EVARIST​O MENDES

Evaristo Mendes

Valor da participação de capital de uma sociedade de advogados.

Acórdão do STJ de 22.02.2022 [i]

Sumário (conclusões do Tribunal)

I - O art. 21.º, n.º 8, do RJSA (aqui aplicável) estabelece que o sócio exonerado tem direito a receber da sociedade a quantia apurada nos termos previstos no contrato de sociedade ou em acordo escrito de todos os sócios.

II- No caso, as cláusulas dos estatutos da sociedade não fornecem um critério para a fixação do valor da participação de capital do sócio exonerado, limitando-se a remeter para a deliberação da Assembleia Geral.

III - Por seu turno, as regras societárias estabelecidas não constam de documento escrito assinado por todos os sócios da recorrida.

IV - Os factos provados não revelam uma manifestação de vontade directa e expressa de aceitação pelo colectivo de sócios da recorrente das regras societárias estabelecidas respeitantes à exoneração de sócio.

V - Por outro lado, só seria possível extrair uma declaração tácita de aceitação das regras societárias relativas à exoneração de sócios se existisse uma exteriorização escrita de todos os sócios, da qual se deduzisse, com toda a probabilidade, a vontade de aceitar, em concreto, essas regras de exoneração.

VI - Todavia, essa exteriorização não consta nem resulta dos factos provados ou dos documentos invocados pela recorrente.

VII - Tendo sido a recorrente quem inviabilizou a aplicação das regras societárias, ao não ter promovido a sua subscrição por todos os sócios, nem ter tomado as deliberações exigidas pelas cláusulas estatutárias, a pretensão formulada na acção pela recorrida, que pressupõe a não aplicação dessas regras sobre a exoneração, apesar de ter intervindo na sua aprovação, não configura um abuso do direito.

VIII - Afastada a aplicação das regras societárias e não fornecendo os estatutos da sociedade um critério para a fixação do valor da participação de capital, este valor teria de ser fixado com recurso à comissão arbitral – art. 21.º, n.ºs 9 e 10, que remete para as regras dos arts. 13.º e 17.º, todos do RJSA .

IX - Não resolvendo estas regras a questão do cálculo do valor da participação de capital para efeito de exoneração de sócios, tem de recorrer-se às normas do CC supletivamente aplicáveis, previstas, em especial, nos arts. 1021.º e 1018.º (art. 2.º do RJSA).

X - Decorre do disposto no art. 1021.º, n.º 1, do CC, que o sócio exonerado tem direito ao contravalor da participação, que corresponde à quota parte do valor da sociedade na data relevante.

XI - A determinação do valor da sociedade não pode limitar-se, num critério estático e atomista, a considerar os valores parcelares do activo líquido do património social que constam do balanço (critério contabilístico estrito).

XII - Por um lado, mesmo nessa perspectiva, sendo comum a subavaliação dos activos (desde logo, por aplicação do princípio do custo histórico, do princípio da prudência e pela existência de reservas ocultas), esses valores devem ser corrigidos para o seu valor real e efectivo.

XIII - Por outro lado, a esse valor patrimonial deve acrescer o valor que advém de activos imateriais ou intangíveis, da organização em si e da posição no mercado, ou seja, a reputação, notoriedade, relação com clientes e acreditamento no mercado, que integram o seu valor de aviamento (ou goodwill).

XIV - No caso, tratando-se de uma sociedade de advogados, mais se acentua esta vertente.

XV - Determinado o valor da sociedade, este deve ser repartido pelos sócios na proporção da parte que lhes corresponde nos lucros, em função do sistema de pontos que vigorava na sociedade, devendo deduzir-se o valor da clientela desviada (arts. 21.º, n.º 9, e 17.º, n.º 6, do RJSA).

(omissis)

IV.

1. Regime jurídico aplicável ao cálculo da comparticipação de capital da recorrida, no contexto da sua exoneração.

Na fundamentação do Acórdão recorrido (AR), depois de se indicarem as normas legais e cláusulas estatutárias e as regras societárias respeitantes a esta questão, escreveu-se o seguinte:

Provou-se, ainda, que não se procedeu a qualquer assembleia geral na qual se tenha deliberado acerca do valor das participações de capital das demandantes para efeitos do artigo 9/6 dos Estatutos e, até à exoneração das Demandantes, não se procedeu à determinação do valor da demandada à luz do artigo 24º/1 das RS/2005 (n.ºs 8,9,10 e 11 dos factos).

No percurso intelectual do T.A. parte-se de uma visão interpretativa qualificada como coerência interna e coerência relativa, ponderando neste âmbito os efeitos que o negócio visa produzir em conformidade com as declarações das partes (art.º 346º CC) e, neste contexto, o Tribunal enfrentou a questão de saber qual o quórum deliberativo (fls. 7308 e 7323) estatutariamente exigido, por confronto entre os números 6 ( voto favorável de todos os outros sócios titulares de participação de capital e de, conjuntamente, metade dos votos dos sócios apenas titulares de participação de indústria ) e 7 ( as deliberações que fixem o valor referido no número 1 da cláusula primeira exigem o voto favorável de três quartos dos votos dos sócios titulares de participação de capital ) da cláusula 9ª dos estatutos na medida em que ambos se referem à fixação do valor das participações sociais.

Todavia, salvo o devido respeito, por melhor entendimento, tal como parece resultar do próprio texto, o quórum previsto na cláusula 9ª/6, é o exigido para aprovação do valor das participações sociais em Assembleia Geral, inclusivamente nos casos de amortização do capital sempre que esta tenha lugar.

Por sua vez, o quórum previsto na cláusula 9ª/7 é aplicável a todos os outros casos.

Note-se que a existência de acordo escrito para efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 8, do RJSAdv. foi alegada pela Demandada, e sobre ela impendia o ónus da prova de tal factualidade, nos termos do disposto no artigo 342º, n.º 1, do Código Civil ("CC").

A Demandada não logrou fazer prova de tal facto.

O T.A., admite a possibilidade de acordo tácito por parte de alguns dos sócios. No entanto, não o distinguindo a lei, não nos parece ser autorizado ao intérprete fazê-lo e, por isso, salvo melhor opinião, o acordo de todos os sócios exigido por lei, tem de ser por eles expresso, por escrito.

Ainda no âmbito da questão de saber se ao caso são aplicáveis as Regras Societárias ou as normas do Regime Jurídico das Sociedades de Advogados vigente ao tempo que ocorreu a exoneração da recorrente, importa ter presente que na lógica do T.A. o regime das RS2005 é aplicável em virtude de não estar demonstrado o respetivo desuso (fls. 7337).

Todavia, não é possível perscrutar o percurso intelectual do Tribunal uma vez que ele próprio refere, a propósito da questão III onde se pergunta “ quais as consequências a retirar do facto de a Assembleia Geral da demandada não ter procedido ao apuramento do valor das participações de capital dos sócios (questões litigiosas números 1 a 6 )”:

Como resulta da matéria de facto dada como provada, «Até à exoneração das Demandantes não foi proposta em qualquer Assembleia Geral da P…, nem foi aprovada pela mesma, para efeitos do nº 1 da Cláusula Décima-Primeira dos Estatutos, a prefixação do valor das participações do capital de quaisquer sócios de capital, nomeadamente das participações das Demandantes». (nº 9), «até à exoneração das Demandantes não se procedeu, anualmente, em assembleia geral de aprovação de contas, à determinação do valor da Demandada prevista no nº 1 do artigo 24 das RS2005» (nº 10), «a Assembleia Geral da Demandada nada deliberou, relativamente às Demandantes, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 6 da cláusula 9ª dos Estatutos» (nº 11) «as Demandantes não foram convocados, mesmo durante o ano de 2007, para qualquer Assembleia para efeitos de prefixação do valor» (nº 12) e, por último, «O Concelho de Administração da Demandada nunca aprovou o coeficiente de atualização previsto no nº 2 do artigo 24º das Regra Societárias» (nº 21 da matéria dada como provada) ” - (fls. 7337).

