EVARIST​O MENDES

Meios de defesa da participação social em SpQ.

Anotação ao Acórdão do TRL de 26.05.2020 [i]

Acórdão

Sumário

I- São requisitos do arresto preventivo, cumulativamente, a probabilidade da existência de um crédito do requerente, definido por um juízo sumário de verosimilhança e o justo receio perda de tal crédito.

II – Não obstante não se exigir que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas uma apreciação em termos de mera probabilidade ou verosimilhança, para o preenchimento deste primeiro requisito atinente à probabilidade da existência do crédito, terá de estar em causa um crédito já constituído e não um crédito hipotético ou meramente eventual.

III- O direito a quinhoar nos lucros de uma sociedade é um direito essencial dos sócios, mas para haver distribuição de dividendos tem de haver uma deliberação declarativa dos sócios para a repartição dos mesmos.

IV- Não tendo tido lugar a existência de deliberação aprovando a distribuição de dividendos pelos sócios, nem a respectiva aprovação das contas da sociedade, não se pode concluir pela existência de um direito de crédito concreto por parte do sócio susceptível de justificar o decretamento de arresto.

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I – RELATÓRIO

A…, residente em …, instaurou contra O…, Lda, com sede …, e I…, Lda, com sede …, procedimento cautelar de arresto, requerendo o decretamento de arresto dos seguintes bens móveis constantes do imobilizado da segunda requerida : - Caldeira …; - Máquina de Trocos …; - Máquina de Secar …; - Máquina de Secar …; - Máquina de Secar …; - 3 (três) Máquinas de Lavar; - Máquina de Trocos … e - Tv.


Alegou, em síntese, que:

A 1ª requerida é uma sociedade comercial por quotas, a qual foi constituída em … e tem por objeto comercial dedicar-se à exploração de lavandarias self-service e comércio automático.
A 1ª requerida tem um capital social de € … dividido em 3 (três) quotas iguais de € …, distribuída de forma igual modo por 3 (três) sócios, designadamente, J…P…, J…M… e o requerente.

A 1.ª requerida explorava um estabelecimento comercial, o qual está arrendado [rectius, tomado de arrendamento] a terceiros, onde detém a sua atividade comercial de lavandaria numa loja sita …

Em …, o requerente, por incompatibilidade com os outros sócios-gerentes, uma vez que estes não davam satisfações, renunciou à gerência.

A partir da data supra identificada, os sócios-gerentes não mais prestaram qualquer informação ao requerente na qualidade de sócio da sociedade, bem como, entre o ano de 2016 e a presente data não foi convocada qualquer Assembleia Geral por parte dos sócios-gerentes.
Por diversas vezes o requerente instou pessoalmente a 1.ª requerida, na pessoa dos sócios, a fim de esta prestar esclarecimentos e informações acerca da sociedade e não obteve qualquer, resposta.

Teve conhecimento que foram alocados saldos de caixa aos sócios J… P… e ao Sr. J… M…, todavia, ao primeiro – ao ora requerente - não lhe foi pago qualquer valor e, bem assim, não lhe foi prestado, também, qualquer esclarecimento ou deliberado em Assembleia Geral.

A requerida detinha a título de património e inventariado/imobilizado várias máquinas para exercício da sua actividade, nomeadamente as acima referidas. Era o único património da sociedade, da ora 1.ª requerida e, maxime, tinha sido adquirido com o capital entregue pelos sócios quando estes prestaram os suprimentos para esse mesmo fim.
O valor a título de imobilizado da 1.ª requerida ascendia à quantia de, pelo menos, € 50.000,00 (cinquenta mil euros), ao que acrescem os valores da atividade comercial, os quais ascendem, no mínimo, a € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros).

