlo) e, correspondentemente, o valor unitário de cada ação isolada tende a ser menor que o respetivo valor legal (tem inerente um desconto de minoria). O mercado reconhece maior valor à posição de quem tem o poder de domínio da sociedade, determinando a sua gestão - que inclui a gestão da empresa social e do respetivo património, empresarial e não empresarial - e, em maior ou menor medida, o destino do resultado económico criado e o próprio destino da mesma.

A regulação estatutária pode ser também importante para o valor em causa, mormente quando, a par das ações ordinárias se preveem diferentes categorias de ações, em função do seu conteúdo, patrimonial e/ou corporativo. Podem, ainda, existir vínculos estatutários gerais, como preferências ou sujeição ao consentimento da sociedade na alienação, sujeição a amortização verificados determinados factos, etc., igualmente com impacto nesse valor.

Adicionalmente, tal posição jurídica acionária é suscetível de mobiliarização - mediante representação cartular ou escritural -, é transacionável e sobre ela podem incidir adicionais vínculos: penhor, penhora, usufruto, etc. Com ressalva deste aspeto da mobiliarização, o que antecede vale, mutatis mutandis, para as quotas.

37. Numa aceção distinta (dualista), mas próxima da que antecede, as ações são unidades de valor, isto é, cada ação constitui uma fração do valor líquido da sociedade - atribuindo a lei, abstratamente, a quem dela for titular esta fração de valor (princípio da divisão do capital em ações, num sentido substancial). Por conseguinte, o seu valor agregado coincide ou confunde-se com o próprio valor (líquido ou residual) da sociedade. Unitariamente, são uma quota-parte elementar do mesmo e, na falta de categorias especiais, uma quota-parte uniforme. A ideia fundamental é a de que a sociedade é uma entidade jurídico-económica instrumental e «privada», cujo valor líquido pertence aos titulares das ações, investidores em capital de risco. Tratando-se de um CAP personificado, aquilo que é objeto de atribuição jurídica aos respetivos fundadores-investidores, aderentes e sucessores é, não a própria sociedade com a respetiva empresa e o respetivo património, em espécie, mas o seu valor líquido ou residual. Noutros termos, há uma atribuição jurídica da mesma, mas apenas em valor.

A cada ação – unidade de valor – é «inerente» a socialidade ou qualidade de sócio (membro da sociedade), com o conjunto de direitos e deveres que lhe são próprios (cfr. supra, n.º 28). O conjunto formado pela ação - unidade de valor - e por esta «inerente» qualidade de sócio constitui a participação social em sentido objetivo própria das SA; ou, noutros termos, as ações, com a inerente qualidade de sócio, são unidades de valor e de participação social. Esta participação social desdobra-se, assim, em duas componentes: a unidade de valor e a correspondente qualidade de sócio. Via de regra, encontram-se reunidas na titularidade de uma mesma pessoa. Mas, dada a diferente natureza das mesmas, há casos em que tal não sucede, como se explicita a seguir (n.º 38).

Diferentemente do que acontece com a conceção anterior, nesta outra, não são os direitos patrimoniais integrantes da posição de sócio que, primariamente, projetam na esfera jurídica de cada acionista o valor da sociedade. Este valor é-lhes atribuído, a montante, diretamente pela lei, enquanto acionistas (titulares de ações unidades de valor), servindo os direitos patrimoniais integrantes da posição de sócio para dar a essa atribuição jurídica uma expressão mais real ou «concreta».

De resto, valem as considerações feitas a respeito da conceção anterior; e o discurso é extensivo às quotas, com as devidas adaptações.

38. Atendendo a que tanto a SpQ como a SA, com a respetiva substância (económica e patrimonial), constituem um CAP personificado, mas permitindo a sua essência económico-patrimonial e instrumental qualificá-lo, simultaneamente, como objeto jurídico [cxxiii] , isto é, como um objeto do tráfico jurídico e, inclusive, como objeto de afetação ou atribuição jurídica, pode ir-se mais longe na determinação da natureza jurídica das quotas e ações. Na verdade, sob este ponto de vista, elas surgem como parcelas ou quotas ideais da própria sociedade-empresa (CAP societário empresarial) – ou quotas ideais de contitularidade ou «compropriedade» [cxxiv] da mesma – enquanto objeto jurídico. Noutros termos, o verdadeiro objeto de atribuição jurídica é a sociedade na sua totalidade – estrutura jurídica personificada dotada de certa substância económica e patrimonial. Há uma atribuição jurídica da mesma por quotas ou ações.

À titularidade de uma ação ou quota ideal da sociedade (ou quota ideal de contitularidade ou «compropriedade» da mesma) é, em princípio, inerente a qualidade de sócio ou membro da respetiva superstrutura corporativa; e, se as quotas ou ações nas mãos de alguém (ou de um grupo concertado) representarem mais de 50% do capital, em princípio conferem-lhe, através desta posição de membro, o poder de domínio corporativo. Transacionar a totalidade das quotas ou ações, com a inerente qualidade de sócio, uno actu, e transacionar o CAP societário como um todo, de que elas são frações ou quotas ideais, é, portanto, a mesma coisa.

Também nesta construção jurídica, as quotas ou ações, participações sociais em sentido objetivo, têm duas componentes: há nela uma fração ou quota ideal da sociedade (com a respetiva substância económico-patrimonial) – ou quota ideal de contitularidade ou compropriedade da mesma – e uma, «inerente», qualidade de sócio. Apesar do caráter dominial da primeira, o seu conteúdo encontra-se praticamente absorvido pela correspondente posição de sócio.

Via de regra, elas formam uma unidade – a participação social, em sentido objetivo. Todavia, sendo a primeira componente exterior à sociedade (incide sobre ela) e exclusivamente patrimonial, a sua aquisição e perda rege-se pelas regras gerais do direito patrimonial privado (incluindo o sucessório e familiar), enquanto o conteúdo e a aquisição e perda da segunda são definidos pelo direito societário. Donde podem resultar situações de (temporária) dissociação, como as assinaladas (quotas e ações próprias, comunhão conjugal, etc.), incluindo a da venda da totalidade das quotas ou ações com reserva de propriedade.

IV

Ulteriores implicações da tese defendida

39. A tese das SpQ e SA, com a respetiva substância económico-patrimonial, como objetos jurídicos tem ulteriores implicações, para além das assinaladas. Assinalam-se duas.

Primeira . Sendo o quid de referência do negócio o CAP societário, com a respetiva empresa e restante património, à compra e venda de participações de controlo – máxime, da totalidade das quotas e ações – aplicam-se, naturalmente, as regras legais da compra e venda de bens onerados e coisas defeituosas, quando o defeito, ónus ou encargo diga respeito ao património social ou à empresa. Ressalva-se apenas que elas se aplicam com as devidas adaptações e «correções» dogmáticas. Entre essas adaptações devidas, encontram-se as decorrentes da especificidade do objeto. Na verdade, tratando-se de uma organização produtivo-reditícia, nuclearmente empresarial, ainda que existam elementos patrimoniais exteriores à empresa (como sucede com eventuais ativos não afetos e o passivo financeiro), as normas devem ser aplicadas tendo presente este dado, adotando uma ótica e uma lógica de análise económica e integrada, e não meramente patrimonial estática e atomística [cxxv] .

É certo que, na prática negocial, continuam a existir garantias patrimoniais, designadamente as relativas a eventual passivo oculto. Mas uma coisa é esta prática negocial, outra são as regras legais que atuam na ausência de regulação das partes. Na interpretação e aplicação destas, deve respeitar-se a especificidade do objeto vendido.

O mesmo vale para a obrigação de não concorrência: estando em causa a transmissão de um CAP societário, com a respetiva empresa, é possível que os alienantes (ou parte deles), tenham dele, em especial no que respeita à empresa, um conhecimento privilegiado, mantenham um certo poder de influência sobre o mesmo, por via do respetivo elemento pessoal, estejam em condições de desviar clientes para negócio concorrente, etc. Sendo este o caso, estando eles em condições de lhe vir a fazer uma concorrência qualificada ou diferencial, não acessível a terceiros, cuja magnitude até pode ser potenciada pelo preço recebido, justifica-se fazer impender sobre os mesmos uma obrigação de não concorrência, de modo a permitir aos adquirentes a fruição da «coisa» comprada.

Segunda : Reconhecendo-se, na prática, a existência de um tráfico jurídico de SpQ e SA – mediante negociação particular, mas também através das ofertas públicas reguladas no CVM –, justifica-se, a seu respeito, uma reinterpretação (diferenciada) do art. 1021 do CC, relativo ao valor da sociedade e ao pleno valor jurídico das participações sociais (quotas e ações) em certas operações societárias (exoneração e exclusão de sócios, amortização e aquisição forçada de quotas e ações por outro motivo, etc.): em vez de se tomar como referência, simplesmente, o valor intrínseco da sociedade aí previsto, a referência deverá ser o seu valor de mercado ou de transação ideal, em sintonia em as Normas Internacionais de Avaliação (IVS) do IVSC, como, em parte, já se faz na Alemanha, apesar do teor «hostil» do correspondente § 738 do BGB [cxxvi] . Pelo menos, é de ponderar tal reinterpretação (atualista).

40. Note-se, ainda, como resulta do texto, que a assinalada perspetiva dualista da participação social em sentido objetivo – distinguindo nela, por um lado, a quota-valor e a ação unidade de valor ou as mesmas como frações ou quotas-ideais de contitularidade da SpQ e SA enquanto objeto jurídico e, por outro lado, a correspondente qualidade de sócio – permite também compreender sem dificuldade (e sem restringir ou entravar legalmente, de forma injustificada, a autonomia privada) fenómenos como: o já assinalado dasquotas e ações inseridas em comunhão conjugal; o da aquisição de quotas e ações próprias; o das cessões de quotas ou transmissões de ações sujeitas ao consentimento da sociedade , após a conclusão do negócio translativo entre as partes, enquanto o consentimento não é dado (ou se este for recusado, mantendo-se o negócio); o da transmissão de quotas e ações por morte, designadamente quando há restrições estatutárias à mesma; etc.; distinguindo sempre entre as regras de direito patrimonial geral (dominial, obrigacional, familiar e sucessório), atinentes à titularidade externa, e as regras de aquisição e perda da qualidade de sócio, problema de direito societário.

Em termos muito gerais, cabe assinalar o que se segue. A participação social apresenta especificidades, nas SpQ e SA. Assim, a par da participação social em sentido subjetivo (posição que tem uma pessoa enquanto sócia ou membro da sociedade) – comum a todas as entidades de caráter associativo privadas, incluindo as sociedades, de direito civil e de direito comercial –, existem as quotas e as ações, frações ou quotas ideais de contitularidade ou «compropriedade» do CAP societário, enquanto objeto jurídico formal e publicamente delimitado (registado) e dotado de personalidade jurídica, às quais é, em princípio, inerente a qualidade de sócio ou membro da organização. A unidade formada pelas quotas ou ações e por esta qualidade de sócio pode designar-se participação social em sentido objetivo. [cxxvii]

Aquilo que comummente circula são as quotas e as ações, via de regra, com a correspondente qualidade de sócio (formando, portanto, uma participação social em sentido objetivo); não a participação social em sentido subjetivo. E é também sobre as ações assim entendidas que incide a representação cartular ou escritural que as faz adquirir a condição jurídica de valores mobiliários, titulados ou escriturais.