Estes factos são demonstrativos de que, na realidade, a Demandada não adotou as diligências para levar à prática, cabalmente as regras RS2005, em ordem a tornar possível a fixação do valor das participações de capital da Demandante, nem a determinação do valor da Demandada e o CA não aprovou o coeficiente de atualização previsto no nº 2 do artigo 24º das mesmas Regras.

Quer dizer que, à luz dos normativos tidos por aplicáveis, pelo T.A., verifica-se que a própria Demandada inviabilizou a possibilidade de cálculo do valor dos direitos da Demandante na sequência de exoneração.

Ora, a esta luz não pode a mesma Demandada beneficiar de um comportamento que lhe imputável e que viola diretamente as regras por ela assumidas, tornando, assim, a nosso ver, irrelevante a alegação de participação ativa da Demandante na elaboração das Regras Societárias.

Salvo o devido respeito, a interpretação da Demandada e do T.A., levaria à conclusão de que é legítima a conduta omissiva da Demandada que, na prática, como se viu, paralisou os passos necessários à efetivação dos direitos da recorrente face às RS2005.

Assim, a Demandada criou regras próprias sobre a matéria da exoneração dos sócios que se desviam do regime jurídico estabelecido em geral e, depois, não criou as condições previstas nas mesmas regras para tornar efetivos os direitos que as próprias regras preveem.

Porém, a criação de regras que se traduzem no exercício da liberdade contratual pela sociedade não pode ter por finalidade a paralisação dos direitos dos sócios face à sociedade. Há todo um comportamento expetável, imposto pela confiança, de modo que não haja contradição no comportamento assumido pela demandada, sob pena de, no limite, por iniciativa e vontade dela própria legitimarmos, afinal um comportamento antijurídico.

Esta seria razão bastante para, no presente caso, termos por inaplicáveis as RS2005.

Assim, por todo o exposto, entende-se que as Regras Societárias de 2005 não são aplicáveis in casu e não podem ser tidas como acordo escrito de todos os sócios, para efeitos do artigo 21. °, n.º 8, do RJSAdv.

Dito isto, naturalmente que não pode subsistir o valor encontrado pelo TA., baseado na aplicação destas mesmas Regras.

A recorrente discorda, invocando, em síntese, estas razões:

- As Regras Societárias (RS) consubstanciam um acordo escrito entre todos os sócios, porquanto:

- a lei apenas exige que o acordo seja reduzido a escrito, não impondo que o mesmo seja assinado por todos os sócios;

- a exigência de forma não impede que a declaração seja emitida tacitamente;

- Existe um acordo escrito assinado por todos os sócios da recorrente – as Regras societárias de 2003 (RS2003);

- Comportamento manifestamente abusivo da recorrida;

- A recorrente não inviabilizou a possibilidade de cálculo do valor dos direitos da recorrida na sequência da exoneração.

Vejamos.

À data em que se verificou a exoneração da recorrida estava em vigor o Regime Jurídico das Sociedades de Advogados (RJSA), aprovado pelo DL 229/2004, de 10/12, que alterou o regime anterior, tendo por referência, como se refere no respectivo preâmbulo, alguns princípios fundamentais, desde logo, o princípio da liberdade contratual, permitindo-se a cada sociedade de advogados optar pelo regime que melhor entender, à luz das suas características próprias e dos advogados que a integram .

Como corolário deste princípio , prevê-se, designadamente, a possibilidade de o contrato de sociedade ou acordo de sócios regular a forma de calcular o valor da amortização das participações de capital em caso de (…) exoneração de sócio.

Concretizando esse propósito, prevê-se no art.º 21º, a possibilidade de os sócios se exonerarem da sociedade (nº 1), estabelecendo-se que o sócio exonerado tem direito a receber da sociedade a quantia apurada nos termos previstos no contrato de sociedade ou em acordo escrito de todos os sócios (nº 8).

Com interesse para esta questão, releva o que se prevê na Clª 9ª dos Estatutos da sociedade (ES) recorrida, nos nºs:

6. As deliberações que aprovem o valor da participação de capital de um sócio, seja por amortização, em qualquer dos casos em que esta tenha lugar para estabelecer pela sociedade para acordo com sócio ou os seus herdeiros exige o voto favorável de todos os outros sócios titulares de participação de capital e de, conjuntamente, metade dos votos dos sócios apenas titulares de participação de indústria.

7. As deliberações que fixem o valor referido no número 1 da cláusula décima-primeira exigem o voto favorável de 3/4 dos votos dos sócios titulares de participação de capital .

E, bem assim, na Clª 11ª

1. Anualmente, a assembleia geral que aprovar as contas do exercício anterior fixará o valor das participações de capital dos sócios para o ano que estiver em curso.

2. Sempre que, qualquer que seja a causa, a sociedade deva liquidar ao sócio, ou seus herdeiros, o valor da sua participação de capital, será este o que resultar do disposto no número um desta cláusula, corrigido pelas variações significativas do activo social que tenham ocorrido até à data do facto que for causa do direito do sócio, ou seus herdeiros, a receber aquele valor, sem prejuízo do disposto na lei quanto à fixação deste por comissão arbitral.

3. Em caso de fixação do valor da amortização por comissão arbitral, esta terá, obrigatoriamente, em atenção, no cálculo do montante total de amortização, o valor referido no número supra .

Por outro lado, segundo as Regras Societárias de 2005 (RS2005)

Dispõe o art.º 23º, nº 1:

No caso de cessação voluntária de actividade em P… com continuação do exercício da profissão fora de P…, o S que se apartar terá direito a ser reembolsado de 50% do valor da sua participação de capital, determinado nos termos do artigo 24°, infra.

E, nos termos do art.º 24º, com a epígrafe Determinação do valor de P… e das participações dos Sócios:

1. Anualmente, na AGS de aprovação das Contas de P…, proceder-se-á à determinação do valor da mesma, reportado a 31 (trinta e um) de Dezembro do ano anterior, para efeitos de amortização das Participações de Capital por morte ou incapacidade permanente e absoluta do respectivo titular.

2. O valor de P… corresponde ao valor dos investimentos realizados nos anos anteriores, actualizado anualmente pela aplicação de coeficiente a determinar anualmente pelo CA, acrescido do valor dos investimentos feitos no ano em curso.

3. O valor de amortização das quotas será o correspondente ao activo imobilizado corpóreo líquido de amortizações, excluindo a «Colecção P…» e a clientela, actualizado de acordo com a lei.

4. O valor da participação de cada S é determinado em função da percentagem relativa dos P por ele detidos relativamente à totalidade dos P .

Como se referiu, o art.º 21º, nº 8, do RJSA estabelece que o sócio exonerado tem direito a receber da sociedade a quantia apurada nos termos previstos no contrato de sociedade ou em acordo escrito de todos os sócios.

Decorre das cláusulas citadas dos ES que, como foi entendido no Acórdão do Tribunal Arbitral (TA) e no Acórdão recorrido (AR), essas normas não fornecem um critério para a fixação do valor da participação de capital do sócio exonerado, limitando-se a remeter para a deliberação da Assembleia Geral (AG).

Importa, porém, notar que a clª 11ª dos ES impõe que o valor das participações de capital dos sócios seja fixado anualmente em AG; é dessa fixação que resulta o valor da participação de capital que a sociedade deve liquidar ao sócio pela exoneração deste.

Por outro lado, com se prescreve na clª 9ª, nº 6, a aprovação do valor da participação social de um sócio, por amortização, exige o voto favorável de todos os sócios de capital e, conjuntamente, metade dos votos dos sócios (apenas) de indústria.

Ora, como resulta da matéria de facto provada – pontos 9 e 11 – não foi tomada em AG da recorrida nenhuma das referidas deliberações.

Saliente-se, porém, o que se prevê na clª 9ª, nº 8, dos ES: podem os sócios tomar deliberações unânimes por escrito, com dispensa de reunião de assembleia geral .

Assim, à semelhança do regime estabelecido para as sociedades comerciais (art.º 54º, nº 1, do CSC), havendo acordo de todos os sócios quanto ao sentido da deliberação, pode ser dispensada a reunião formal, contanto que tal deliberação conste de escrito assinado por todos [4] .