O requerente, em virtude da total ausência de qualquer resposta ou/e informação, por parte da 1.ª requerida, instaurou ação judicial – Inquérito Judicial à Sociedade -, a qual corre termos no Juiz … do Tribunal …, sob o Proc. nº …

Em 22 de Março de 2019, o requerente instaurou procedimento cautelar contra a 1.ª requerida, o qual correu termos no Juiz … sob o Proc. n.º …

Em 2018 a 1ª requerida vendeu os bens móveis acima referidos à 2ª requerida .
Os pagamentos efetuados pela 2.ª requerida não foram feitos à 1.ª requerida mas sim a J… M…, à sociedade … e a J…

A 2.ª requerida sabia quando efetuou esses pagamentos que eram realizados para contas estranhas à sociedade.

O dinheiro pago pela 2.ª requerida não entrou na caixa da 1.ª requerida.
Nunca foram distribuídos dividendos ao requerente.

Tomou conhecimento de que a 2.ª requerida colocou à venda – ‘trespasse’ - a loja e o imobilizado e o mediador do negócio jurídico é o socio da 1.ª requerida J… A…


*

Foi proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando o requerente a esclarecer o concreto crédito que pretendia ver acautelado com a providência requerida e ainda os factos que tornassem provável a procedência da impugnação do negócio celebrado entre a 1ª e 2ª requeridas.


*

O requerente respondeu, invocando que o valor que pretende acautelar corresponde aos suprimentos e os direitos sociais do mesmo no valor de € 31.996,50 – capital e juros “(lucros/dividendos nunca obtidos)”.

Sustentou ainda que a 2.ª requerida teve acesso à documentação contabilística da 1.ª antes da aquisição da mesma e da qual resulta que existem prejuízos [rectius, dívidas] de mais de € 60.000,00 – a fornecedores -, bem como despesas de representação superiores a € 30.000,00 (trinta mil euros). A mesma 2ª requerida sabia que existiam suprimentos a favor do Autor, bem como que as máquinas eram o único imobilizado da sociedade e como tal, que o negócio importaria a alineação da sociedade in totum.

*

Foi proferido despacho de indeferimento liminar do procedimento, com fundamento na não verificação do 1º pressuposto para que haja lugar ao decretamento do arresto – a existência de um crédito -, despacho esse do qual recorre o requerente, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
(…)

5ª- No que concerne aos créditos detidos pelo recorrente na sociedade, com o devido respeito, estes não se limitam aos créditos monetários e físicos, ou seja, como sócio tem a natural expetativa e o Direito a que a sociedade, da qual faz parte, tenha capacidade de desenvolver a sua atividade comercial e dessa forma obter o desejado escopo lucrativo;

Nessa conformidade,

6ª- Os bens em causa não são lucros, rectius, créditos tout court, no entanto são garantia da atividade comercial e o eventual lucro do Requerente, na certeza, porém, de
que, no caso de não haver bens e serem alienados, esvaziasse numa relação de conditio
sine qua non
o Direito da eventual satisfação do crédito deste e outros;

7ª- Note-se que a venda em termos materiais e substantivos nada mais é e foi do
que a ‘liquidação’ da sociedade a favor dos sócios que não o Recorrente e para prejuízo
da sociedade, portanto, em simulação e abuso de Direito;

8ª- A existência de bens, património da sociedade e, maxime, a garantia da sua actividade comercial é um crédito lato sensu do sócio, uma vez que é suscetível de avaliação económica;

Por sua vez,

9ª- Com a venda total do imobilizado visou-se sim esvaziar a sociedade de património e, nessa conformidade liquidar a mesma, de modo a que o Recorrente nada
recebesse, uma vez que não existiu qualquer Assembleia para o deliberar, bem como, o
dinheiro não entrou na conta bancaria da sociedade;

10ª- Saliente-se que, estamos diante um negócio entre duas sociedades – Recorridas – e, nessa conformidade duvida-se da legalidade e da boa-fé de uma empresa que adquire o total do imobilizado de outra, todavia o pagamento não é efetuado à sociedade mas sim aos sócios;