As quotas e ações transmitem-se nos termos gerais de direito – direitos reais e direito dos contratos, familiar, sucessório e jusmobiliário. A aquisição e perda da qualidade de sócio é um problema de organização e funcionamento das sociedades; logo, é regulada pelo direito societário, mesmo quando este não tem regras explícitas sobre o assunto, como sucede nas transmissões de quotas por morte do respetivo titular.

Pode, deste modo, haver uma titularidade e uma transmissão das quotas e ações com eficácia em relação à sociedade – isto é, com a correspondente qualidade de sócio – e sem essa eficácia. Faltando tal eficácia social da titularidade ou da transmissão, teremos uma dissociação destas e da qualidade de sócio: titularidade das quotas ou ações (temporariamente) sem tal qualidade (por ex., quotas e ações próprias, transmissão sucessória antes de esta adquirir eficácia social); titularidade das quotas ou ações encabeçada em pessoas diferentes de quem tem essa qualidade (por ex., em caso de cessão de quotas ainda dependente do consentimento da sociedade); titularidade em comum das quotas ou ações, por força do regime de bens do casamento, com a qualidade de sócio encabeçada apenas num dos cônjuges; etc. [cxxviii] . Concebe-se também que – se as quotas ou ações integram a comunhão conjugal e, segundo o direito societário, são livremente transmissíveis entre cônjuges, com eficácia em relação à sociedade –, em qualquer altura, os cônjuges possam, de comum acordo, notificar a sociedade de que, com base nas mesmas, ambos passam a ser sócios (aplicando-se o regime societário da contitularidade) ou passa a ser sócio o cônjuge que o não era antes. E, como já se referiu, nas transmissões contempladas no presente texto, é possível haver a passagem da qualidade de sócio para os compradores de uma sociedade, mantendo os vendedores a titularidade das quotas ou ações, mediante a aposição no contrato de uma cláusula de reserva de propriedade [cxxix] .

O normal e desejável é que estes fenómenos de dissociação não se verifiquem ou perpetuem. Ou seja, quer no interesse do tráfico jurídico, quer no da boa organização e funcionamento das sociedades (fazendo coincidir interesse e poder de influência) e, porventura, da boa ordenação geral do mercado e da «propriedade», importa afirmar um princípio de indissociabilidade. Este comporta, no entanto, significativas exceções.


Anexo

Leitura da figura, considerando tratar-se de uma SA, por ex., com um capital social (ou nominal) de 100 000 €, abstratamente dividido em ações com o VN de 1 € cada uma, e com participações iguais de todos os acionistas. Temos aqui m CAP societário personificado, sob a forma de uma SA,

a) Com uma superstrutura social ou corporativa, constituída por 5 sócios, a título individual, e pelos mesmos na qualidade de titulares do órgão de base, a coletividade social, e por 3 órgãos – esta coletividade, um órgão de administração e outro de fiscalização;

b) E com uma infraestrutura económico-patrimonial, integrando a empresa social, com os respetivos elementos pessoais e patrimoniais, eventuais ativos não afetos à empresa ou negócio e o passivo financeiro remunerado da sociedade.

c) Sendo dotado de personalidade jurídica, o CAP, além dos membros e dos órgãos que integram aquela superstrutura, é titular da respetiva empresa e do seu património, de que pode dispor.

d) Os sócios B, D e E são titulares, cada um, de 20 000 ações – quotas ideais e elementares (e de igual VN) de «compropriedade» da sociedade (CAP personificado, bem jurídico) –, às quais é inerente a sua qualidade de sócios.

e) Quanto aos sócios A e C, a respetiva qualidade de sócios funda-se na titularidade em comum, com os respetivos cônjuges, também de 20 000 ações cada um.

f) Se todos os sócios combinarem vender uno actu as suas ações, por ex., a X, verdadeiramente, o que eles estão a vender é a sua «compropriedade» por ações da sociedadee, portanto, a própria sociedade, com a respetiva substância económico-patrimonial e dotada de personalidadejurídica, enquanto bem jurídico, supostamente isenta de defeitos; ou seja, há a venda de um CAP personificado, com a respetiva superstrutura de membros e titulares de órgãos sociais variáveis, a empresa e o património de que a pessoa jurídica em causa é titular.

g) No caso do A e do C, integrando as ações a comunhão conjugal, afigura-se que, pelo menos como regra, a legitimidade para dispor é do casal (embora, como nos casos do EIRL, da SuQ e da SpQ, isto possa discutir-se, na medida em que esteja em jogo o exercício da liberdade de empresa, com as implicadas liberdades de associação e de investimento/desinvestimento).

h) A transmissão integral da «corporação empresarial personificada» em causa dá-se com a transferência das ações para o adquirente e a correspondente investidura deste na posição de sócio, que, dentro dos limites da lei, lhe assegura o domínio efetivo e total da mesma.



[i] O tráfico respeita, pelo menos essencialmente, a estes tipos sociais e pressupõe, em geral, uma empresa já devidamente montada e desenvolvida e um património significativo; embora também se conceba um tráfico jurídico de formas societárias ainda não ativadas (sociedades de prateleira ou sociedades-conchas), com grande expressão, por ex., no Reino Unido. Fora da nossa análise ficam, portanto, as sociedades gerais ou simples, as SNC, as SCS e as SCA; e, ainda, de um modo geral, as sociedades profissionais, mesmo que revistam a forma de SpQ ou SA (cfr. infra, no texto). Para simplificação do discurso, quando nos referimos à SA, estamos a pensar naquela que tem um modelo de governança monista, tradicional. Salvo se outra coisa resultar do texto ou do contexto, os artigos citados sem indicação da fonte são do CSC.

[ii] Já em 1989, escrevemos: «Finalmente, poderia ainda considerar-se que, verdadeiramente, pela sua função instrumental, a sociedade-pessoa jurídica é simultaneamente sujeito de direito e objecto de um direito de “domínio” de que são titulares os sócios e que a participação social é uma quota do mesmo [ou, evocando SAVIGNY (supra, n.º 54), uma quota de compropriedade, não da empresa social, como este autor defendia, mas da própria sociedade com a respetiva empresa]. Esta perspectiva teria a vantagem de contribuir para esclarecer a natureza de tal direito – manifestamente de carácter não meramente relativo, dando a esta palavra o sentido que ela tem para a doutrina tradicional –, para compreender o fenómeno da unipessoalidade, etc., mas, para além de que só nas sociedades de capitais ela é susceptível de captar realmente o fenómeno, a sua eventual adopção passaria por um tratamento da natureza da personalidade jurídica das sociedades em termos inteiramente novos, o que não pode aqui ser feito» ( A transmissibilidade das acções, tese, UCP, vol I, disponível em https://www.evaristomendes.eu/ficheiros/Evaristo_Mendes_Tese_de_Mestrado_(vol_I)_rev.pdf, n.º 112).

Posteriormente, a respeito das SpQ e SA, veja-se, neste sentido, Evaristo Mendes, «Governança societária e justiça intergeracional», in Justiça entre Gerações, coord. de J. P. Silva e G. A. Ribeiro, Lisboa (UCE) 2017, p. 544 e s, e «Aquisições potestativas no artigo 490 do CSC», V Congresso DSR, Almedina, Coimbra, 2018, p. 349, e, se bem compreendemos o pensamento do autor, P. Pais de Vasconcelos, A participação social, Almedina, Coimbra,2006, p. 370 e ss. Já antes, podem ver-se Friedrich Buchwald, «Zum Wesen des GmbH-Geschäfstanteils», GmbH-Rundschau 2/1962, p. 25 e s., referido mais adiante, no texto (n.º 16), e Buchwald / Tiefenbacher, Die zweckmässige Gesellschaftsform nach Handels- und Steuerecht, 4.ª ed., R & W, Heidelberg, 1971, p. 23 e s. Embora estes escritos sejam anteriores àquela nossa dissertação, só tivemos acesso aos mesmos bastantes anos após a sua entrega.

[iii] Cfr. as pertinentes observações de Jéssica Ferreira, « Share deal e vícios no património da sociedade-alvo – Breves notas a propósito da tutela do adquirente», DSR 19 (2018), p. 169-206.

[iv] Embora tal já resulte do texto, realça-se que, no caso das SA, o foco também será apenas o das sociedades com controlo definido e estável. As sociedades com capital largamente disperso, segundo o figurino das public corporations norte-americanas, apresentam características e requerem uma análise distintas.

[v] Acerca desta, cfr., em geral e com mais indicações, Diogo Costa Gonçalves, Pessoa coletiva e sociedades comerciais, Almedina, Coimbra, 2015, sobretudo, p. 312 e ss., 358 e ss., 394 e ss., 490 e ss., Fátima Ribeiro, «Notas sobre a natureza da personalidade jurídica das pessoas coletivas», DSR 16 (2016), p. 55-75, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II – Das Sociedades, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, p. 161 e ss., e in CSC em Comentário, I, 2.ª ed., 2017, coordenação do próprio, anotação ao art. 5, p. 102 e ss., e Menezes Cordeiro, de que se salientam: em geral, «Pessoas Coletivas», Introdução (arts. 15.º a 194.º), in CC comentado, I, coordenação do próprio, Almedina, Coimbra, 2020, p. 409 e ss., e, acerca das sociedades, Direito das Sociedades, I – Parte Geral, 4.ª ed., com a colaboração de A. Barreto Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, p. 262 e ss. Embora esteja fora do nosso propósito discutir o tema, sempre diremos que, no que se refere às pessoas coletivas com membros, em que se contam as sociedades personificadas, a conceção subjacente ao texto está mais próxima da conceção integrada de Flume [Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, I/2 – Die Juristische Person, Springer Verlag, Berlim/…, 1983], segundo a qual os membros pertencem à unidade de ação (Wirkungseinheit) ou todo ideal que a pessoa coletiva constitui (para nós, o fenómeno societário central é o dos centros de atividade produtiva, integrados por membros variáveis, que podem ser personificados e não personificados, mas são sempre centros de ação e de imputação jurídica, reforçando a personificação a sua operacionalidade, unidade e, no caso das estruturas societárias de acumulação de capital e responsabilidade limitada, também a sua transacionalibilidade), do que às correntes conceções da alteridade jurídica da corporação e dos seus membros, conquanto reconheçamos a vantagem da simplicidade destas e a sua valia pedagógica, ainda que relativas, dado o temperamento que tem de se lhes introduzir através de uma mais ou menos alargado conceito de abuso da personalidade coletiva ou de desconsideração da mesma.

[vi] Note-se, porém, que esta personalidade jurídica – donde decorre que, na transmissão da sociedade, não tem lugar uma transmissão singular da empresa e dos restantes elementos do respetivo património – também não deve ser sobrevalorizada. A materialidade das situações deve prevalecer sempre sobre a forma. Cfr., a este respeito, o AcSTJ de 11.03.2010 (infra, n.º 19) e a nota a seguir. Acerca da simplificação e da redução dos custos de transação que a personalidade jurídica proporciona, cfr., a respeito dos chamados share deals, em confronto com osasset deals, por ex., Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, p. 256 e s., diversas vezes citado na jurisprudência.