Daí decorre que a falta de deliberação da AG sobre a fixação do valor da participação de capital de um sócio, em caso de exoneração, pode não ter a relevância que lhe é atribuída no AR e pela recorrida: assim será se, como se admite, aliás, no art.º 21º, nº 8, do RJSA, existir acordo escrito de todos os sócios sobre essa fixação.

No que respeita à existência desse acordo, as decisões do TA e do AR divergem, assim como, naturalmente, o entendimento, quer da recorrente, quer da recorrida.

Como se referiu, no AR afirma-se que o acordo de todos os sócios exigido por lei tem de ser por eles expresso, por escrito.

A recorrente discorda, aderindo à fundamentação do Acórdão do TA, defendendo que apenas se exige que o acordo seja reduzido a escrito e não que tenha de ser assinado por todos os sócios; de todo o modo, nada impede que a declaração seja emitida tacitamente, como ocorre, no caso, com as RS2005.

Sobre essa primeira afirmação, respeitante à assinatura, a recorrente, com o devido respeito, não tem razão.

Conforme dispõe o art.º 373º, nº 1, do CC, os documentos particulares devem ser assinados pelo seu autor.

Esta norma impõe, assim, o dever ou o encargo da assinatura, que serve para "perfilhar" a declaração, reconhecendo-a como própria. A subscrição revela, pois, a assunção da autoria ou paternidade da declaração, sendo condição essencial e indispensável do documento [5] .

Ora, no caso, as RS2005 não constam de documento escrito assinado por todos os sócios da recorrida. Não pode, pois, considerar-se que essas Regras constituem um "acordo escrito de todos os sócios".

Não obstante, salvo exigência especial da lei, consagra o art.º 217º, nº 1, do CC a equivalência entre a declaração expressa e a declaração tácita [6] .

A distinção entre ambas baseia-se na "avaliação objectiva da finalidade do enunciante" [7] .

Assim, "deve ser tido como declaração expressa o comportamento finalisticamente dirigido a exprimir ou a comunicar algo. Declaração tácita será então o comportamento do qual se deduza com toda a probabilidade a expressão ou a comunicação de algo, embora esse comportamento não tenha sido finalisticamente dirigido à expressão ou à comunicação daquele conteúdo" [8] .

Neste sentido, como decorre do citado preceito legal, a declaração expressa revela-se através de um "meio directo de manifestação da vontade"; a declaração tácita é um meio indirecto de expressão, resultando de qualquer comportamento, desde que concludente ou suficientemente significativo, ou seja, se a declaração dele se deduz com elevado grau de probabilidade.

Por outro lado, a natureza formal da declaração não obsta a que ela seja emitida tacitamente, exigindo-se apenas no nº 2 do art.º 217º que a forma solene tenha sido observada quanto aos factos de que a mesma se deduz.

No caso, a recorrente alega que ao fazerem uso das Regras Societárias, ao reunirem e decidirem ao abrigo das mesmas, ao invocá-las e ao receberem anualmente os seus rendimentos de acordo com o definido nelas, os sócios da recorrente aceitaram-nas expressamente .

Invoca, para o efeito, os factos provados dos pontos 14(2), 30, 104, 105, 126 e 127 e documentação que demonstra a realização de AGs em que foram discutidas alterações ou aplicadas as RS2005.

Como parece evidente, porém, esses factos não consubstanciam ou revelam uma manifestação de vontade directa e expressa de aceitação pelo colectivo de sócios da recorrente das regras societárias estabelecidas respeitantes à exoneração de sócio (arts. 23º e 24º das RS2005).

Por outro lado, devendo admitir-se que essa declaração pudesse ser tácita (conforme entendimento do TA, não acolhido no AR), quer os factos referidos, quer as actas da AG invocadas pela recorrente, não podem ter-se como elementos relevantes para o efeito, uma vez que os mesmos não revelam inequivocamente, ou seja, não são concludentes da aceitação por todos os sócios das regras respeitantes à contrapartida a pagar pela exoneração de um sócio. O que interessaria, na verdade, para o caso seria o acordo ou aceitação por todos os sócios dessas regras sobre a exoneração.

Como alega a recorrida, só seria possível extrair uma declaração tácita de aceitação das regras societárias relativas à exoneração de sócios se existisse uma exteriorização escrita de todos os sócios, da qual se deduzisse, com toda a probabilidade, a vontade de aceitar, em concreto, essas regras de exoneração.

Todavia, essa exteriorização não consta nem resulta dos factos provados ou dos documentos invocados pela recorrente.

Acrescenta a recorrente que existe um acordo assinado por todos os sócios: as Regras Societárias de 2003 (RS2003) que, quanto ao cálculo da contrapartida pela exoneração do sócio, contêm nos arts. 16º e 17º regras idênticas às previstas nos arts. 23º e 24º das RS2005. Em seu entender, existe, pois, um acordo escrito sobre o método de cálculo da quantia a arbitrar aos sócios exonerados, nos termos e para efeitos do disposto no art.º 21º, nº 8, do RJSA.

Não se põe em dúvida que aquelas RS2003 tenham sido assinadas por todos os sócios da recorrente (com ressalva apenas de dois sócios que estavam com a inscrição suspensa) – cf. facto 22 e Doc. R-26.

Sucede que essas regras foram substituídas pelas RS2005, colocando-se a questão da subscrição destas pelos sócios que, nessa altura, integravam a sociedade recorrente, ou seja, se são os mesmos sócios que assinaram as RS2003. Com efeito, como contrato que é, tem eficácia relativa (cf. art.º 406º, nº 2, do CC), vinculando apenas os sócios que o celebraram.

Ora, esse facto não ficou provado (cf. facto 128 e considerando, designadamente, os sócios com a inscrição anteriormente suspensa).

Daí que a assinatura das RS2003 não possa relevar para o efeito alegado, ou seja, para que se considere que as RS2005 constituem escrito assinado por todos os sócios da recorrente na altura da sua aprovação.

(omissis)

Conclui-se, assim, como no AR que as RS2005 não podem ser tidas como acordo escrito de todos os sócios, para efeitos do disposto no art.º 21º, nº 8, do RJSA, não sendo aplicáveis no caso.

Afastada a aplicação das RS2005 e, como se referiu, não fornecendo os ES um critério para a fixação do valor da participação de capital, este valor teria de ser fixado com recurso à comissão arbitral, nos termos do art.º 21º, nºs 9 e 10, do RJSA, aplicando-se as regras previstas nos arts. 13º e 17º deste diploma legal.

Considerou-se, porém, no AR que estas regras também não resolviam a questão do cálculo do valor da participação de capital para efeito de exoneração de sócios.

Daí a conclusão – neste condicionalismo, não impugnada por qualquer das partes – de que, conforme dispõe o art.º 2º do RJSA, se teria de recorrer às regras do Código Civil supletivamente aplicáveis, previstas, em especial, nos arts. 1021º e 1018º, desse teor:

Artigo 1018.º (Partilha)

1. Extintas as dívidas sociais, o activo restante é destinado em primeiro lugar ao reembolso das entradas efectivamente realizadas, exceptuadas as contribuições de serviços e as de uso e fruição de certos bens.

2. Se não puder ser feito o reembolso integral, o activo existente é distribuído pelos sócios, por forma que a diferença para menos recaia em cada um deles na proporção da parte que lhe competir nas perdas da sociedade; se houver saldo depois de feito o reembolso, será repartido por eles na proporção da parte que lhes caiba nos lucros.

3. As entradas que não sejam de dinheiro são estimadas no valor que tinham à data da constituição da sociedade, se não lhes tiver sido atribuído outro no contrato.

4. Ainda que o contrato o não preveja, podemos sócios acordar em que a partilha dos bens se faça em espécie .

Artigo 1021.º (Liquidação de quotas)

1. Nos casos de morte, exoneração ou exclusão de um sócio, o valor da sua quota é fixado com base no estado da sociedade à data em que ocorreu ou produziu efeitos o facto determinante da liquidação; se houver negócios em curso, o sócio ou os herdeiros participarão nos lucros e perdas deles resultantes.