Por outro lado,

11ª- Atentos os contratos entre as recorridas, os mesmos apresentam-se-nos, salvo melhor douta opinião contrária, como nulos por falta de forma, atentos os sujeitos e o valor;

Por conseguinte,

12ª- Conforme supra se referiu e em face da informação e documentos facultados aos autos, bem como, ainda a exposição ora vertida, é difícil de crer que uma sociedade que adquira outra ou bens de outras não encete previamente as diligências (necessárias) no sentido de aferir a validade do negócio e operação que vai realizar, ou seja, saber e munir-se de documentos, nomeadamente de Actas de Assembleia e documentos contabilísticos que lhe permitam avançar para o negócio sem qualquer problema;

13ª- Não é verosímil aceitar que uma sociedade adquira bens a outra e que não
efetue o pagamento diretamente para a conta da sociedade vendedora, ou seja, quando
a (2.ª) Recorrida pagou aos sócios, bem sabia que havia outros sócios também nessa sociedade, e mesmo assim não teve pejo em não pagar à sociedade – como devia – e,
ainda não pagar a um dos sócios;

(…)

Finalmente,
15ª- Em face do supra exposto, no caso de a (2.ª) Recorrida com a ajuda do sócio da (1.ª) Recorrida consiga vender os bens visados, naturalmente, que fica quartejado e
impossibilitado – irreversível - ao Recorrente, por efeito da inoponibilidade de terceiros, vir a salvaguardar os seus Direitos e uma vida de poupanças - periculum in mora;

Destarte,
16ª- Em face do supra exposto, salvo e por melhor douta opinião contrária, diríamos na nossa mui humilde opinião que estão verificados in casu os pressupostos materiais e formais para ser decretado o arresto no presente caso sub judicio.


Assim, a Sentença recorrida violou assim, entre outras, as seguintes estatuições legais: Do Código Civil - Art. 9.º, Art.s 227.º, 334.º, 762.º n.º 2 CC

Do Código do Processo Civil - 615.º n.º 1 b) e c);

Da Constituição da República Portuguesa - Art. 13.º, 20.º, 202.º n.º 2;

Do Código das Sociedades Comercias - Art. 31.º, 32.º e 64.º.


***

O Mmo Juiz a quo proferiu despacho admitindo o recurso e relativamente à nulidade da decisão invocada, pronunciou-se no sentido que a mesma não se verifica.

*
Foram colhidos os vistos dos Exmºs Adjuntos.

*
II – Questões a decidir :


É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações do recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Assim, face das conclusões apresentadas pela recorrente são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:

(…)

b) se perante a alegação constante do requerimento inicial havia ou não fundamento para o indeferimento liminar do presente procedimento, por falta dos respectivos pressupostos legais.

*

III – Fundamentação


A) De Facto


Na 1ª instância foram considerados desde já provados os seguintes factos, os quais não foram concretamente objecto de impugnação:

1- Em 03.08.2018 o aqui requerente instaurou inquérito judicial à sociedade primeira requerida e que deu origem ao proc. n.º …, deste Juízo de Comércio (Juiz 1);

2- Em 25.03.2019 o aqui requerente instaurou procedimento cautelar contra a sociedade primeira requerida, e que deu origem ao proc. n.º …, deste Juízo de Comércio (Juiz 1), solicitando o decretamento de arresto dos bens móveis identificados (onde alegou, no essencial, o mesmo conjunto de factos quanto à violação dos seus direitos de sócio em receber lucros e distribuição de dividendos);

3- Em 09.04.2019 foi proferida sentença naquele processo, transitada em julgado, que indeferiu a pretensão de arresto formulada, com fundamento na falta de verificação da aparência de um direito de crédito detido pelo requerente;