[vii] Este ponto de vista contrasta, de certo modo, com as conceções «relativistas», analíticas ou normativas da personalidade coletiva societária – perfilhadas, designadamente, por Ascarelli, Galgano e d’Alessandro na Itália e por Menezes Cordeiro em Portugal [cfr., além deste autor, a súmula constante de João Espírito Santo, Sociedades por Quotas e Anónimas – Vinculação: Objecto Social e Representação Plural, Almedina, Coimbra, 2000, p. 53 e ss., e Fátima Ribeiro, «Notas sobre a natureza da personalidade jurídica das pessoas colectivas» (2016), cit., p. 92 e ss.]. Assim, para Galgano, os bens sociais pertencem (na realidade) aos sócios, em modo coletivo; donde decorre que, em caso de transmissão de participações de controlo, «i beni sociali non sono, per il cedente, beni di un terzo, dei cui vizi o delle cui qualità mancanti il cedente, in linea di principio, non può essere chiamato a rispondere. Sono, se il cedente è socio di controlo, beni che gli appartengono, anche se gli appartengono in modo diverso da come gli appartengono i beni personali», com a consequente responsabilidade por eventuais vícios mesmo na ausência de estipulação de garantias do vendedor [Francesco Galgano, «Cessione di partecipazioni sociali e superamento della alterità soggettiva frà socio e società», Contratto e impresa, 20 (2004), p. 537-544, 543 e s]. Note-se, contudo, que o autor não nega que, a par dos sócios, a sociedade seja um sujeito de direito (já que a subjetividade desta traduz uma enorme simplificação do discurso). Importa é ver os seus limites e desconsiderá-la, se for o caso, para evitar abusos, como seria o caso se o transmitente da participação de controlo a invocasse para frustrar a legítima confiança do transmissário na consistência do património social. Sobre o tema, cfr. também, entre muitos e com mais indicações, Rita Rolli, «Cessione di partecipazioni societarie e tutela del compratore: aliud pro alio datum?», Conttratto e impresa 10 (1994), p. 183-238. Num plano mais geral, afirma também Menezes Cordeiro [Direito das Sociedades (2020), cit., p. 278 e ss.], designadamente: «No caso de uma pessoa de tipo corporacional, os direitos de “pessoa coletiva” são direitos dos seus membros. Simplesmente, trata-se de direitos que eles detêm de modo diferente do dos seus direitos individuais» (p. 279), isto é, em modo coletivo (p. 280).

[viii] Cfr., designadamente, Antunes Varela, Anotação ao acórdão do Tribunal Arbitral de 31.03.1993, RLJ 126 (1993-94), p. 160 e s., 180 e ss., 285 e ss. (n.ºs 10 e ss.), a respeito do caso decidido no acórdão (SFP – infra, n.º 15). Defendeu também esta posição Henrique Mesquita, mas apenas nos casos em que não haja transferência da totalidade das quotas ou ações: Oferta pública de venda de ações e violação do dever de informar , Coimbra Editora, 1996, p. 99 e ss., 112 e ss., 105 e ss. (havendo a transmissão da totalidade das participações, ou quase, pode abstrair-se ou desconsiderar-se a instrumental personalidade jurídica da sociedade – p. 107).

[ix] Cfr., em especial, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II – Das Sociedades, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, p. 380 e ss. [equiparação, em regra, para certos efeitos (como o da aplicação do regime de bens onerados ou defeituosos, da obrigação de não concorrência e preferência do senhorio de local arrendado), da venda da totalidade ou da maioria das participações numa sociedade à venda da respetiva empresa e restante património social, uma vez que a aquisição do domínio ou controlo societário envolve o poder de determinar a gestão da empresa e do património sociais, havendo uma transmissão indireta ou mediata destes], e Da Empresarialidade. As Empresas no Direito, Almedina, Coimbra, 1996, p. 213 e s., 342 e ss., 349 e ss., com mais indicações. Vejam-se, ainda, por ex., A. Soveral Martins, «Transmissão da empresa societária», in AAVV, Nos 20 anos do CSC, Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, I, Coimbra Editora, 2007, p. 415-438, 432 e ss., M. Nogueira Serens, «A equiparação do share deal ao asset deal no direito alemão», DSR 16 (2016), p. 58 e ss., e Da obrigação de não concorrência na negociação definitiva da empresa, Coimbra, Almedina, 2017, p. 22 e ss., e Catarina Monteiro Pires, Aquisição de empresas e de participações acionistas, Almedina, Coimbra, 2019, p. 14 e ss. Outros autores, como Ferrer Correia e Almeno de Sá, referidos na nota a seguir e em notas ulteriores, podem também incluir-se aqui, quanto à equiparação, para certos efeitos, da operação sobre quotas ou ações a uma operação sobre a própria empresa ou estabelecimento. Cfr., ainda, os AcsSTJ de 26.06.2007 (equipação se domínio significativo) e 11.03.2011, outra jurisprudência referida adiante no texto (n.º 19), bem como, com perspetiva mais alargada, Jéssica Ferreira, « Share deal e vícios no património da sociedade-alvo – Breves notas a propósito da tutela do adquirente», DSR 19 (2018), p. 169-206, e o AcSTJ 11.03.2010, também referido adiante, no texto (n.º 19). Mais recentemente, veja-se também José Ferreira Gomes, M & A – Aquisição de Empresas e de Participações Sociais, AAFDL, Lisboa, 2022, p. 33 e ss., 50 e ss., 483 e ss.

[x] Cfr., designadamente, Ferrer Correia / Almeno de Sá, referidos adiante, no texto (n.º 15). Vejam-se, ainda, entre muitos outros (em boa parte indicados a seguir e em notas posteriores): Calvão da Silva, Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Almedina,1996, p. 165 e ss.; Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, «Compra e venda de empresa – A venda de participações sociais como venda de empresa («share deal»), RLJ 137 (2007), p. 76-102, e in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Figueiredo Dias, coord. de Costa Andrade et alii, IV, Coimbra Editora, 2009, p. 685-728 (tratando da venda da empresa mediante alienação das participações (share deal) e da equiparação desta à venda direta da empresa, enquanto ativo da sociedade (asset deal), designadamente no que toca aos mecanismos de proteção do comprador (garantias do vendedor), à obrigação de não concorrência e ao arrendamento no caso de estabelecimento instalado em local arrendado], Engrácia Antunes, «A Empresa como Objeto de Negócios – “Asset Deals” versus “Share Deals”», ROA 68 (2008), p. 715-793, 722 e ss.; Catarina Monteiro Pires, Aquisição de empresas e de participações acionistas, Almedina (2019), cit., título e, por ex., 18 e 22; P. Romano Martinez / Rui Soares Pereira, «Compra e venda de empresas: meios de reacção disponíveis para o comprador, inadequação da culpain contrahendo e prazo prescricional aplicável», RDES LXII (2021), p. 47-107, 50 e ss. e 105 e s. [a respeito da compra e venda da totalidade das participações de duas SA e de uma SpQ, embora observando que para estar em causa a venda de empresas através das participações não é necessária a transmissão da totalidade destas; utilizando também expressões como «património das sociedades adquiridas», «direitos patrimoniais das sociedades adquiridas pela compradora» (p. 49), «situação das empresas (sociedades) que foram objeto de aquisição» (p. 51)], e, ainda, Nogueira Serens, cit. na nota anterior. Para determinar se há equiparação ou não, pode ser decisiva a intenção das partes no negócio: cfr., por ex., Ferrer Correia / Almeno de Sá, p. 270 e ss., Calvão da Silva, p. 219 e s., Rita Cunha, «Dos mecanismos voluntários de tutela do adquirente em contratos de compra e venda de empresa – em especial; a Due Diligence e as Representations & Warranties», DSR 23 (2020), p. 273-303, 278, Jéssica Ferreira, «Share deal e vícios no património da sociedade-alvo – Breves notas a propósito da tutela do adquirente», DSR 19 (2018), p. 169-206, 175 e ss., Gonçalo Almeida, «Declarações e garantias na transmissão de empresas», DSR 23 (2020), p. 243-272, 261 e ss. Na jurisprudência, cfr. designadamente, o AcTRP de 17.02.2000 e o Ac.STJ de 26.11.2014, referidos adiante, no texto (n.º 19).

Na realidade, em termos substanciais, a construção jurídica referida nesta nota equivale à da nota anterior, com a ressalva de que em jogo pode estar nuclearmente a empresa social, mas também o restante património da sociedade visada. Exemplo disso é este último acórdão, no qual se observa que a «compra e venda de empresa» através da compra e venda de participações sociais é uma forma impressiva de dizer que o contrato «tem como efeito o controlo da sociedade pelo comprador» e, consequentemente, «o poder de determinar a gestão da empresa social»; há uma «transmissão indireta da empresa», como refere Coutinho de Abreu.

[xi] Cfr., neste sentido, designadamente, Pessoa Jorge e Calvão da Silva, referidos adiante, no texto (n.º 15), mas, quanto a Calvão da Silva, atente-se também na nota anterior. Vejam-se, ainda, Catarina Monteiro Pires, Aquisição de empresas e de participações acionistas (2019), p. 19 e 33, Maria de Deus Botelho, «Deveres de lealdade dos administradores no período pré-venda da sociedade», in AAVV, V Congresso DSR, Almedina, Coimbra, 2018, p. 33-48, título e p. 40 e 42, mas assinalando que, em vez de «venda da sociedade», é melhor dizer venda «das participações sociais desta» (p. 40), bem como Menezes Cordeiro, Marcelo Rebelo de Sousa e Ferrer Correia/ Almeno de Sá, igualmente com reservas, também referidos mais à frente (n.º 15).

Note-se, contudo, que as posições doutrinárias destes três últimos grupos podem equivaler-se substancialmente: isso depende do que cada um entende, neste contexto, por empresa social (cfr. adiante, no texto). Mesmo as quotas e ações podem significar mais do que aquilo que correntemente se lhes reconhece. Note-se, ainda, que o tráfico também pode respeitar a uma simples estrutura societária não ativada (sociedade de prateleira).

Em França, mostra-se especialmente esclarecedor um texto da APCE (Agence Pour la Création d’Entreprises), em que a mesma, no que respeita às empresas que se constituem sob a forma de uma sociedade, identifica os seguintes dois tipos de negócios possíveis: o de aquisição direta do fundo de comércio, composto pelo conjunto de bens que permitem a exploração da atividade ou ramo de atividade em causa (contenu), comum também às empresas individuais; e um outro, que consiste na aquisição simultânea do « contenant» - isto é, da estrutura jurídica – e, com ele, do contenu, ou seja, do património empresarial, no seu todo, e da atividade, negócio esse que se realiza através da aquisição das partes sociais ou acções da sociedade em questão. Cfr. www.apce.com/ (sob a rubrica repreneur), consultado em 2005.

Em Espanha, GIRÓN TENA fala na titularidade comum da sociedade anónima por parte dos acionistas e na sua compra e venda através da compra e venda das ações, conseguindo-se por essa via também a compra e venda da sua empresa, sendo a pessoa jurídica societária um modo jurídico de organização dessa titularidade e, ainda, da atividade e da responsabilidade comuns. Na mesma linha, J. M. GONDRA refere a sociedade mercantil, pessoa jurídica, como uma forma de organização da titularidade colectiva da respetiva empresa, embora não fale num tráfico de sociedades. Cfr. GIRÓN TENA, «Sobre las características generales, desde los puntos de vista político-jurídico y conceptual, de los problemas actuales en torno de la empresa», no Libro-Homenaje a A. Polo, Madrid, 1981, p. 296 e s., com passagem transcrita em GONDRA, p. 524, nota 43; J. M. GONDRA, «La structura jurídica de la empresa», in RDM 228 (1998), p. 493 e ss., 509 e s. No fundo, encontramos aqui o aludido problema da natureza do fenómeno societário e da personalidade jurídica societária, cujo tratamento está, no entanto, fora do objetivo e dos limites deste texto.