2. Na avaliação da quota observar-se-ão, com as adaptações necessárias, as regras dos n.ºs 1 a 3 do artigo 1018.º, n aparte em que forem aplicáveis.

3. O pagamento do valor da liquidação deve ser feito, salvo acordo em contrário, dentro do prazo de seis meses, a contar do dia em que tiver ocorrido ou produzido efeitos o facto determinante da liquidação.

2. Determinação do valor da participação de capital da recorrida, no contexto da sua exoneração

Definido o regime jurídico aplicável à determinação do valor da participação de capital, escreveu-se no AR sobre esta questão:

Como se viu, as partes têm visões diferentes sobre o assunto e a matéria em questão não se reveste de simplicidade nem de linearidade, porquanto, desde logo e por aplicação do artigo 1021º tem por base o estado da sociedade, questão sobre a qual não vimos na jurisprudência elementos de que nos possamos socorrer para decidir o presente caso.

Segundo P. Lima e A. Varela: “ Proceder-se-á previamente à dedução do passivo. Deve, nos termos do n.º 2 atender-se aos lucros e às perdas que competem ao sócio […] que deixou de pertencer à sociedade […]. Deve, por último, nos termos do n.º 3 do artigo 1018º, atender-se, em princípio, ao valor que a entrada tinha no momento da constituição da sociedade ”.

Recorrendo a doutrina alargada, encontrámos uma síntese de Ana Isabel Baptista dos Santos, “Projeto de Mestrado em Contabilidade, Fiscalidade e Finanças Empresariais Métodos de Avaliação de Empresas” que incide, justamente sobre a temática aqui em discussão.

A metodologia para avaliar uma Empresa não é matéria pacífica, antes sendo variável em função da informação sobre a Empresa, o tipo de negócio e o setor de atividade em que se insere.

Disso nos dá conta a citada autora que nos aponta para uma certa variedade de métodos e para as dificuldades da sua aplicação.

Feito o enquadramento legal e na ponderação, nomeadamente, do indicado elemento doutrinário, dir-se-á que o estado da sociedade está associado ao valor da própria sociedade. E esse valor, para a finalidade que nos ocupa, na esteira do defendido pela recorrida, não poderá extravasar o do momento em que o evento da exoneração ocorreu. É isso que resulta do artigo 1021º CC acima transcrito. Por isso, do nosso ponto de vista, não fará sentido valermo-nos de métodos que impliquem projeções sobre a evolução futura do negócio (Métodos financeiros), ainda que porventura possam ser legítimos noutros contextos e, ao que tudo indica, sejam frequentemente utilizados.

Na sequência, depois de se afastar os métodos propostos pela recorrida – método dos múltiplos e a ponderação do caso do Prof. BB – acrescentou-se o seguinte sobre a utilização de outros métodos:

Numa perspetiva patrimonial, um dos métodos possíveis é o método de avaliação baseado no valor contabilístico.

Porém, como se sabe, este método não se afigura adequado se tomarmos em conta que nem sempre os elementos contabilísticos refletem com rigor o estado de uma empresa num dado momento.

Desde logo, como é, aliás, da experiência comum, nem sempre a contabilidade das empresas reflete com transparência o seu real estado. Neste âmbito, como é sabido, é frequente a utilização de mecanismos que contornam as consequências fiscais perante uma Administração fiscal que nem sempre, ao longo dos anos, adotou o zelo dos últimos tempos. Depois, muitas vezes o ativo descrito no Balanço não abrange ativos incorpóreos como por exemplo marcas, contactos, outros dados, recursos humanos.

Portanto, socorrendo-nos tão somente do Balanço poderemos ter, com alta probabilidade, uma subavaliação significativa do negócio.

Aliás, a própria recorrida não segue completamente este método, como o inculca a referência a que: “ tal não significa que a metodologia seja acriticamente um reflexo do balanço, como refere o Tribunal da Relação ...: «sempre que se trate de apurar o valor de uma determinada participação social, seja no caso, por exemplo, de alienação, amortização, exoneração ou exclusão de sócio, a lei aponta no sentido de apenas ter de se apurar a contrapartida a pagar pelo valor real da participação social»” .

Nessa medida, parece-nos ser de afastar, in limine, o critério contabilístico estrito.

Vejamos, então, na mesma perspetiva patrimonial o método do valor contabilístico ajustado, o qual consiste segundo a autora referenciada, “ na valorização do conjunto de bens, direitos e obrigações que integram o ativo e que constam do balanço da Empresa, corrigidos ou ajustados para o valor de mercado. Trata-se de um método que procura corrigir algumas limitações do método de avaliação patrimonial contabilístico. Os ajustamentos a efetuar às demonstrações financeiras podem ser de duas grandes naturezas: Reservas ocultas, que são situações de ativos subavaliados ou passivos sobreavaliados, desrespeitando os princípios contabilísticos geralmente aceites. Exemplo: Provisões para outros riscos e encargos genéricos .

A própria recorrida converge para a correção do método contabilístico, mas com algum tempero, ao aludir a que:

J Espírito Santo, refere: “a avaliação tem por objeto o património efetivo da sociedade, sendo indiferente para tal efeito o valor pelo qual o mesmo se encontra contabilizado (valor contabilístico), que pode, ou não, corresponder ao real […] o “critério de fixação do valor da participação social nos termos do art.º 1021 do CC é qualificado pela lei como o do valor real” . E cita também Antunes Varela em anotação ao artigo 1021º CC no sentido da possibilidade de um interessado demonstrar que: “os valores a ter em conta no ativo e passivo das sociedades são diferentes dos constantes do balanço” .

Em idêntico sentido João Cura Mariano, citado também pela apelada, defende nomeadamente que: “O valor real não significa valor de mercado [mas também não pode ser confundido com] o valor que consta da contabilidade, normalmente subavaliado por razões fiscais” .

Segundo este método, na ponderação do valor real naturalmente tem-se em mente o valor contabilístico, mas ele tem de ser corrigido por ajustamento ao valor de mercado, tendo em conta os elementos relevantes que resultam dos factos dados como provados, e que permitam uma aproximação ao justo valor (em sintonia, aliás, com a Diretriz Contabilística nº 1349).

Nesse âmbito, afigura-se que para além dos ativos corpóreos ter-se-á de ponderar também os ativos intangíveis, como sejam o facto de a sociedade em causa ser uma sociedade de profissionais, com presença da academia (BB que cessou funções com referência a 01.01.2008), com uma notória reputação no mercado e com uma determinada carteira de clientes.

Na busca do valor real e na esteira do que refere a testemunha GG, uma sociedade não é, apenas, uma infraestrutura (“facilidade”) que permite somar e integrar a atividade de vários profissionais em estádios diferenciados das suas carreiras. A sociedade integra esses contributos e acumula ou destrói valor pela sua dinâmica coletiva que alimenta ativos corpóreos e, sobretudo, incorpóreos, que se traduzem, como vimos, na respetiva marca, reputação, notoriedade e capital relacional com os clientes e o mercado notoriedade, processos e aprendizagem organizacional alcançada .

Neste âmbito, tratando-se de uma sociedade de Advogados, assumem relevo, não tanto o imobilizado corpóreo que (que corresponde aos ativos mais líquidos gerados noutro tipo de sociedades), mas mais as competências reconhecidas aos seus profissionais e o nome projetado no negócio e que necessariamente condiciona dinamicamente o tipo de clientela e, por conseguinte, o ativo real da sociedade.

Por isso, naturalmente que esses fatores terão de ser ponderados para calcular o valor real da sociedade.

Afastou-se ainda no AR a ponderação de afectações específicas, invocadas pela recorrida (N..., Fundação P… e Fundo de Pensões), afirmando-se depois sobre o cálculo do valor da participação da recorrida:

Apurado o valor da sociedade, há que calcular o valor da comparticipação da recorrente (aqui recorrida)

Sobre esta matéria importa ter em conta que na sociedade vigorava um sistema de pontos (sendo também certo que a Demandante era sócia de capital e de indústria (cf. nomeadamente documento complementar de fls. 1689 e 1690 - Estatutos reformulados) e depois, deduzir-se-á o valor da clientela da recorrida desviada pela recorrente.