4- Em 18.07.2019 foi proferida sentença, transitada em julgado, naquele processo de inquérito judicial, que determinou que a R. prestasse ao A., no prazo de 30 (trinta) dias, informações e a seguinte documentação relativa aos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018:

a) Demonstração de resultados;

b) Demonstração dos fluxos de caixa e anexo ao balanço e demonstração de resultados;

c) Balancetes analíticos;

d) Extrato bancários;

e) Movimentos dos valores de caixa transferidos entre as contas dos sócios;

f) Mapas das depreciações e amortizações “ativos fixos tangíveis”;

g) Livro de actas;

h) Reconciliações bancárias;

5 - Por escrito datado de 01-08-2018, a Requerida declarou vender a …, LDA., que em contrapartida declarou comprar, o equipamento afeto ao estabelecimento comercial explorado pela Requerida, do qual fazem parte os bens cujo arresto se requer pelo preço de 35.000,00€, acrescido de IVA, o que perfaz o valor de 43.050,00€.

*
B) – Da invocada nulidade do despacho recorrido (…)

C) De Direito


Estabelece o artº 391º, nº1, do Código Processo Civil que: “O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”.

São requisitos da providência cautelar de arresto - a qualidade de credor e o receio de perda da garantia patrimonial - cfr ainda 619º do Código Civil.

Na verdade, o arresto visa afastar o perigo, para o credor, de perda da garantia patrimonial do seu crédito.

Sustenta A. Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV, 168 e segs., que só em relação a direitos de crédito é possível deduzir esta providência cautelar, admitindo-se ainda o recurso ao arresto “quando, independentemente da natureza da obrigação primitiva, se verifique uma situação de periculum in mora relativamente à obrigação pecuniária resultante da futura convolação do processo executivo, desde que antecipadamente possa constatar-se, a par da probabilidade de incumprimento da obrigação específica, uma situação de perigo de insolvência do devedor quanto à obrigação pecuniária sucedânea” (sucedânea, p. ex., do incumprimento de uma obrigação de prestação de facto ou de entrega de coisa certa, atenta a convertibilidade dessas obrigações em obrigação de pagamento de quantia certa – neste sentido, vd. A. dos Reis, CPC anotado, II, 17, Lebre de Freitas, CPC anotado, 2º, 119).

Atento o invocado pelo requerente, o arresto destina-se a garantir o cumprimento de uma obrigação pecuniária.

Não é necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero “fumus boni iuris”, ou seja, que o direito se apresente como verosímil.

Todavia, para o preenchimento do requisito atinente à probabilidade da existência do crédito, terá de estar em causa um crédito que não seja hipotético ou meramente eventual – cfr neste sentido, entre outros, Acs. da RL de 20/05/2010, relatora Desemb. Ondina Carmo Alves, da RE de 20/08/2010, relatora Desemb. Isoleta Costa, os quais podem ser consultados in www.dgsi.pt.

Relativamente ao justo receio de perda da garantia patrimonial exige-se um juízo, senão de certeza e segurança absoluta, ao menos de probabilidade forte, não bastando qualquer receio, que pode corresponder a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, num exame precipitado das circunstâncias.

É, assim, essencial a alegação e prova de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança desse provável crédito já constituído.
O critério para aferir da existência de tal perigo não se pode basear em meras conjecturas, tendo, antes, que assentar em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, como factor potenciador da eficácia da acção pendente ou a instaurar posteriormente.

Estatui o art.º 392º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que: “O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência”.

Segundo o nº 2 deste mesmo artigo: “ Sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduz ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação” .

O requerente alegou, para justificar a existência do seu direito de crédito e a pretensão de decretamento do arresto, que os bens móveis indicados e no valor de € 50.000,00 constituíam o único património da sociedade, da ora 1.ª requerida e que tais bens tinham sido adquiridos com o capital entregue pelos sócios quando estes prestaram suprimentos para esse mesmo fim.

Invocou igualmente que de todos os valores percebidos nunca lhe foram distribuídos dividendos e que o arresto se destina a garantir o pagamento dos suprimentos e “os direitos sociais do requerente” no valor de € 31.996,50.