[xii] Ou um mecanismo de mobilização e circulação da riqueza empresarial : cfr. Pinto Monteiro, citado no Ac.STJ de 26.06.2007, referido adiante, no texto (n.º 19).

[xiii] Embora estes créditos e débitos de exploração (resultantes do exercício da atividade empresarial) não integrem, em rigor, a empresa, como bem assinala Coutinho de Abreu,Das Sociedades (2021), cit., p. 384, Curso de Direito Comercial, I, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 230 e s., e Da Empresarialidade. (1996), cit., p. 335 e ss.

[xiv] Cfr., ainda, Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), cit., p. 380 e ss. No fundo, está a usar-se uma sinédoque, para designar a empresa e o restante património social.

[xv] Ou seja, como se defende no presente escrito, a sociedade pessoa jurídica é dona/titular da empresa (e do património social) – esta pertence-lhe – e os sócios são donos/(con)titulares da sociedade.

[xvi] Se se considerar a hipótese de uma transmissão de quotas ou ações que conferem o direito de domínio da sociedade, mas não o domínio total (como sucedia no caso da SFP), estará, ainda, em causa esta forma especial de transmissão da sociedade, que, se o domínio for qualificado, possibilitará, designadamente, uma integração ou dissolução da mesma, com possível atribuição da empresa a quem a promove, embora se trate de uma transmissão parcial (não total).

[xvii] Em complemento das mesmas, importa assinalar que a lei, frequentemente, utiliza o termo empresa em sentido subjetivo, podendo revestir diversas formas jurídicas – societária, cooperativa, ACE, etc. –, ou seja, identifica-a com uma entidade empresarial. Cfr., por ex., os arts. 2, 3, 5 e 6 do RJASR (Regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora, aprovado pela Lei 147/2015), o regime jurídico da atividade transportadora rodoviária de mercadorias (DL 257/2007), e, designadamente, Coutinho de Abreu,Curso de Direito Comercial I (2019), cit., p. 216 e ss., e Da Empresarialidade (1996), cit., p. 117 e ss., 214 e ss.

[xviii] Este preceito legal considera expressamente as antigas empresas societárias objeto de nacionalização após 1974 como meios de produção, isto é, um tipo de bem (bem produtivo); e considera como objeto de privatização a empresa, rectius, a sociedade-empresa [centro de atividade produtiva (CAP) personificado], uma vez que alude ao seu capital social.

[xix] De caráter institucional, note-se, mas não fundacional.

[xx] Lei-quadro das privatizações (Lei 11/90, de 5 de abril).

[xxi] Nos termos da Lei 62-A/2008, o BPN (Banco Português de Negócios, SA) foi nacionalizado através da transferência das respetivas ações para o Estado. Aqui, a Lei refere-se à nacionalização e à apropriação pública mediante nacionalização de ações e de participações sociais. O correto seria, porém, dizer que uma entidade sob a forma de SA (como o BPN) é nacionalizada mediante apropriação pública das respetivas ações, ou melhor, é nacionalizada (objeto de apropriação pública) mediante aquisição ou transferência forçada, para o Estado, das respetivas ações; podendo, ainda, haver simples atos de apropriação pública de participações minoritárias.

[xxii] Noutro contexto, o Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo (EESPC) de 1989 (DL 271/89.08.19) dispunha no art. 18.11: «As universidades e os institutos politécnicos têm sempre personalidade jurídica e património próprio», como forma de reforçar a sua autonomia, podendo outros estabelecimentos obtê-la através do ato de reconhecimento, sem prejuízo da personalidade jurídica da entidade instituidora (art. 18.10), sua titular (cfr. o preâmbulo, n.º 4). E também o art. 16 da Lei de Imprensa (Lei 2/99) – revogado pela Lei 78/2015, que atualmente regula a promoção da transparência da titularidade, da gestão e dos meios de financiamento das entidades que prosseguem atividades de comunicação social - considerava as ações como uma forma de propriedade das empresas jornalísticas detentoras de publicações periódicas sob forma de sociedade anónima. Norma semelhante constava do art. 4 da Lei da televisão (Lei 27/2007), antes da sua revogação por aquela Lei 78/2015.

[xxiii] Regime Jurídico do Setor Público Empresarial.

[xxiv] Cfr., ainda, o Parecer 15/77 da Comissão Constitucional, onde se afirmou que do art. 83 da CRP (na sua versão inicial) resultava que «as empresas directamente nacionalizadas» após 1974 não poderiam ser «desnacionalizadas», isto é, passar «da propriedade do Estado, único ou efeito central da nacionalização, à propriedade privada» [Comissão Constitucional, Pareceres (1977), p. 69].

[xxv] Em França, na mesma direção, o art. 34 da Constituição de 1958 considera reserva de Lei (parlamentar) as regras relativas às «nationalisations d'entreprises» e à transferência ( transfert) «de propriété d'entreprises du secteur public au secteur privé»; e, já antes, a alínea 9 do Preâmbulo da Constitutição de 1946, para que remete o da de 1958, continha o seguinte trecho: «tout bien, toute entreprise dont l'exploitation a ou acquiert les caractères d'un service public national ou d'un monopole de fait, doit devenir la propriété de la collectivité».

[xxvi] Cfr. também o art. 6 do Reg(UE) 2017/1129. Acerca da regra da necessidade de prospeto, cfr. o art. 134.1 CVM (agora revogado) e o art. 3.1 do Reg(UE). Quanto à sua estrutura e conteúdo, além do art. 135 CVM, cfr. também este Reg(UE) (anexo) e o art. 135-A.4 (agora revogado). Nas OPV, a respeito dos deveres de cooperação do emitente com o emitente, com vista à elaboração do prospeto, cfr. o art. 171 CVM. Vejam-se, ainda, os 181 e 182, relativos aos deveres e limitações relativos à sociedade visada por uma OPA.

[xxvii] Nesta avaliação, tem sido usado sobretudo o método dos fluxos de caixa descontados (DCF), que compreende (i) o valor da empresa/negócio, (ii) o valor (venal) dos ativos não afetos à empresa e (iii) o valor de mercado do passivo financeiro (remunerado); sendo o valor da empresa o valor dos fluxos de caixa [excedente monetário previsional (após investimentos necessários para a sua sustentação no horizonte considerado) suscetível de ser apropriado pelos titulares] descontado mediante a aplicação de taxa de desconto ou atualização apropriada.

Acerca do tema da informação a prestar no âmbito de uma oferta pública (mormente OPV), no essencial condensada no prospeto com os respetivos anexos, e da realidade (societário-empresarial) sobre que versa, cfr., por ex., a respeito do caso da SFP, o acórdão do Tribunal Arbitral de 31.03.1993 (Fausto Quadros), publicado, designadamente, em AAVV, A Privatização da Sociedade Financeira Portuguesa, Lex, Lisboa, 1995, p. 33 e ss. [aludindo à compra e da sociedade, a cujo património pertenciam duas controvertidas garantias (p. 49, 51 e 60), à compra e venda da respetiva empresa (p. 55) e à afetação da sua capacidade para gerar lucros], bem como o respetivo voto de vencido (Almeida Costa), p. 62 e ss. [aludindo também à venda da sociedade (p. 65) e à venda da empresa (p. 70), em alternativa à venda das ações (p. 68 e 72)], Menezes Cordeiro, «Vícios ocultos nos bens privatizados (…)», «Parecer de Direito», ibidem, p. 79-143, 119 e ss., 139, Pessoa Jorge, «Parecer de Direito», ibidem, p.159-180, 175, Calvão da Silva, «Parecer de Direito», ibidem, p. 203-222, 220 e s., Marcelo Rebelo de Sousa,«Parecer de Direito», ibidem, p. 223-253, 240 e ss., Ferrer Correia / Almeno de Sá, «Parecer de Direito», ibidem, p. 259-302, 274 e ss., Gomes da Silva / Rita Cabral, «Parecer de Direito», ibidem, p. 303-325 [aludindo também à compra e venda da sociedade (p. 315, 319, 323 e s.)], Menezes Cordeiro, «Aquisição de empresas: vícios na empresa privatizada; responsabilidade pelo prospecto; culpa in contrahendo; indemnização»,anotação ao acórdão (p. 87-122), ROA 55 (1995), p. 123-190, 182 e ss., Rita Cabral, «A responsabilidade por prospecto e a responsabilidade pré-contratual», anotação ao acórdão, ROA 55 (1995), p. 191-223, 200 e ss. Mais latamente, cfr., ainda, José Ferreira Gomes, M & A – Aquisição de Empresas e de Participações Sociais (2022), p. 161 e ss., 193 e ss.

[xxviii] Cfr., por ex., Engrácia Antunes, «A Empresa como Objeto de Negócios – “Asset Deals” versus “Share Deals”» (2008), cit., p. 746 e ss., José Ferreira Gomes, M & A – Aquisição de Empresas e de Participações Sociais (2022), p. 65 e ss., 199 e ss., 225 e ss.

[xxix] Cfr., designadamente, Ferreira de Almeida, «Transmissão contratual da propriedade – entre o mito da consensualidade e a realidade de múltiplos regimes», Themis 11 (2005), p. 5-17, 12 e ss., «Registo de valores mobiliários», in DVM VI, Coimbra Editora, 2006, p. 51-138, 103 e ss. (a respeito das ações valores mobiliários), e, no texto constante da nota a seguir, a nota 31, p. 45, e a pág. 47 e nota 40.

[xxx] Cfr., sobre o assunto, em tom crítico, Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários», CDP 70 (2020), p. 32-51, 39 e ss.

[xxxi] Avultando aqui a deteção de eventuais cláusulas de mudança de controlo da sociedade. Cfr., por ex., Fábio Castro Russo, «Due diligence e responsabilidade», in AAVV, I Congresso DSR, Almedina, Coimbra, 2011, p. 13-26, 19, e https://forrestfirm.com/blog/due-diligence-part-two-assignment-and-change-of-control-provisions/ , https://www.foxwilliams.com/2016/01/05/change-of-control-provisions/.

[xxxii] Cfr., por ex.: Fábio Russo, «Due diligence e responsabilidade» (2011), cit., p. 14 e ss., Jéssica Ferreira, « Share deal e vícios no património da sociedade-alvo – Breves notas a propósito da tutela do adquirente», DSR 19 (2018), p. 169-206, 195 e ss., Rita Cunha, «Dos mecanismos voluntários de tutela do adquirente em contratos de compra e venda de empresa – em especial; a Due Diligence e as Representations & Warranties», DSR 23 (2020), p. 273-303, 282 e ss., Catarina Monteiro Pires, Aquisição de empresas e de participações acionistas, Almedina, Coimbra, 2019, p. 21 e ss., José Ferreira Gomes, M & A – Aquisição de Empresas e de Participações Sociais (2022), p. 199 e ss., 209 e ss. e, ainda, acerca da avaliação referida a seguir, p. 217 e ss.