Os estatutos da Demandada, na cláusula 11ª dispõem: “2. Sempre que, qualquer que seja a causa, a sociedade deva liquidar ao sócio, ou seus herdeiros, o valor da sua participação de capital, será este o que resultar do disposto no número um desta cláusula, corrigido pelas variações significativas do ativo social que tenham ocorrido até à data do facto que for causado direito do sócio, ou seus herdeiros, a receber aquele valor (…) (fls. 1697)” .

Daqui resulta uma inequívoca correlação entre a participação do sócio e as variações do ativo o que inculca a ideia de que, calculado o valor real da sociedade nos termos sobreditos e com o esclarecimento que adiante se deixa referido, a participação do sócio acompanhará a proporção que lhe couber no referido valor (na linha do que se estatui no artigo 1018º/2 do CC).

A recorrente concorda que, não sendo aplicável o método de cálculo decorrente das RS2005, o regime a observar é o previso no art.º 1021º do CC e que, como foi entendido, deve ser afastada a aplicação de métodos financeiros e, bem assim, os métodos propostos pela recorrida.

Discorda, porém, do método adoptado no AR.

Conforme dispõe o art.º 1021º, nº 1, do CC, no caso de exoneração de um sócio, o valor da sua quota é fixado com base no estado da sociedade à data em que ocorreu ou produziu efeitos o facto determinante da liquidação (sobre este momento, cf. o art.º 1002º, nº 3, do CC).

O sócio exonerado tem assim direito ao contravalor da participação, que não é determinado directamente, como valor autónomo, mas antes corresponde à quota parte do valor da sociedade na data relevante; é, pois, em função deste valor da sociedade que se determina o valor que cabe à participação do sócio exonerado.

A avaliação de uma sociedade não constitui, no entanto, uma questão pacífica, como se evidenciou no AR, existindo diversos métodos, mais ou menos adequados, em função da concreta empresa que tem por objecto.

Discute-se, desde logo, como no caso dos autos, se essa avaliação deve ser feita numa óptica de liquidação ou de continuidade.

Segundo a recorrente, o art.º 1021º do CC é inequívoco em determinar que a metodologia da avaliação a considerar é a da liquidação: o valor da participação deve corresponder ao "valor real", mas no contexto da liquidação, pressupondo que a empresa não irá existir no futuro.

Esta metodologia pressupõe, porém, a atribuição de um valor correspondente a uma quota de liquidação ideal, como se a sociedade se dissolvesse ou liquidasse de facto na data relevante. Não é esta, contudo, a situação comum, como não o é no caso dos autos, em que se pretende avaliar uma sociedade que permanece como tal e vai perdurar.

Como refere Ferrer Correia, os elementos do activo para essa avaliação " devem ser tomados segundo o seu valor comercial vivo, uma vez que a empresa permanece como tal " [10] .

Assim, como se disse, terá de calcular-se o valor da sociedade, em função do seu estado na data relevante; e será a partir desse valor de base que se determina o valor da participação. É a esta determinação que se aplicam as regras da partilha do activo restante da liquidação [11] .

Na perspectiva de continuidade podem ser adoptados diferentes métodos [12] , em parte reflectidos nas distintas posições assumidas nestes autos, quer considerando o valor patrimonial da recorrente, quer o seu valor económico-financeiro.

No AR, refutando-se outros métodos – designadamente, o critério contabilístico estrito, por não reflectir o estado real da sociedade, e o económico-financeiro, por o valor não poder extravasar o momento em que a exoneração ocorreu, não podendo implicar projecções sobre a evolução futura do negócio –, optou-se pelo designado método contabilístico ajustado [13] , tendo em conta o valor contabilístico, mas " corrigido por ajustamento ao valor de mercado", ponderando, "para além dos activos corpóreos, também os activos intangíveis, como sejam o facto de a sociedade em causa ser uma sociedade de profissionais, com a presença da academia, com uma notória reputação no mercado e com uma determinada carteira de clientes ".

A recorrente discorda, defendendo a aplicação de um critério contabilístico estrito: apenas deve ter-se em conta os elementos constantes do balanço que, no caso, foi elaborado nos termos legais, não justificando as reservas do Tribunal a quo e que não considera – nem tem de ser considerado no cálculo da contrapartida ela exoneração – activos incorpóreos.

Esse método, porém, é considerado inteiramente inadequado para o efeito, conforme entendimento francamente predominante, quer da doutrina [14] , quer da jurisprudência conhecida [15] .

Escreve, a este propósito, Evaristo Mendes [16] :

" O valor contabilístico ou de balanço é o valor agregado dos elementos que compõem o valor patrimonial, considerando os valores individuais de tais elementos, tal como se encontram inscritos no balanço, de acordo com as regras de elaboração do balanço de exercício. Trata-se, portanto, de uma variante do anterior (valor patrimonial) e ainda mais inadequada que ela para traduzir o real valor de uma sociedade ".

E acrescenta (em nota):

" Estamos, por um lado, a falar da mera soma dos valores de cada elemento do património social, considerado em si mesmo; e estamos, por outro lado, em face de um património restrito, que nem sequer compreende todos os elementos do património social com autonomia jurídica ".

Ficariam, assim, excluídos da avaliação bens e valores imateriais valiosos, o que parece pouco adequado ao paradigma de sociedade consagrado no art.º 980º do CC, como organização produtiva destinada a criar riqueza em benefício dos sócios; não como simples património.

Como daí se infere, o estado da sociedade a que alude o art.º 1021º, nº 1, do CC significa o " estado do seu património e o estado do seu negócio, prática profissional ou empresa, com o valor que desse modo lhe corresponde " [17] .

Como se sabe, uma empresa é formada por um conjunto de bens de distinta natureza – coisas corpóreas e incorpóreas – articulados entre si numa organização com vista à consecução de um fim económico e produtivo, integrando ainda, para este efeito, certas relações de facto com valor económico (com fornecedores, bancos e clientes), reveladoras da sua capacidade lucrativa, ou seja, do seu aviamento [18] .

Noutra formulação, uma empresa apresenta três espécies de valores: "valores ostensivos" (constituídos pelos bens corpóreos e incorpóreos), "valores de organização" (que derivam da articulação dos elementos da empresa, num todo com a mesma função e destinação económica) e "valores de exploração" (advindos das relações com clientes, fornecedores e financiadores) [19] .

Como afirma Ferrer Correia, "o valor do estabelecimento não é puramente igual à soma dos valores do seu activo considerados à margem da organização – antes o simples facto dessa organização implica para cada um desses bens uma valorização especial".

Esse "maior valor do todo organizado" constitui o valor de aviamento.

A determinação do valor da sociedade não pode, pois, limitar-se, num critério estático e atomista, a considerar os valores parcelares do activo líquido do património social que constam do balanço.

Por um lado, mesmo nessa perspectiva, sendo comum a sua subavaliação (desde logo, por aplicação do princípio do custo histórico, do princípio da prudência e pela existência de reservas ocultas), esses valores devem ser corrigidos para o seu valor real e efectivo; ou seja, para o seu justo valor.

Por outro lado, a esse valor patrimonial deve acrescer o valor que advém de activos imateriais ou intangíveis, da organização em si e da posição no mercado, ou seja, considerando a reputação, notoriedade, relação com clientes e acreditamento no mercado, que integram o seu valor de aviamento (ou goodwill), como "valor não físico ou intangível e, por isso, contabilizado à parte, que expressa o valor da empresa para além do seu valor contabilístico" [20] .

No caso, tratando-se de uma sociedade de advogados, mais se acentua esta vertente, como foi sublinhado no AR (nas alegações de recurso – ponto 218 – afirma-se, aliás, que o activo corpóreo da recorrente é irrelevante, o que, a nosso ver, confirma a impropriedade do método contabilístico estrito).