Estabelece o artº 21º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais que os sócios têm direito a quinhoar nos lucros da sociedade e o artº 22º, nº1, do mesmo diploma dispõe que: “Os sócios participam nos lucros e nas perdas da sociedade segundo a proporção dos valores das respectivas participações no capital”. Por sua vez, o nº 3 deste mesmo artigo estabelece que: “É nula a cláusula que exclui um sócio da comunhão nos lucros ou que o isente de participar nas perdas da sociedade, salvo o disposto quanto a sócios de indústria” .

Os actos praticados pela sociedade em violação do seu fim lucrativo deverão ser considerados nulos, dado o carácter imperativo daquelas normas (artº 294.º do CC).

Do exposto resulta que o lucro é um elemento essencial do conceito de sociedade comercial; ela tem como finalidade o lucro, o qual constitui a medida da sua capacidade.

Todavia, dispõe o art. 31°, nº 1, do CSC, que: “Salvos os casos de distribuição antecipada de lucros e outros expressamente previstos na lei, nenhuma distribuição de bens sociais, ainda que a título de distribuição de lucros de exercício ou de reservas, pode ser feita aos sócios sem ter sido objeto de deliberação destes”.

Com efeito, a sociedade também tem que assegurar a regularidade das contas, o pagamento do passivo e a constituição das reservas obrigatórias.

Como se diz na decisão recorrida, apesar de o requerente ter um direito subjetivo ao lucro, não tem direito à partida, independentemente de decisão coletiva nesse sentido, a receber uma quantia determinada (aritmeticamente calculada em função da participação social). Os próprios sócios poderão deliberar, inclusivamente, por razões válidas, a não distribuição de lucros ou dividendos. A própria lei estabelece restrições à distribuição de lucros, nomeadamente, caso existam prejuízos a cobrir e reservas – obrigatórias ou estatutárias – a constituir. Nestas situações, não poderão os sócios receber quaisquer quantias ou bens a título de lucros (cfr. arts. 32° e 33° do CSC).

No sentido do supra referido pode ler-se no Ac. da Rel. Guimarães, de 07/06/2018, relatora Desemb. Maria Amália Santos, o qual pode ser consultado in: www.dgsi.pt:

“Acresce que o fim da sociedade comercial não é apenas o de obter lucros, mas também o de os distribuir entre os sócios. Assim, se na óptica da sociedade interessa obter e maximizar os lucros a partir da actividade social, na perspectiva dos sócios interessará também (ou principalmente) que esses lucros sejam repartidos, como forma de remuneração do seu investimento.

Ou seja, o direito ao lucro é um direito essencial dos sócios, traduzindo-se, por um lado, no direito legalmente consagrado, de que a sociedade tenha por finalidade o escopo lucrativo e, por outro, no direito de participar na distribuição de lucros pela sociedade.
E os lucros dos sócios justificam-se, quer como contrapartida das suas entradas ou do valor que hajam pago pelas suas participações – no fundo, como contrapartida do risco envolvido -, quer como contrapartida do esforço e das obrigações que cumpram, no quadro social –, como contrapartida do trabalho nelas efectivamente desempenhado.
Ou seja, da actividade social da sociedade resultarão benefícios que se vão acumulando no seu património (o chamado lucro social ou objectivo) e cujo destino principal (sem contar com políticas de contenção ou de auto-investimento) está definido logo desde o início: a sua distribuição pelos sócios. Uma vez que os sócios não pretenderão esperar até ao momento da liquidação da sociedade para obter o retorno do seu investimento, a lei permite que se proceda a distribuições periódicas desses lucros, em razão daquilo com que cada um contribuiu (e em função do que mais se arriscou na sociedade) (art. 22°, 1 CSC).

Faz-se então uma avaliação periódica daquilo que a sociedade tinha no início e no fim do exercício, sendo o saldo positivo, em princípio, partilhado pelos sócios, de acordo com as suas participações sociais.