[xxxiii] Cfr., ex.: o Acórdão do tribunal arbitral de 25.09.1993 (Raul Ventura), RLJ 129 (1996/97), p. 81 e ss., com anotação de Henrique Mesquita, p. 93-96, 121-128, 152-160 (aludindo à aquisição de duas empresas sob forma societária, mas acrescentando, que, em rigor, se tratava antes da aquisição da maioria do capital); Patrícia Fonseca, «A negociação de participações de controlo. A jurisprudência», in AAVV, I Congresso DSR, Almedina, Coimbra, 2011, p. 27-40, 38 e s.; Fábio Russo, «Das cláusulas de garantia nos contratos de compra e venda de participações de controlo», DSR 4 (2010), p. 115-136; António Teles / João Carmona Dias, «Garantia na alienação de empresas», in AAVV, Aquisição de Empresas, Coimbra Editora, 2011, pp. 65-105; Jéssica Ferreira, «Share deal e vícios no património da sociedade-alvo – Breves notas a propósito da tutela do adquirente», DSR 19 (2018), p. 169-206, p. 188 e ss., Catarina Monteiro Pires, Aquisição de empresas e de participações acionistas , Almedina, Coimbra, 2019, p. 63 e ss., 109 e ss., Rita Cunha, «Dos mecanismos voluntários de tutela do adquirente em contratos de compra e venda de empresa – em especial: a Due Diligence e as Representations & Warranties», DSR 23 (2020), p. 273-303, 292 e ss., Gonçalo Almeida, «Declarações e garantias na transmissão de empresas», DSR 23 (2020), p. 243-272, 250 e ss., 267 e ss., José Ferreira Gomes, M & A – Aquisição de Empresas e de Participações Sociais (2022), p. 251 e ss.

[xxxiv] Sobre o tema, cfr., em geral, Alexandre Soveral Martins, «Transmissão de participações de controlo e cláusulas de revisão do preço», in AAVV, I Congresso Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Coimbra, 2011, p. 41-52, Filipe Rocha, «A aquisição de empresas com sujeição a condições suspensivas: entre as cláusulas sobre alterações depreciativas e as cláusulas de revisão de preço», RDS XI (2019), 2, 395-428, Catarina Monteiro Pires, «Cláusulas de preço fixo, de ajustamento de preço e de alteração material adversa (“mac”) e cláusulas de força maior», ROA 80 (2020), p. 73-93, 77 e ss., e Fernando Sá, «A determinação contingente do preço de aquisição de uma empresa através de cláusulas de earn-out», in AAVV, Aquisição de Empresas, Coimbra Editora, 2011, p. 401 e ss. Deste último autor, cfr., na mesma linha, «Cláusulas Material Adverse Change em contratos de compra e venda de empresas», em Direito Comercial e das Sociedades: Estudos em memória do Professor Doutor Paulo M. Sendin , UCE, Lisboa, 2012, p. 427-444, José Ferreira Gomes, M & A – Aquisição de Empresas e de Participações Sociais (2022), p. 223, 287 e ss.

[xxxv] Cfr., por ex., Catarina M. Pires, Aquisição de empresas e de participações acionistas (2019), p. 21 e ss., 32 e ss.

[xxxvi] O mesmo sucede com a própria obrigação legal ou contratual implícita. Sobre esta, cfr., por ex., M. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial I (2019), cit., p. 310 e ss., e, mais desenvolvidamente, M. Nogueira Serens, Das obrigações de não concorrência na negociação definitiva da empresa (2017), cit., p. 5 e ss., 47 e ss., bem como os AcsSTJ de 17.02.1998, BMJ 454 (1998), p. 502 e ss., e 13.03.2007 (Nuno Cameira), www.dgsi.pt, proc. 06A4523, e o AcTRG de 22.10.2020 (José Amaral), www.dgsi.pt, proc. 1162/16.0T8PVZ.G1. Acerca da função e utilidade das cláusulas explícitas de não concorrência, apesar da existência de tal obrigação implícita, cfr., sobretudo, Serens, p. 73 e ss. No Brasil, cfr., por ex., Adriano Ferriani / Giovanni Ettore Nanni, «Cláusula de não concorrência na alienação de participação societária: exame de seus requisitos de validade e ineficácia superveniente», civilistica.com || a. 9. n. 2. 2020, p. 1-53, disponível em https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/466/414.

[xxxvii] A afirmação refere-se, aparentemente, às sociedades de prateleira, constituídas para vender; tendo sido colhida em 2019 na Internet, em sítio que, entretanto, desapareceu.

[xxxviii] Cfr. também infra, n.º 14.

[xxxix] Encontramos aqui o debate contemporâneo acerca da natureza da sociedade-empresa ou empresa societária (business corporation) e da respetiva governança, em grande medida centrado no peculiar figurino da sociedade cotada norte-americana. De um lado, temos os defensores da conceção tradicional da sociedade comercial, dominialista ou económico-financeira (com o associado problema da «agência), que vê nela exclusiva ou primacialmente uma organização produtiva destinada a criar valor para os sócios (acionistas), ainda que o faça de forma socialmente comprometida e responsável, e as conceções económico-sociais, que procuram fazer uma síntese da pluralidade de interesses que em torno da mesma gravitam. Embora o tema não seja totalmente alheio ao que se versa neste artigo, deixamo-lo em grande parte de lado, centrando-nos na conceção tradicional, que pode encontrar-se, nos arts. 980 do CC e 64 do CSC, ainda que este último mereça uma leitura constitucionalmente conforme. Sobre o assunto, cfr., com mais indicações, Evaristo Mendes, «Governança societária e justiça intergeracional», in Jorge Pereira da Silva / Gonçalo de Almeida Ribeiro, Justiça entre Gerações, UCE, Lisboa, 2017, p. 469-555, 474 e ss., e Apêndice, em https://www.evaristomendes.eu/files/p_01_10.pdf.pdf .

[xl] In ‘Question de gouvernance : qui est « propriétaire » d’une ASBL ?’, por Prof. Sybille MERTENS (Chaire Cera « Social Entrepreneurship »), Julie RIJPENS et Lionel HURDEBISE (doctorants), Centre d’Economie Sociale, HEC-Ecole de Gestion de l’Université de Liège, disponível em https://orbi.uliege.be/bitstream/2268/89208/1/propri%C3%A9t%C3%A9asbl.pdf (última consulta: 20.12.2021).

[xli] Milton Friedman, Capitalism and Freedom, 40th Anniversary Edition, Chicago, The Chicago University Press, 2002, p. 135.

[xlii] «Who Legally Owns a Corporation?», por Terry Masters, disponível em https://smallbusiness.chron.com/legally-owns-corporation-54930.html (última consulta: 20.12.2021). Na mesma linha, por ex.: Will Kenton/Amy Drury, «Company» («A company is essentially an artificial person—also known as corporate personhood—in that it is an entity separate from the individuals who own, manage, and support its operations»), disponível em https://www.investopedia.com/terms/c/company.asp (última consulta: 20.12.2021); Stefon Walters, «Who Actually Owns a Corporation?» («The United States recognizes corporations as distinct legal entities, meaning they are viewed separately from those who own them».) (2019), disponível em https://yourbusiness.azcentral.com/actually-owns-corporation-2941.html (última consulta: 20.12.2021).

Veja-se também a obra clássica de Berle & Means, The Modern Corporation and Private Property, 2.ª ed., Nova Iorque, 1967, reimpressão de nova edição com prefácio de Berle e com nova introdução de Murray L. Weidenbaum & Mark Jensen (1991), Transaction Publishers, New Brunswick / London, 1997, distinguindo entre «propriedade» formal ou passiva (sem o poder de domínio), própria dos acionistas da grande sociedade anónima com capital disperso, e propriedade produtiva. Em breve súmula, o pano de fundo da obra é o que se segue. Segundo o entendimento tradicional, os acionistas são os donos da riqueza produtiva (meios ou instrumentos da produção, empresa corporativa) detida pela corporação – que é um alter ego ou veículo nominal de que eles se servem para a concentração e valorização dessa riqueza – sendo ao mesmo tempo os seus gestores, diretamente ou através de pessoas por eles encarregadas da gestão. Noutros termos, são donos da corporação, com a riqueza (empresa) por ela detida. Esta visão mostra-se apropriada para a sociedade (corporação mercantil) fechada ou privada, com controlo acionário estável. Não o é, porém, para a grande corporação quase-pública, com capital disperso, sem um acionista estável de referência, e em que a lei atribui a gestão e o controlo dos meios de produção (e a política de dividendos) a uma instância independente (diretores e gestores), não sendo sequer certo que tal gestão, diferentemente do entendimento tradicional, deve ser exercida no interesse exclusivo dos acionistas. Com efeito, aqui o átomo da propriedade explodiu, ficando a gestão ou controlo separados da titularidade e, portanto, tornando a forma de propriedade (acionária) sobrante meramente passiva ou beneficiária; o que coloca diversos problemas, que cabe ao direito regular. No prefácio à segunda edição revista, Berle esclarece que esta posição beneficiária, no fundo, reduz-se a uma real expectativa de recebimento de dividendos (sendo a expectativa de recebimento da quota de liquidação remota, sendo o direito de voto negligenciável e o direito de ação social de responsabilidade de difícil exercício), a que acresce a possibilidade de realizar o maior valor adquirido pelas ações e não distribuído sob a forma de dividendos através do mercado existente e regulado. Entre nós, cfr., por ex., João Cunha Vaz, A OPA e o controlo societário, Almedina, Coimbra, 2013, p. 48 e 49.

[xliii] Cfr. o Billet de blog (2011), «Les actionnaires ne sont pas propriétaires de l'entreprise», de Georges Beisson, disponível em https://blogs.mediapart.fr/georges-beisson/blog/190411/les-actionnaires-ne-sont-pas-proprietaires-de-lentreprise (última consulta: 20.12.2021). O autor defende uma conceção pluralista da empresa social e da respetiva governança.

[xliv] Ivan Tchotourian , Jean-Christophe Bernier , Charles Tremblay-Potvin , «Les cinq mythes de la gouvernance d’entreprise : perspective économico-juridique nord-américaine», Revue internationale de droit économique 2017/2 (t. XXXI) , págs. 5 - 39, n.º 9, disponível em https://www.cairn.info/revue-internationale-de-droit-economique-2017-2-page-5.htm (última consulta: 20.12.2021). Os autores referem diversos autores partidários desta visão, incluindo Rippert e Milton Friedman, bem como opositores à mesma, designadamente Lynn Stout, e, realçando a dimensão social e humana da empresa, consideram o mito do acionista-proprietário como juridicamente falso e, mesmo, uma enormidade jurídica (n.ºs 11 e 30). Cfr. também Lynn Stoutet alii, The Modern Corporation Statement on Company Law (2016), disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2848833 , em cujo SUMMARY: FUNDAMENTAL RULES OF CORPORATE LAW, se lê: «Contrary to widely held ‘common sense’, shareholders do not own corporations; nor do they own the assets of corporations. Shareholders only own shares of stock – bundles of intangible rights, most particularly the rights to receive dividends and to vote on limited issues.» (n.º 2).

[xlv] Cfr. supra, notas 39 e ss. e infra, n.º 17, bem como, em geral, Evaristo Mendes, «Governança societária e justiça intergeracional», in Jorge Pereira da Silva / Gonçalo de Almeida Ribeiro, Justiça entre Gerações, UCE, Lisboa, 2017, p. 469-555, 474 e ss., e Apêndice, em https://www.evaristomendes.eu/files/p_01_10.pdf , p. 6 e ss.