Importa, pois, seguindo o método adoptado no AR, considerar, nos termos referidos, o valor corrigido do activo líquido do património social da recorrente e ponderar em concreto que esta constitui uma sociedade de profissionais, em que sobressai a capacidade e contributo individual e colectivo de sócios e associados e a específica relação que mantêm com clientes.

Releva igualmente a notoriedade e reputação da sociedade, que se reflecte na atractividade para captar bons profissionais e para angariar, satisfazer e fidelizar clientes nos mais diversos (senão todos) domínios jurídicos.

De considerar também a dimensão da sociedade e a carteira de clientes.

Será ainda de ter em conta a organização em si, quer a estrutura física e localização, quer em termos de funcionamento, a organização dos serviços e procedimentos operacionais (incluindo sistema informático e de gestão implantados).

Determinado, nos termos expostos, o valor da sociedade, este deve ser repartido pelos sócios na proporção da parte que lhes corresponde nos lucros, em função do sistema de pontos que vigorava na sociedade (facto 106), repartição que não foi questionada.

A esse valor haverá de deduzir-se o valor da clientela desviada – arts. 21º, nº 9 e 17º, nº 6, do RJSA.

Sobre esta questão, escreveu-se no AR:

Por fim, como se referiu, ter-se-á de deduzir o valor da clientela desviada pela recorrente.

A este propósito, provou-se o que consta do facto nº 136, com o seguinte teor:

“A Demandante CC faturou, nos anos de 2008 e 2009, em clientes que já estavam abertos na Demandada, o montante global de €1.137.363 (Documento A-1); a Demandante AA faturou, nos anos de 2008 e 2009, em clientes que já estavam abertos na Demandada, o montante global de €848.288 (Documento A-1)”.

Ora, estes valores balizam no limite máximo, o cálculo que vier a ser operado quanto à determinação do valor da comparticipação deduzida do valor do “desvio de clientela”.

Quer dizer, trata-se de um valor de referência, mas que não prejudica a possibilidade de ponderação de outros dados.

Com efeito, o facto n.º 136 terá de ser lido em consonância com o facto nº 137, com o seguinte teor: Parte da clientela que saiu com as Demandantes ou com os advogados que com elas saíram deixou de ser clientela da Demandada na medida em que passou a ser tratada pelas Demandantes ou por advogados que saíram com as Demandantes (artº 228º da Contestação, depoimentos TTT, UUU).

Note-se que o documento com base no qual o Tribunal Arbitral deu como provado o facto n.º 136 (Doc. A-1 a fls. 138 e seguintes) contem um elenco indiscriminado de faturas, não concretizando quais as que se referem a clientela desviada e da qual foi exclusiva beneficiária a Demandante e a clientela restante de que possam ter beneficiado outros advogados.

Portanto, quer-nos parecer que terá de ser efetuada uma redução equitativa do valor referenciado no facto 136, em função do real benefício da Demandante.

Estes valores, naturalmente, por falta de elementos que permitam desde já a sua quantificação, terão de ser calculados em sede de liquidação de sentença, nos termos do artigo 609/2 do CPC, colhendo, assim, o peticionado em via subsidiária.

A recorrente sustenta que a decisão assenta numa leitura incorrecta dos factos provados, entendendo que o montante de € 848.208,00, referido no facto 136, não deve ser objecto de qualquer redução, pois representa (no mínimo) a facturação da recorrida com a clientela desviada, não respeitando o facto 137 aos mesmos valores.

Crê-se, no entanto, que se decidiu bem.

Com efeito, não há qualquer dúvida que o referido montante constituirá o limite máximo apurado da facturação obtida pela recorrida com clientes que estavam abertos anteriormente na recorrente.

O facto 136, por si, é claro sobre o valor absoluto da facturação obtido pela recorrida com essa clientela, mas só aparentemente traduz o benefício pessoal conseguido pela recorrida.

Aquele facto deve ser complementado com o facto 137, de que decorre que a referida facturação não pode ser imputada exclusivamente à recorrida, dela beneficiando também outros advogados que com ela trabalhavam, sendo certo que o doc. A-1 não é esclarecedor, não permitindo essa discriminação.

Importa apurar o benefício efectivo obtido pela recorrida com a clientela desviada, o que implicará seguramente uma redução do valor provado de facturação, em medida a fixar em ulterior liquidação, como se determinou e, aí sim, com recurso, se for caso disso, à equidade.

No que respeita à limitação do decidido pelo TA:

Na decisão do AR determinou-se que o valor apurado na liquidação deve ter em conta o limite peticionado e o valor já reconhecido pelo TA como sendo devida.

A recorrente discorda também da decisão nesta parte, entendendo que este limite mínimo deve ser desconsiderado: a partir do momento que o Tribunal revoga o acórdão arbitral (e aplica um método de cálculo distinto), é em função deste novo método de cálculo que se apurará o montante concretamente devido, não cabendo estabelecer uma condenação mínima em função de um resultado obtido através de um regime que se considerou não ser aplicável .

Por seu turno, a recorrida sustenta que seria manifestamente injusto que a recorrente se prevalecesse da inaplicabilidade o método previsto nas RS2005 para defender que a recorrida poderia receber um valor inferior àquele que receberia se a recorrente tivesse adoptado as diligências necessárias para aplicação dessas regras.

Entende-se, com o devido respeito, que a posição agora assumida pela recorrente é inaceitável, contrariando manifestamente o entendimento que preconizou sobre a primeira questão, em que concluiu que, por aplicação das RS2005, deveria ser fixada, como contrapartida pela exoneração, o valor de € 31.735,29, que foi o montante atribuído pelo TA.

De todo o modo, importa salientar que da decisão do TA, que fixou aquela contrapartida, apenas recorreu a demandante, ora recorrida (o recurso subordinado não incidiu sobre esta questão).

A demandada, ora recorrente, conformou-se com essa decisão, reiterando até, no presente recurso, como se acabou de dizer, que o montante da contrapartida deveria ser o que foi fixado pelo TA.

Portanto, em termos de resultado, não sofre dúvida que o valor a fixar nunca poderá ser inferior ao reconhecido pelo TA, que a recorrente reiteradamente aceitou.

A fixação de um montante inferior traduzir-se-ia em manifesta reformatio in pejus, que é proibida, como decorre do disposto no art.º 635º, nº 5, do CPC: a decisão do tribunal de recurso não pode ser mais desfavorável ao recorrente do que a decisão recorrida [21] .

3. A recorrente discorda ainda da decisão do AR sobre custas, defendendo que, à falta de melhor critério, estas deveriam ser repartidas em partes iguais.

No AR fixou-se em 1/10 a responsabilidade da demandante e em 9/10 a responsabilidade da demandada, sem prejuízo das correcções devidas depois de definitivamente apurada a responsabilidade efectiva de cada uma das partes.

A repartição das custas é, assim, provisória, sujeita a correcção ulterior em função do valor da condenação que vier a resultar da liquidação, apesar de ser evidente pela proporção estabelecida, que, de algum modo, se antecipou que esse resultado será substancialmente superior ao valor fixado pelo TA.

Com esta premissa, que se aceita, e considerando ainda que a recorrente decaiu totalmente no recurso subordinado [22] , afigura-se-nos que, apesar de fugir do critério tradicional [23] , a decisão não merece censura.

Em conclusão:

1. O art.º 21º, nº 8, do RJSA (aqui aplicável) estabelece que o sócio exonerado tem direito a receber da sociedade a quantia apurada nos termos previstos no contrato de sociedade ou em acordo escrito de todos os sócios.

2. No caso, as cláusulas dos Estatutos da sociedade não fornecem um critério para a fixação do valor da participação de capital do sócio exonerado, limitando-se a remeter para a deliberação da Assembleia Geral.

3. Por seu turno, as Regras societárias estabelecidas não constam de documento escrito assinado por todos os sócios da recorrida.