Claro que a lei impõe restrições à distribuição dos lucros, nomeadamente enquanto houver prejuízos a cobrir e reservas a constituir (obrigatórias ou estatutárias), caso em que não poderão os sócios receber quaisquer quantias ou bens a título de lucros (cfr. arts. 32° e 33° do CSC), pelo que, também em princípio, só o lucro de balanço (a diferença entre o património social líquido e a soma do capital e das reservas) pode chegar ao património individual dos membros da corporação, cada um deles recebendo o que lhe couber, fruto da sua participação social.

Estamos então perante o denominado lucro de exercício distribuível, apurado segundo as regras do artigo 33.º do CSC (abatidos os prejuízos transitados e as reservas impostas por lei ou pelos estatutos da sociedade).

*
Há que contar no entanto, nesta matéria, com o que se dispõe no artigo 31°, nº 1 do CSC - intitulado “Deliberação de distribuição de bens e seu cumprimento”, preceito com particular relevância no caso dos autos -, de acordo com o qual "salvos os casos de distribuição antecipada de lucros e outros expressamente previstos na lei, nenhuma distribuição de bens sociais, ainda que a título de distribuição de lucros de exercício ou de reservas, pode ser feita aos sócios sem ter sido objecto de deliberação destes”.

Ou seja, para haver distribuição de lucros, tem de haver uma deliberação declarativa de todos os sócios para a repartição dos mesmos.

A produção desse efeito requer assim a mediação dum acto jurídico da corporação: a mencionada deliberação de atribuição de dividendos (ou créditos de dividendo).

Significa isto que muito embora o direito subjectivo ao lucro seja um dos elementos essenciais do conceito de sociedade – acima já explicado -, isso não significa que os sócios, individualmente considerados, tenham direito a exigir da sociedade a distribuição do lucro de balanço (ou lucro total); caberá à colectividade dos sócios decidir livremente, por maioria, se, quando e como se procederá à sua repartição.
Isto é, a titularidade desse direito (que se pode designar como direito abstracto ao lucro), não permite ao sócio exigir da sociedade, sem mais, a distribuição da riqueza por ela criada; esse direito não lhe permite, portanto, reclamar da sociedade uma qualquer concreta repartição do lucro, pois ele não é titular de um direito concreto sobre o mesmo.

Como dissemos, e resulta claro do artº 31º nº1 do CSC, a distribuição do lucro dependerá sempre de uma deliberação social que a aprove, pelo que só com a deliberação social de distribuição é que o lucro se torna dividendo, pois só então o direito do sócio ao lucro se determina e materializa, podendo então designar-se esse direito por direito ao dividendo, tornando-se então o sócio titular de um direito de crédito equiparável ao direito de um qualquer terceiro credor da própria sociedade”.


Acresce que para que os sócios possam reclamar a distribuição da parcela do lucro a que têm direito, torna-se necessário que sejam aprovadas as contas da sociedade, uma vez que só nesta hipótese é que será possível determinar qual o lucro de exercício e, consequentemente, o dividendo a que cada sócio terá direito.

O exercício do direito a quinhoar nos lucros implica necessariamente a aprovação das contas da sociedade, podendo os sócios minoritários – em caso de não aprovação das contas pela maioria –, promoverem judicialmente a aprovação das mesmas (cfr. art. 67° do CSC).

Dos factos alegados pelo requerente não resulta desde logo que tenha existido qualquer deliberação de distribuição de dividendos por parte da sociedade 1ª requerida, nem a aprovação das contas da mesma. Pelo contrário, resulta que não teve lugar deliberação no referido sentido, pelo que ainda que viessem a ficar demonstrados todos os factos alegados, destes não se poderia vir a concluir, mesmo em termos meramente indiciários – como se exige no âmbito de um procedimento cautelar –, pelo direito do recorrente a receber dividendos da sociedade 1ª requerida no valor que invoca, nem em qualquer outro valor concreto.