[xlvi] Cfr., por ex., na doutrina estrangeira, Franco Bonelli, «Giurisprudenza e dottrina su acquisizioni di società e di pachetti azionari di riferimento», in Franco Bonelli / Mauro de Andrè, Acquisizioni di società e di pachetti azionari di riferimento, Giuffrè, Milão, 1990, p. 3 e ss.; Lawrence C. Silton, How to Buy or Sell the Closely Held Corporation , Prentice Hall Trade 1987; Simon Beswick, Buying and selling private companies and businesses, Butterworths, Londres/..., 2001; Susan Singleton , Beswick and Wine: Buying and Selling Private Companies and Businesses, Bloomsbury Professional, 2018 (eBook); bem como R. Chuilon / M-A Paillusseau, «Cessions de participations majoritaires», in Droit des Entreprises, Sociétés, Éditions Techniques - Juris-Classeurs , 1991, Fasc. 2508, em que se lê: “ A compra e venda de empresas assume muitas vezes a forma da «compra duma sociedade»”, mais exatamente, das partes ou ações que compõem o capital da sociedade que possui a empresa (n.º 1 ).

[xlvii] Cfr., por ex., Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), cit., p. 380 e ss., Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, «Compra e venda de empresa – A venda de participações sociais como venda de empresa («share deal») (2007), cit., p. 78 e s(s), Engrácia Antunes, «A empresa como objeto de negócios – “Asset Deals” versus “Share Deals”» (2008), cit., p. 722 e ss., Ferrer Correia / Almeno de Sá, referidos adiante, no texto (n.º 15), e o AcSTJ de 26.11.2014, também referido no texto (n.º 19). Veja-se, ainda, José Ferreira Gomes, M & A – Aquisição de Empresas e de Participações Sociais (2022), p. 33 e ss., 99 [aludindo à «efetiva transição da sociedade visada (ou da empresa-objeto) da esfera do vendedor para a esfera do comprador]

[xlviii] Veja-se também a posição de Chuilon & Paillusseau na penúltima nota - a compra e venda de empresas reveste muitas vezes a forma da «compra de uma sociedade», mas, juridicamente, não é de uma compra de sociedade que se trata, mas de participações sociais – e, adiante, de Ferrer Correia & Almeno de Sá, bem como a dupla perspetiva de Calvão da Silva.

[xlix] Cfr., por ex., Coutinho de Abreu, Da Empresarialidade. (1996), cit., p. 213, e, mais desenvolvidamente, Engrácia Antunes, A aquisição tendente ao domínio total, Coimbra Editora, 2001, p. 63 e ss., com mais indicações. Note-se que este foco na empresa societária – que também se encontra, designadamente, na constituição económica – é justificado, porque, na generalidade das situações, o que o comprador pretende, realmente, é a empresa ou até, mais restritamente, o acesso à respetiva clientela, a certo saber-fazer, etc.; situando-se a respetiva forma ou superstrutura societária num plano secundário.

[l] Cfr., por ex., Nina Lowatschek, «Wirtschaftlicher Eigentümer und Kontrollstruktur im Gesellschaftsrecht mit besonderem Blick auf die börsennotierte Aktiengesellschaft», Viena, 2018, disponível em https://ssc-rechtswissenschaften.univie.ac.at › Expose1 (consultado em julho de 2019); bem como a exposição de motivos do projeto governamental da AktG alemã de 1965, Begründung zum Entwurf eines Aktiengesetzes, de 1962, Drucksache IV/171, p. 93 O projeto encontra-se disponível em https://www.dnoti.de/informationen/gesetzesmaterialien/ (última consulta: dezembro de 2021).

Contra, por ex., Andreas von Planta, «Sind die Aktionäre wirklich Eigentümer der Gesellschaft? Ein Beitrag zur Diskussion um die Stärkung der Aktionärsrechte», in Matthias Oertle et alii (eds.), M & A Recht und Wirtschaft in der Praxis, Liber amicorum für Rudolf Tschäni, Dike Verlag AG, Zürich/St. Gallen, 2010, p. 397-409. Texto disponível em https://www.lenzstaehelin.com/uploads/tx_netvlsldb/Sonderdruck_Planta_01.pdf (última consulta: julho de 2019). Em tom crítico, citando Flume, cfr. também, por ex., Engrácia Antunes, Aquisição tendente ao Domínio Total. Da sua Constitucionalidade (2001), cit., p. 65. Note-se, contudo, que se está a falar de «proprietários económicos», não jurídicos, aludindo ao que está por trás da forma ou véu jurídico-societários. Cfr., aliás, a respeito do tráfico da empresa social, a generalizada aceitação, a par dos asset deals, dos share deals.

[li] Na Áustria, o próprio RCBE tem o nome de registo dos proprietários económicos, detentores diretos ou indiretos de ações, direitos de voto ou outra forma de controlo da sociedade: Wirtschaftliche Eigentümer Registergesetz (WiEReG), BGBl. I Nr. 136/201. Cfr. também o § 2 Z 1 da Lei e o texto do Ministério das Finanças de 26.04.2018, disponível em https://www.bmf.gv.at/finanzmarkt/register-wirtschaftlicher-eigentuemer/Uebersicht/2018-04-26_Erlass_2018.pdf?6fg037 (última consulta: julho de 2019).

[lii] Sociedades fictícias e unipessoais , Atlântida, Coimbra, 1948, p. 298, nota 1.

[liii] P. 314.

[liv] Note-se, em todo o caso, que o autor estava a referir-se ao domínio orgânico da sociedade (aliás em consonância com a conceção monista da participação social que sempre defendeu), não a uma possível titularidade externa da mesma, a que se alude adiante. E, paralelamente, também afirmava que a sociedade unipessoal não é «uma entidade materialmente distinta do possuidor das acções» (p. 315). Sobre o alcance desta última afirmação, cfr., Lições de Direito Comercial, II, Coimbra, 1968, p. 191 e ss.

[lv] Lições (1968), cit., p. 93.

[lvi] Ferrer Correia /Almeno de Sá, «Parecer (1992), in AAVV, A privatização da Sociedade Financeira Portuguesa, Lex, Lisboa, 1995, p. 259 e ss.

[lvii] P. 266 e 269.

[lviii] P. 273.

[lix] P. 269.

[lx] P. 300, conclusão 4.ª

[lxi] P. 274, 285 e s.

[lxii] Menezes Cordeiro, Parecer de 2.08.1991, «Vícios ocultos nos bens privatizados: subsídios para a análise da privatização da Sociedade Financeira Portuguesa - Banco de Investimento, S.A, e suas consequências», in AAVV, A privatização da Sociedade Financeira Portuguesa, Lex, Lisboa, 1995, p. 79-143, 109, 121 e s.

[lxiii] P. 121; cfr., ainda, p. 106 (acionistas detinham a sociedade), 122 e s., e 141. Num segundo parecer, «Privatização da Sociedade Financeira e vícios ocultos: das pretensões de reparação», ibidem, p. 145-158, alude também à «aquisição da SF» (p. 147), à venda da mesma (p. 155) e aos seus «novos titulares» (p. 157) e aos adquirentes da empresa (p. 158), e, na anotação ao acórdão (cfr. a nota 27), alude também aos «vícios na empresa» (p. 172 e ss.). Ainda no caso da SFP, falam também em venda desta, Galvão Telles, «Parecer de Direito», O Direito 125 (1993) III-IV, p. 333 ss. = AAVV, A privatização da Sociedade Financeira Portuguesa, Lex, Lisboa, 1995, p. 181-201, 188 e s., e Marcelo Rebelo de Sousa, Parecer de 10.09.1992, in AAVV, A privatização da Sociedade Financeira Portuguesa (1995), cit., p. 223-253, 237 (a transação dos títulos acionários envolve a «transferência do domínio sobre uma empresa»), 247 («adquirentes da Sociedade Financeira»), 250 e s. («comprou-se uma empresa», «os adquirentes compraram a sociedade», «forma jurídica de empresa», logo, adquiriram esta), observando, ainda, que as ações valem pelo património que representam (p. 251). Veja-se também a nota 27.

[lxiv] Pessoa Jorge, «Parecer de Direito» (1992), in A privatização da SFP (1995), cit., p. 161 e ss.

[lxv] Calvão da Silva, «Compra e venda de empresas», CJ XVIII (1993/II), p. 9-16, = «Parecer de Direito», de setembro de 1992, in AAVV, A privatização da Sociedade Financeira Portuguesa (1995), cit., p. 203-222, que aqui se segue, 207 e 216, = Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Almedina, Coimbra, 1996, p. 137-163, 140, 153 e 162; mas cfr., sob o título «A empresa como objecto do tráfico jurídico», o subsequente parecer de págs. 165 a 197, em que se refere à compra e venda de ações (conferentes do domínio societário) como relativa à empresa explorada pela sociedade (no caso, uma SA – Petrogal) (ao domínio da mesma) (p. 176 e s.) ou à sociedade como empresa coletiva (p. 175), citando Ferrer Correia & Almeno de Sá.

[lxvi] P. 164.

[lxvii] P. 171.

[lxviii] P. 163, 165 e s.

[lxix] P. 208. Note-se, contudo, que Calvão da Silva, num parecer posterior (de março de 1994, relativo à Petrogal), adotou um discurso próximo do de Ferrer Correia e Almeno de Sá: cfr. a nota 65.

[lxx] Tem interesse, ainda, a posição de Pinto Monteiro expressa em parecer mencionado no Acórdão do STJ de 26.06.2007, referido adiante (n.º 19).

[lxxi] K. Iwai, «Persons, Things and Corporations: The Corporate Personality Controversy and Comparative Corporate Governance», American Journal of Comparative Law , 47 (4), 1999, p. 583–632, tese reproduzida noutros textos, como « The nature of the business corporation: its legal structure and economic functions », The Japanese Economic Review, 53(3), 2002, p. 243-273. Cfr. também « Do Corporations Belong to Their Shareholders?: US-Style Shareholder Rights Orientation Will Not Become the Mainstream in the Twenty-First Century », Japanese Economy, 33 (4), 2006, p. 6-15.

[lxxii] F. BUCHWALD, «Zum Wesen des GmbH-Geschäfstanteils», GmbH-Rundschau 2/1962, p. 25 e s.

[lxxiii] P. Pais de Vasconcelos, A Participação social, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, p. 370 e ss.

[lxxiv] Veja-se, ainda, a respeito do tema das sociedades de ninguém, a seguinte passagem de Menezes Cordeiro: «Assim, admite-se que a própria “organização” adquira capital social, isto é: se torne sócia. “Magia jurídica” (Raúl Ventura), uma vez que isso equivale à promoção do objeto da propriedade a proprietário. Tecnicamente, o fenómeno das ações ou das quotas próprias é tornado possível pela própria personalização das sociedades.» [«Sociedades de ninguém e sociedades sem sócios», RDS XI (2019), 2, p. 275-302, 301].

[lxxv] Cfr., com mais indicações, Evaristo Mendes, «Governança societária e justiça intergeracional» (2017), cit., p. 475 e s., 533 e ss.

[lxxvi] Sobre esta, cfr. Evaristo Mendes, «Governança societária e justiça intergeracional» (2017), p. 476 e s., e Apêndice, disponível em https://www.evaristomendes.eu/files/p_01_10.pdf , p. 18 e ss. Acerca da doutrina da empresa gaulesa, cita-se a obra de referência Manifeste pour la Doctrine de L’entreprise, de Claude Champaud, com participação de Daniele Briand, Didier Danet e Rapahël Contin e, ainda, a colaboração de outros autores, Larcier, Bruxelas, 2011. Veja-se, ainda, Evaristo Mendes, ibidem, p. 480 e Apêndice, p. 30 e s.

[lxxvii] Cfr. Champaud et al., Manifeste pour la Doctrine de L’entreprise (2011), cit., p. 27 e ss., 157 e s., 281 e ss.