4. Os factos provados não revelam uma manifestação de vontade directa e expressa de aceitação pelo colectivo de sócios da recorrente das regras societárias estabelecidas respeitantes à exoneração de sócio

5. Por outro lado, só seria possível extrair uma declaração tácita de aceitação das regras societárias relativas à exoneração de sócios se existisse uma exteriorização escrita de todos os sócios, da qual se deduzisse, com toda a probabilidade, a vontade de aceitar, em concreto, essas regras de exoneração.

6. Todavia, essa exteriorização não consta nem resulta dos factos provados ou dos documentos invocados pela recorrente.

7. Tendo sido a recorrente quem inviabilizou a aplicação das regras societárias, ao não ter promovido a sua subscrição por todos os sócios, nem ter tomado as deliberações exigidas pelas cláusulas estatutárias, a pretensão formulada na acção pela recorrida, que pressupõe a não aplicação dessas regras sobre a exoneração, apesar de ter intervindo na sua aprovação, não configura um abuso do direito.

8. Afastada a aplicação das Regras societárias e não fornecendo os Estatutos da sociedade um critério para a fixação do valor da participação de capital, este valor teria de ser fixado com recurso à comissão arbitral – art.º 21º, nºs 9 e 10, que remete para as regras dos arts. 13º e 17º, todos do RJSA.

9. Não resolvendo estas regras a questão do cálculo do valor da participação de capital para efeito de exoneração de sócios, tem de recorrer-se às normas do Código Civil supletivamente aplicáveis, previstas, em especial, nos arts. 1021º e 1018º (art.º 2º do RJSA).

10. Decorre do disposto no art.º 1021º, nº 1, do CC, que o sócio exonerado tem direito ao contravalor da participação, que corresponde à quota parte do valor da sociedade na data relevante.

11. A determinação do valor da sociedade não pode limitar-se, num critério estático e atomista, a considerar os valores parcelares do activo líquido do património social que constam do balanço (critério contabilístico estrito).

12. Por um lado, mesmo nessa perspectiva, sendo comum a subavaliação dos activos (desde logo, por aplicação do princípio do custo histórico, do princípio da prudência e pela existência de reservas ocultas), esses valores devem ser corrigidos para o seu valor real e efectivo.

13. Por outro lado, a esse valor patrimonial deve acrescer o valor que advém de activos imateriais ou intangíveis, da organização em si e da posição no mercado, ou seja, a reputação, notoriedade, relação com clientes e acreditamento no mercado, que integram o seu valor de aviamento (ou goodwill).

14. No caso, tratando-se de uma sociedade de advogados, mais se acentua esta vertente

15. Determinado o valor da sociedade, este deve ser repartido pelos sócios na proporção da parte que lhes corresponde nos lucros, em função do sistema de pontos que vigorava na sociedade, devendo deduzir-se o valor da clientela desviada (arts. 21º, nº 9 e 17º, nº 6, do RJSA).

V.

Em face do exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 20 de fevereiro de 2022

Pinto de Almeida (Relator) - José Rainho - Graça Amaral

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Proc. nº 928/18.1YRLSB.S1
F. Pinto de Almeida (R. 410)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Então em co-autoria com a demandante CC (CC).

[3] Mesmo se se entender que o crédito das Demandantes, apesar de depender apenas de meros cálculos aritméticos, era ilíquido, teremos de concluir que a Demandada podia-como de resto fez, por duas vezes (cf. números 38 e 42 da matéria dada como provada) - torná-lo líquido, pelo que não tem aplicação a regra constante do artigo 805º/3 do CC e continua a verificar-se o requisito, a existência de mora, de que depende a aplicação do artigo 781º.
[4] Cf. Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª ed., 226; Acórdão do STJ de 18.05.2006 (06A1106), acessível em www.dgsi.pt.
[5] Cf. Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, I-Parte Geral, 1054; Galvão Teles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª ed., 143; Enzo Roppo, O Contrato, 97; L.F. Pires de Sousa, Direito Probatório Material, 50.
[6] Cf. P. Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 456 e segs.
[7] C. Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol. II, 712.
[8] P. Pais de Vasconcelos e P. Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9ª ed., 464.
[9] Sobre o abuso do direito e concretamente sobre as fórmulas invocadas, cf., por último, Menezes Cordeiro, Ob. Cit., 933 e segs.
[10] Lições de Direito Comercial, Vol. I, 209
[11] Cf. Evaristo Mendes, Exoneração de sócios, em II Congresso do DSR, 22. De todo o modo, como acrescenta este Autor (pg. 23), o que se "apresenta como mais relevante é a circunstância de a sociedade envolver tipicamente um negócio ou empresa que lhe confere o essencial do seu valor". Assim, mesmo na avaliação numa óptica de liquidação, será de atender "ao melhor valor da liquidação realizável", consoante as diversas modalidades, "incluindo não apenas a tradicional liquidação atomista peça a peça, mas também a liquidação com trespasse desse negócio ou empresa e, inclusive, a liquidação com transferência global do património social" (cf. art.º 162º do CIRE).
[12] Cf. Evaristo Mendes, Ob. Cit, 23 e segs (valor patrimonial, de que o contabilístico é uma variante; valor económico-financeiro; valor de mercado e métodos mistos, como o do goodwill); Tiago Soares da Fonseca, O Direito de Exoneração do Sócio no Código das Sociedades Comerciais, 340 e segs (critério nominal, contabilístico, de mercado ou pelo valor real).
[13] Cf. Ana I. Batista dos Santos, Métodos de Avaliação de empresas – Aplicação a uma PME, 12 (acessível on line)
[14] Ferrer Correia, Ob. Cit., 208 e Estudos de Direito Civil, Comercial e Criminal, 215 ( absoluta impropriedade do balanço ordinário para servir de base a uma estimativa aproximadamente correcta da parte social ou da quota de um sócio ); Brito Correia, Direito Comercial, 2º Vol., 431 ( deve atender-se ao valor real da quota do sócio no património social e não ao mero valor contabilístico, que pode não corresponder ao valor real ); Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2ª ed., 245 ( o valor deve corresponder à proporção – à quota parte – do sócio, no valor real da sociedade, valor que não se confunde com o chamado valor de balanço ); Tiago Soares da Fonseca, Ob. Cit., 345 ( a avaliação deve ser feita segundo o valor que a participação representa no património social efectivo e não segundo o valor que lhe é imputado contabilisticamente ); Cura Mariano, Direito de exoneração dos Sócios, 137 ( os bens patrimoniais da sociedade devem ser considerados pelo seu valor efectivo e não pelo valor que consta da contabilidade ); P. Videira Henriques, A Desvinculação Unilateral Ad Nutum nos Contratos Civis de Sociedade e de Mandato, 86 (objecto da avaliação é o património social efectivo e não o valor que lhe é imputado na contabilidade e, designadamente, no balanço ); J. Espírito Santo, Exoneração de Sócios no Direito Societário Mercantil Português, 203 ( o critério legal é o do valor real; a avaliação tem por objecto o património efectivo da sociedade, sendo indiferente para tal efeito o valor pelo qual o mesmo se encontra contabilizado (valor contabilístico), que pode, ou não, corresponder ao valor real ); Ana I. Batista dos Santos, Ob. Cit., 12 ( os registos contabilísticos podem ser significativamente diferentes do justo valor e existem activos intangíveis que não constam do balanço ).
[15] Cf. Acórdão do STJ de 07.10.1997, CJ STJ V, 3, 52 ( a quota deve corresponder, tanto quanto possível, ao valor real do quinhão do sócio na sociedade ); Acórdão da Relação do Porto de 25.10.2005 (P. 0422142), em www.dgsi.pt ( o que está em causa na liquidação é o valor real da quota de sócio na participação social ).
[16] Ob. Cit., 24.
[17] Evaristo Mendes, Ob. Cit., 30.
[18] Cf. Ferrer Correia, Lições cit., 202, 203 e 230.
[19] Coutinho de Abreu, Da Empresarialidade, 45.
[20] Tiago Soares da Fonseca, Ob. Cit., 341.
[21] Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil 467.
[22] Cujas custas poderiam, porventura mais correctamente, ser tributadas e imputadas autonomamente à recorrente.
[23] De repartição provisória igualitária das custas, o que pressupõe, porém, uma situação de absoluta incerteza quanto ao resultado da liquidação.