[lxxviii] Cfr., por ex., Bouthinon-Dumas / Antoine Masson, no prefácio à obra citada na nota anterior, p. 8.

[lxxix] Cfr. Champaud et al., Manifeste pour la Doctrine de L’entreprise (2011), cit., p. 43 e ss.

[lxxx] Cfr. Champaud et al., Manifeste pour la Doctrine de L’entreprise (2011), cit., p. 21 e s., 45, 53 e s., 62 e ss., e 152. Salienta-se que, segundo esta conceção, a finalidade da sociedade não é constituir um empresário coletivo, mas dar uma forma organizativa à empresa (Paillusseau), autonomizando-a, afetando-lhe certo património e dando-lhe uma gestão própria (p. 62 e ss.). Como resulta da noção de sociedade do art. 1832 do CC (correspondente ao art. 980 do CC português), «a condição sine qua non da existência do ser social reside na criação de uma empresa comum»; a finalidade da constituição da sociedade é a personificação e a organização da empresa (p. 155).

[lxxxi] Cfr. Champaud et al., Manifeste pour la Doctrine de L’entreprise (2011), cit., p. 22, 64, 222 e ss.

[lxxxii] Cfr. Champaud et al., Manifeste pour la Doctrine de L’entreprise (2011), cit., p. 190 e ss., e nota 148.

[lxxxiii] O Acórdão encontra-se disponível no sítio do Tribunal Constitucional na Internet: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/. Cita-se, ainda, em sentido concordante, Simões Patrício, de que se transcreve uma passagem ilustrativa.

[lxxxiv] O Acórdão encontra-se disponível em www.dgsi.pt., proc. 04A2890.

[lxxxv] Publicado, por ex., em AAVV, A privatização da Sociedade Financeira Portuguesa (1995), p. 33-76, e na ROA 55 (1995), p. 87 e ss., com anotação de Menezes Cordeiro (p. 123 e ss.) e Rita Cabral (p. 191 e ss.)

[lxxxvi] P. 49, 53 e 60.

[lxxxix] Disponível em www.dgsi.pt, proc. 08A2605.

[xc] Os casos referidos são apenas exemplificativos. Além deles, alude-se, por exemplo, no sumário do recente AcTRP de 14.01.2020 (Lina Baptista) - disponível em www.dgsi.pt, proc. 4738/15.0T8MAI-A.P1 (o aresto também aparece com a data de 22.06.2021) - a um « contrato atípico de transmissão indirecta da titularidade da sociedade». Porém, na fundamentação, embora também se fale na «transmissão da sociedade», entendeu-se haver uma «transmissão indirecta da titularidade da empresa», uma «compra e venda de participações sociais, como forma de aquisição indirecta da empresa», afigurando-se haver um lapso no sumário.

[xci] Publicado na CJ XXV (2000)/1, p. 220 e ss., proc. 9930197. No mais recente Ac.STJ de 23.02.2021 (Maria Clara Sottomayor), proc. 327/14.4T8CSC.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, a respeito também da transmissão da totalidade das participações, observa-se que, em tal caso, o «objeto [do contrato] se reveste de alguma complexidade na medida em que envolve a venda de ações de três sociedades comerciais, e simultaneamente a transferência de empresas, o que exigiu um trabalho prévio de avaliação da situação patrimonial das empresas a fim de determinar o seu valor, fixar o preço da transação e prevenir a ocorrência de prejuízos futuros para os adquirentes» (realce acrescentado).

[xcii] Disponível em www.dgsi.pt., proc. 07A1274, com pareceres de Menezes Cordeiro e de Pinto Monteiro juntos aos autos.

[xciii] Na 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, cfr., com ligeiro desenvolvimento da ideia, p. 256 e s.

[xciv] Disponível em www.dgsi.pt, proc. 4056/03.6TBGDM.S1. Tem interesse também o Ac.STJ de 14.06.2011 (Martins de Sousa), proc. 3222/05.4TBVCT.S2, relativo a um caso de compra e venda da totalidade das quotas de uma sociedade detentora de duas clínicas (estabelecimentos de fisioterapia), tendo-se provado que a intenção das partes fora transacionar as clínicas através da alienação das quotas; no qual Pedro Pais de Vasconcelos, à semelhança do que sucede no acórdão de 2007, aparece citado, já na segunda edição de Contratos atípicos, a respeito da possibilidade e das vantagens da transmissão de empresas através da alienação das participações sociais. Em causa estava, designadamente, a possibilidade de aplicar o regime da compra e venda de coisas defeituosas.

[xcv] A compra deu-se através de duas escrituras de compra e venda, com vendedores e datas diferentes; desconhece-se se se tratou de uma atuação coordenada, equiparável a uma transmissão global, uno actu, da totalidade das quotas. Numa das escrituras, o sócio principal da SpQ A declarou assumir inteira responsabilidade por qualquer dívida, ónus ou encargo anterior à cessão de quotas que viesse a ser imputado a esta.

[xcvi] Acrescenta este autor (Coutinho de Abreu) que «é também por ser assim que o preço da referida totalidade ou maioria das participações (o “preço de controlo”) é em geral superior à soma dos preços que adviria da compra, em separado, de cada uma das partes ideal ou realmente componentes daquela totalidade ou maioria»; e esclarece que o que se diz a respeito da empresa deve estender-se ao restante património social.

[xcvii] Também a respeito de uma impugnação pauliana, decidiu-se no AcTRC de 15.11.2016 (Luís Cravo): «Nem só para situações aparentes de ilicitude é curial e adequado invocar-se a teoria da desconsideração da personalidade das sociedades, antes deve ela “cobrir” um mais vasto leque de situações, nomeadamente quando se instrumentalizam os mecanismos jurídicos em ordem a conseguir uma fictícia separação de patrimónios e assim criar uma ilusão sobre a alienação em si, como seja a constituição de uma sociedade com um único sócio, para quem é transferida por este último um bem imóvel que detinha, quando o objectivo final/mediato era transferir directamente o imóvel para os futuros detentores da sociedade, que o vêm a ser, mas por via de uma singela cessão da totalidade das quotas em seu favor, realizadaa posteriori pelo dito único sócio da sociedadeab initio constituída». Cfr. www.dgsi.pt, proc. 970/14.1TBCLD.C1.

[xcviii] Disponível em www.dgsi.pt, proc. 282/04.9TBAVR.C2.S1. O Aresto é extenso, mas apresentam interesse para o presente estudo, no essencial, as págs. 124 e ss., máxime, 128 e ss.

[xcix] Cfr. Evaristo Mendes, «Liberdade de iniciativa económica», anotação ao art. 61 da CRP, in Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed. revista, coordenação de Jorge Miranda & Rui Medeiros, UCE, Lisboa, 2017, p. 855 e ss.,863 e s., 872 e s., 876 e s., e «Modelo económico constitucional e Direito comercial», in Estudos em memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, UCE, Lisboa, 2012, p. 167-251, 167 e ss.

[c] Cfr., por ex., o RGIC (DL 298/92), o RJASR (Lei 147/2015), o regime das agências de câmbio (DL 3/94), o RGOIC (Lei 16/2015), quanto às sociedades de investimento, etc. No que toca ao uso do termo empresa como sinónimo de entidade empresarial, cfr., por ex., o RJASR e o regime jurídico da atividade transportadora rodoviária de mercadorias (DL 257/2007), atividade essa reservada às sociedades comerciais e cooperativas e dependente de licença temporária renovável e intransmissível (art. 3), em cujo o art. 9.2 se dispõe: «Para efeitos de início de atividade, as empresas devem dispor de um capital social mínimo de (euro) 125 000 ou de (euro) 50 000, no caso de exercício da atividade exclusivamente por meio de veículos ligeiros».

[ci] Cfr., por ex., Menezes Cordeiro, in Código Civil Comentado, I – Parte Geral, coord. do próprio, Almedina, Coimbra, 2020, p. 429 e s. (Introd. aos arts. 157 a 194, n.º 33, n. 112 e ss.), Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010, n.º 36, p. 146 e ss. (tipicidade taxativa fechada, embora os tipos legais, mormente das sociedades, apresentem alguma elasticidade), o AcTRL de 23.04.2009 (José Eduardo Sapateiro), proc. 9820/2008-6, disponível em www.dgsi.pt, Fátima Gomes, anotação ao art. 157 do CC, in Comentário ao CC, I, UCE, Lisboa, 2014, ed. da FDUCP, p. 345 (nota I), Paulo Olavo Cunha, ibidem, anotação ao art. 162, p. 355 (nota 4), e J. Sousa Ribeiro, «As fundações no CC: Regime atual e projeto de reforma», Lusíada. Revista de Ciência e Cultura, 2001 (n.ºs 1 e 2), p. 59-85, 69 e s., citado por Henrique Sousa Antunes, naquele Comentário ao CC, I, Lisboa (UCE) 2014, p. 407, nota 4.IV ao art. 185 do CC.

[cii] Catarina M. Pires, Aquisição de empresas e de participações acionistas (2019), cit., p. 16.

[ciii] Como, em boa medida, também se faz, na linha do CC italiano, com aempresa (atividade económico-produtiva organizada) e o estabelecimento (organização de suporte da empresa).

[civ] Pense-se, por ex., no CSC, hoje o principal diploma do direito comercial; mas veja-se também a LSP (Lei 53/2015) e os estatutos legais relativos às diversas profissões liberais reguladas, o CIRE, que contém uma regulação geral da empresa em crise, incluindo a societária, etc.

[cv] Cfr. também, em França, Champaud et al., Manifeste pour la Doctrine de L’entreprise (2011), cit., p. 155.

[cvi] O foco são as sociedades que funcionam como efetivas estruturas de acumulação de capital e que, pela correspondente dimensão económico-patrimonial, têm especial interesse como objeto do tráfico jurídico. Deixam-se de lado, portanto, como se tem vindo a afirmar, quer as SpQ e SA profissionais, quer as SpQ e SA de prateleira, ainda não ativadas ou desativadas, embora estas também representem uma criação com algum valor capaz de justificar a sua consideração como objeto jurídico, e, ainda, aquelas pequenas SpQ constituídas por duas ou três pessoas que exercem diretamente, no quadro da sociedade, uma atividade não profissional, sem recurso a colaboradores ou com recurso limitado aos mesmos, centros de atividade produtiva formalmente autónomos, mas sem verdadeira dimensão empresarial e com reduzido significado patrimonial (não raro reduzido ao «valor da firma», isto é, da estrutura jurídica registada).

[cvii] No anexo ao presente texto, encontra-se uma representação figurativa do fenómeno.

[cviii] Realça-se esta ideia: apesar de as duas dimensões assinaladas serem distinguíveis e de, nos CAPs societários empresariais, a infraestrutura produtiva poder ser separada ou autonomizada (qualificando-se como uma empresa em sentido material), há uma interpenetração das duas componentes. Toda a atividade se desenvolve sob uma firma, elemento primordial da superestrutura, e a imagem de mercado, veiculada por ela e por outros sinais distintivos como o logótipo e as marcas, é uma imagem de conjunto; a administração é comum, o órgão de fiscalização estende a sua ação à infraestrutura e o crédito e coesão ou desunião dos sócios tem um impacto no todo, positivo e negativo; a pessoa dos sócios pode estar presente em ambas as dimensões (facto relevante para o problema da obrigação de não concorrência a que se alude a final); a sede da sociedade é o local de referência central da unidade produtiva, fazendo parte da sua localização geográfica; o objeto da sociedade indica a atividade exercida (ou cujo exercício é autorizado); o capital vem de cima, forma-se em baixo e projeta-se em cima; certas licenças ou autorizações para operar são «pessoais», da pessoa coletiva, mas referem-se ao todo; a personalidade coletiva unifica o todo; o negócio ou exploração económica (empresa em sem sido material) pode ser bom e próspero em si mesmo mas encontrar-se estrangulado financeiramente pelo quadro patrimonial em que se insere; a rendibilidade do negócio pode ser favorecida pela presença no património social de elementos valiosos não afetos à exploração; etc.