Breve anotação

1. O caso decidido pelo presente Acórdão do STJ respeita ao valor (de amortização) da participação de capital de uma sócia de uma grande sociedade de advogados portuguesa, devido por esta sociedade como consequência da exoneração da sócia. O regime jurídico aplicável era o então vigente RJSAdv (DL 229/2004).

Tal como sucede com a atual Lei das Sociedades Profissionais [ii] , distinguia-se aí – relativamente aos sócios de capital e indústria [iii] – entre a respetiva participação de capital e a sua participação de indústria (arts. 13 e ss.). Designadamente em caso de exoneração, o sócio tinha (e tem [iv] ) legalmente direito ao valor da sua participação social, consistindo este na soma de dois valores parcelares: i) o valor da sua participação de indústria [v] ; e ii) o valor de amortização da respetiva participação de capital, correspondente ao valor desta, eventualmente deduzido do valor da clientela que o acompanhasse na sua saída (arts. 21.9/17).

Todavia – se abstrairmos de alguns limites gerais destinados sobretudo a assegurar a efetividade prática do direito de exoneração, enquanto manifestação da liberdade profissional e da liberdade de associação nesta implicada, e de uma possível discrepância superveniente intolerável entre um valor estatutário e o valor legal das participações, podendo levar a um exercício abusivo do direito de amortização da participação pelo valor estatutário [vi] –, as normas legais em apreço têm caráter supletivo. Com efeito, o art. 21.8 do RJSAdv dispunha: «O sócio exonerado tem direito a receber da sociedade a quantia apurada nos termos previstos no contrato de sociedade ou em acordo escrito de todos os sócios». Só na falta de acordo ou regulação no pacto social se aplicavam os critérios de valor e procedimentos legais (art. 21.9).

Segundo estes, para o apuramento do valor de amortização da participação de capital, era competente uma comissão arbitral composta por 3 advogados [vii] . Como se deduz do Acórdão, as partes acordaram, no entanto, em submeter o litígio a um tribunal arbitral, que se ocupou, não apenas da fixação do valor, mas da própria decisão do caso. O TA decidiu, com um voto de vencido, condenar a sociedade num montante determinado a partir do valor patrimonial-contabilístico da sociedade (muito inferior ao peticionado), aplicando para o efeito certas regras particulares vigentes na sociedade (RS).

Houve, no entanto, recurso da decisão arbitral; e quer o TRL quer o STJ, no Acórdão que se anota, decidiram, por um lado, que tais regras não se aplicavam ao caso, por não consubstanciarem um acordo escrito subscrito por todos os sócios, por outro lado, que, em face da lei supletivamente aplicável (art. 1021 do CC), o valor da sociedade que serve de referência ao ulterior apuramento do valor da participação não se circunscreve a esse valor patrimonial, mas compreende também o respetivo valor de aviamento (ou goodwill), conferido por fatores de valor imateriais, especialmente relevantes numa sociedade profissional, como a sociedade de advogados.

2 . Mais especificamente, no Aresto do Supremo, realçam-se as seguintes regras: 1.ª) segundo o regime legal supletivo (art. 1021 do CC), para determinar o valor legal (valor real ou valor de liquidação) de uma participação social importa, em primeiro lugar, determinar o valor da sociedade; o valor da participação corresponderá a uma fração deste; 2.ª) na determinação do valor da participação, a partir do valor da sociedade, aplicam-se supletivamente as regras relativas à participação nos lucros (art. 1018 do CC, para que remete o art. 1021.2); 3.ª) o valor da sociedade (valor líquido ou residual, para os sócios), com a respetiva empresa ou prática profissional, apresenta duas componentes – uma patrimonial-contabilística (ostensiva), correspondente ao valor agregado e atualizado dos elementos que integram o ativo do balanço de exercício, deduzido do passivo, e uma de índole mais imaterial, relativa ao respetivo aviamento ou goodwill, i.e, à sua aptidão para criar riqueza (valor, lucros) em benefício dos sócios, fundada na qualidade, magnitude e localização da organização, incluindo a qualidade dos procedimentos adotados, na posição de mercado conseguida, mormente em relação à clientela, e na inerente notoriedade, reputação e acreditamento, que lhe permite captar e fidelizar bons colaboradores e clientes; 4.ª) numa sociedade profissional, como a sociedade de advogados, a componente de valor principal tende a ser esta última; 5.ª) em caso de exoneração de um sócio, perdurando a sociedade, a ótica de avaliação pertinente é, via de regra, a ótica de continuidade e não a ótica de liquidação; 6.ª) o valor da sociedade e o derivado valor da participação referem-se a uma determinada data (data relevante ou de referência), que, no caso da exoneração, é a data em que esta se efetivou; 7.ª) se o sócio exonerado levar consigo clientes que eram da sociedade, o valor (ou benefício efetivo) que com eles consegue gerar deve incluir-se no montante a receber e, portanto, ser deduzido ao valor apurado nos termos anteriores; perante certo valor de faturação do exonerado, importa apurar em que medida ele se deve a essa clientela [viii] .

No caso, havia acordo das partes quanto ao critério de determinação do valor da participação de capital a partir do valor de base da sociedade (sistema de pontos vigente na sociedade). Por conseguinte, em questão estava apenas, por um lado, o valor da sociedade e, por outro lado, o valor da clientela que acompanhou o exonerado, a apurar em liquidação de sentença, se necessário, com recurso à equidade.

Quanto ao aludido «acordo escrito de todos os sócios», entendeu o STJ que o mesmo pode ser tácito. Mas tem de ser assinado por todos. Na prática, levantam-se, porém, duas questões não esclarecidas no Acórdão: o acordo em causa tem de ser um acordo ad hoc, como o que se prevê, por ex., no art. 235.1a) do CSC, mas envolvendo nas sociedades de advogados uma tomada de posição unânime da sociedade, ou pode ser um acordo «regulamentar», substitutivo dos estatutos? Se se admitir esta segunda modalidade, ainda estamos perante um acordo escrito de todos os sócios quando ele seja suscetível de alteração por maioria, ainda que qualificada?

3-5 (omissis)

Evaristo Mendes



[i] Disponível em www.dgsi.pt., relatado por Pinto de Almeida; proc. 928/18.1YRLSB.S1.

[ii] Lei 53/2015 (abreviadamente, LSP), arts. 12, 29 e ss.

[iii] Numa sociedade profissional, pode haver: sócios profissionais - que exercem a atividade profissional que constitui o objeto da sociedade na qualidade de sócios, no quadro da sociedade (cfr., na atual LSP, os arts. 2.2, 3e) e 11.3) - e, ainda, se o Estatuto da profissão o permitir, sócios de capital (meramente de capital), cabendo o domínio da sociedade aos primeiros (arts. 8.1 e 9 da LSP). Os sócios profissionais podem ser sócios de indústria (ou de mera indústria), se não realizam qualquer entrada de capital, ou sócios de capital e indústria, se a respetiva contribuição para o exercício em comum da profissão consiste, não apenas na sua prestação profissional, mas também numa entrada de capital (cfr., no RJSAdv, o art. 12).

[iv] Cfr. os arts. 12 .2 e 31.5-9 da LSP, para que remete o art. 35.7.

[v] No essencial, este corresponde à respetiva quota-parte dos lucros sociais não distribuídos gerados até à sua saída, incluindo os afetos a reservas (cfr. os arts. 21.7/13 e, na LSP, o art. 12.2).

[vi] Acerca do assunto, cfr. Evaristo Mendes, «Valor das participações sociais. Valor legal e valor estatutário. Discrepância de valores», DSR 13 (2015), p. 107-152.

[vii] Cfr. o art. 21.9 do RJSAdv.

[viii] O Aresto não esclarece plenamente em que consiste este valor da clientela, nem se ele deve ser abatido ao valor da sociedade ou ao valor da participação do exonerado.