[cix] Este poder de designação e substituição dos titulares do órgão de administração (cfr. os arts. 256.2 e 391) coenvolve o poder de, pelo menos, influenciar indiretamente a atividade empresarial, mesmo quando este órgão é independente, como sucede nas SA (arts. 373.3 e 405). Nas SpQ, o poder de dispor da empresa e do património depende em geral de deliberação dos sócios [art. 246.2 c)/d)], mas a aprovação desta cabe no poder de domínio em apreço.

[cx] Cfr., por ex., Philippe Merle, Droit commercial – Sociétés commerciales, 17.ª ed., Dalloz, Paris, 2014, p. 388 (n.º 370), 866 e ss. (nºs 775 e ss.), a respeito do tráfico de controlo das sociedades não cotadas, com amplas indicações, incluindo as relativas às garantias legais do comprador contra a evicção de índole pessoal (obrigação de não concorrência) e eventuais vícios ocultos relativos ao património social (p. 871 e ss.), e aludindo também às garantias patrimoniais convencionadas diretamente pelas partes (p. 876 e ss.), importantes, dado o alcance limitado que a proteção legal contra os vícios confere. Quanto ao tráfico de controlo das sociedades cotadas, sobretudo OPAs, cfr. p. 840 e ss. (n.ºs 764 e ss.).

[cxi] Distintas da posição global do sócio, conferida pela titularidade (ou contitularidade) de uma ou mais quotas ou ações (participação social em sentido subjetivo).

[cxii] Cfr. o esquema constante do anexo.

[cxiii] A falta do consentimento, eventualmente suprível judicialmente, determina a anulabilidade do negócio, nos termos do art. 1687 do CC.

[cxiv] Como consta do esquema anexo.

[cxv] Cfr. o art. 13.1 do CCom. O negócio, estabelecimento ou empresa constitui, na sua essência, um centro de atividade produtiva informal (uma espécie de ator do tráfico jurídico sem subjetividade jurídica, i.e, centro de atividade, mas não de imputação jurídica), que o mercado reconhece como tal (ao qual reconduz certa gama de bens ou serviços), dotado de certa capacidade produtivo-reditícia; e é, enquanto tal, um objeto jurídico - objeto do tráfico jurídico e de atribuição jurídica. Os elementos patrimoniais que o compõem são meramente instrumentais em relação à respetiva função produtivo-reditícia, a que estão (voluntariamente) afetos.

[cxvi] Este regime merece ser revisto, quanto à responsabilidade subsidiária do cônjuge não comerciante. Cfr. sobre o tema Cristina Dias, Responsabilidade por dívidas do casal, Almedina, Coimbra, 2021, I, p. 210 e ss., 260 e ss., e II, p. 204 e ss.

[cxvii] Cfr., neste sentido, V. G. Lobo Xavier, «Se pode o cônjuge do empresário, ao abrigo do artigo 1678º, nº 3, do Código Civil, intervir na gestão do estabelecimento mercantil, quando este seja um bem comum do casal», RDES XXI (1979), p. 75-87, e V. G. Lobo Xavier / M. Henrique Mesquita - «Sobre o art. 1682º, nº 1, al. a), do Cód. Civil: desnecessidade do consentimento do cônjuge do empresário para a alienação de imóveis que se integre no objecto da empresa», RDES XXI (1979), p. 59-73.

[cxviii] O centro de atividade económico-produtiva em causa é também, em certa medida, considerando a respetiva autonomia patrimonial, um centro de imputação jurídica; embora, dada a falta de subjetividade jurídica, a sua autonomia jurídica não seja completa: as situações jurídicas nele compreendidas são formalmente atribuídas (imputadas) a quem for (sendo) seu titular. Como decorre do exposto, rejeita-se a ideia de que o EIRL seja um simples património autónomo. Ele é um «ator» jurídico-económico e uma peça do sistema produtivo; a sua essência está na atividade, com a respetiva estrutura humano-técnico produtiva e de mercado, que lhe confere certa capacidade produtivo-reditícia (que faz dele um negócio), não simplesmente nos bens afetos à mesma e sujeitos a certa condição jurídica. Mesmo a possível tentação de ver nele um património autónomo dinâmico constitui uma visão distorcida das coisas. Ele é um ator produtivo «aparelhado», localizado geográfica e institucionalmente (no mercado), formal e publicamente delimitado, exercendo a atividade sob uma firma, tendo um valor de mercado enquanto tal e constituindo enquanto tal um objeto jurídico.

[cxix] Cfr., por ex., Henrique Mesquita, Oferta pública de venda de ações e violação do dever de informar (1996), cit., p. 105 e 107 [e, já num texto anterior, a indicação fornecida por Fátima Ribeiro, em «Notas sobre a natureza da personalidade jurídica das pessoas coletivas» (2016), cit., p. 104, nota 103], o citado Acórdão do STJ de 11.03.2010 (supra, n.º 19), e, noutro quadro conceptual, as referências constantes de Diogo Costa Gonçalves, Pessoa coletiva e sociedades comerciais (2015), cit., p. 397 e ss.

[cxx] Note-se que a empresa, em sentido material, societariamente enformada e cujo titular é a pessoa jurídica societária, é destacável desta. Nesta medida, ela também constitui um CAP, informal, autonomizável, possível objeto de negócios jurídicos (cfr. supra, n.º 31). Porém, o CAP societário é, ele próprio, um «bem» de investimento («meio de produção»), coisa produtiva ou «capital»; tem valor em si (substancialmente conferido pela empresa ou práxis profissional, mas não só: pense-se numa autorização para o exercício da atividade conferida à pessoa jurídica societária não destacável com a eventual alienação da empresa) e é unitário: transacionável, na sua totalidade, mediante alienação uno actu das quotas/ações, de que nos ocupamos no presente texto.

[cxxi] Cfr. o art. 61.1 da CRP (liberdade de empresa) e, no caso das SpQ e SA profissionais, o art. 47.1 (liberdade profissional); e tenha-se presente que o exercício destas liberdades tem implicado um princípio de apropriação dos resultados da correspondente atividade produtiva, em que se conta o CAP. Cfr. Evaristo Mendes, anotação ao art. 61 da CRP, in Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed. revista, coordenação de Jorge Miranda & Rui Medeiros, UCE, Lisboa, 2017, p. 878, e Jorge Miranda / Rui Medeiros, anotação ao artigo 47, ibidem, p. 702.

[cxxii] Na realidade, o poder de domínio corporativo é um poder de autodomínio da própria sociedade, encabeçado, antes de mais, no órgão de base, a coletividade social. Todavia, o sentido em que ele é exercido pertence aos titulares deste órgão, agindo coletivamente, por maioria censitária; podendo, neste sentido, falar-se num encabeçamento do mesmo nos sócios, em modo coletivo. Daí que se fale em poder maioritário, sendo este um poder interno, intra-societário, regulado pelo direito das sociedades; enquanto que o distinto direito de «propriedade» por quotas ou ações, que os fundadores, aderentes e/ou sucessores detêm sobre a sociedade enquanto organização coletiva de membros variáveis (com a respetiva substância económico-patrimonial) e de que podem dispor conjuntamente, no todo ou em parte, é exterior à mesma e rege-se pelo direito patrimonial geral.

[cxxiii] Trata-se, não de um objeto estático, mas dinâmico, a que a personificação confere, como se referiu, uma especial unidade e operacionalidade. Cfr. também supra, I.

[cxxiv] Não é este o momento próprio para tratar do conceito de «propriedade». Sempre diremos, no entanto, que há vantagens, incluindo discursivas, em considerar a propriedade regulada no CC – pensada para as coisas corpóreas – apenas como o modelo ou paradigma do instituto. Mesmo, sem estender o conceito aos direitos patrimoniais em geral, como faz o art. 62 da CRP, numa conceção alargada, o que existe são diferentes formas de propriedade, uma pluralidade de propriedades - com configurações e regimes diferenciados, designadamente em função do objeto do direito e do contexto em que se inserem, embora a matriz seja a da propriedade do CC - como se colhe no próprio art. 1303 deste Código e, por ex., no art. 310 do CPI. Cfr., neste sentido, com mais indicações, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 4.ª ed., Principia, Cascais, 2020, p. 56 e 88, e, já anterior e mais desenvolvidamente, «Direito Comunitário e Direitos Reais», in AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. IV, Almedina, Coimbra, 2003, p. 451-466, 458 e ss., 461 e s., 464 e s., e «O penhor do estabelecimento mercantil», in AAVV/FDC, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977 , vol. III – Direito das Obrigações, Coimbra editora, 2007, p. 63-77, 73 e ss. (n.º 7), aludindo, designadamente, dentro de um conceito genérico de «propriedade empresarial», à propriedade do estabelecimento comercial e à propriedade corporativa, em causa no presente texto.

[cxxv] No caso da SFP, apesar de se aludir à capacidade lucrativa da mesma, quer no acórdão, quer nos pareceres envolvidos no processo, esta análise faltou (ou não se realizou nos em devidos termos); o que foi responsável, em boa medida, pelo sobrevalor da «indemnização» atribuída ao comprador.

[cxxvi] Acerca das NIA/IVS, aprovadas pelo International Valuation Standards Council e já com largo crédito internacional e na UE (designadamente junto da Autoridade Bancária Europeia), cfr. o site desta entidade, https://www.ivsc.org/standards/ . Quanto ao direito alemão, cfr. as indicações fornecidas por Evaristo Mendes, «Valor das participações sociais. Valor legal e valor estatutário. Discrepância de valores», DSR 13 (2015), p. 107-152, 113 e s. e notas, bem como a nota 47, p. 124 e s., e Grossfeld / Egger / Tönes, Recht der Unternehmensbewertung, 8.ª ed., RWS, Colónia, 2016, p. 41 e ss., 46 e ss., 64 e ss. e 333 e s., 355 e ss.

[cxxvii] No fundo, encontramos aqui, em novos moldes, a ideia de que as ações são utilizadas pelo legislador com mais que um significado: frações ou unidades elementares de capital e participações sociais, além de valores mobiliários.

[cxxviii] No fenómeno da associação à quota, o contrato pode ter simples natureza obrigacional; mas nada impede que o titular da quota estabeleça, por acordo com o associado, uma contitularidade da mesma, sem eficácia em relação à sociedade.

[cxxix] Se houver uma simples transmissão de participações, incluindo participações conferentes do domínio corporativo, a solução pode, no entanto, ser diferente. É problema que merece reflexão autónoma, juntamente com a reanálise da figura do sócio fiduciário em geral, à luz das coordenadas expostas e de outras coordenadas do sistema, como a da transparência de participações qualificadas. Igual reflexão merece a posição do acionista meramente investidor de sociedade cotada, que não se sente membro da mesma, nem tal qualidade lhe interessa, nem dela é razoável extrair consequências jurídicas desfavoráveis como a da qualificação de uma sua posição credora como de suprimento, degradando o crédito para a última posição dos créditos subordinados.