Se é verdade que para efeitos do decretamento de arresto não se exige que a obrigação seja exigível e líquida, ou que se encontre já reconhecida pelos tribunais, não poderá, como se referiu supra, tratar-se de uma mera expectativa do credor.

Quanto à invocação da nulidade do contrato de compra e venda de bens móveis realizados entre as duas sociedades requeridas, também a eventual destruição do negócio não permite sustentar o direito do requerente, na qualidade de sócio, a receber desde logo qualquer montante concreto relativo a esse valor, o qual, por força dos efeitos da nulidade, sempre deveria ser restituído à respectiva sociedade e não a qualquer dos seus sócios – cfr artº 289º, nº1, do C. Civil.

No que concerne à falta de fornecimento de informações ao requerente sobre a vida da sociedade, trata-se de questões a ser apreciadas no inquérito judicial, no qual já foi proferida sentença determinando a prestação de informações e a entrega de documentos pela 1ª requerida ao requerente. Também esta decisão não permite concluir pela existência de qualquer crédito concreto.

Assim, contrariamente ao invocado pelo recorrente nas respectivas alegações, dos factos alegados não resulta indiciado o 1º pressuposto de que depende o decretamento do arresto – a sua qualidade de credor.

(…)

Nestes termos há que manter a decisão recorrida, uma vez que, como ali se refere, os factos alegados não permitem concluir pela provável existência de um crédito.

*

IV – DECISÃO


Por todo o exposto, acordam os Juízes deste coletivo em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante – artº 527º, nº1, do C.P.Civil -, sem prejuízo do apoio judiciário requerido pelo mesmo.

Registe e notifique.


Lisboa, 26/05/2020


Manuela Espadaneira Lopes

Fernando Barroso Cabanelas

Paula Cardoso

Anotação

1. Uma sociedade por quotas (A) - composta por 3 sócios gerentes, detentores de 3 quotas iguais, e tendo por objeto a exploração de lavandarias self-service e comércio automático - era detentora de um conjunto de máquinas de suporte à atividade e uma TV.

Desconhece-se o capital social da sociedade, mas, pelas referências constantes do Acórdão que se anota, a atividade social, maxime no que toca à compra das máquinas, terá sido financiada, pelo menos em parte, através de suprimentos.

Na sequência de divergências entre um dos sócios e os outros dois, que, alegadamente, «não davam satisfações» ao primeiro, ele renunciou à gerência.

A partir da renúncia os sócios gerentes deixaram de lhe prestar qualquer informação e após 2016 não houve qualquer convocação de reuniões da assembleia geral.

Para salvaguarda dos seus direitos de sócio e da sua posição de financiador da sociedade através de suprimentos, em agosto de 2018, o sócio em causa requereu inquérito judicial à sociedade e, em março de 2019, requereu providência de arresto daqueles bens – invocando sobretudo os seus direitos de sócio a receber lucros e à distribuição de dividendos – , alegando que o «imobilizado» da sociedade ascenderia pelo menos a 50 000 € e que a este valor acresceriam pelo menos 75 000 € resultantes do exercício da atividade.

A providência cautelar foi indeferida, por faltar ao requerente a aparência de um direito de crédito, e o pedido de inquérito foi deferido, tendo a sociedade sido condenada a prestar certas informações e a fornecer certos documentos sociais. Ambas as decisões transitaram em julgado.

2. Em agosto de 2018, mediante negócio escrito, a sociedade «declarou vender» a outra sociedade por quotas (B) o referido equipamento, afeto ao seu estabelecimento, por 35 000 €. Segundo o sócio em apreço, o preço da venda não terá entrado nos cofres da sociedade A, havendo sido pago aos outros dois sócios e, segundo parece, a uma outra sociedade.

Afirma, ainda, o sócio em causa: que a sociedade B pôs à venda (trespasse) a respetiva loja com o pertinente imobilizado, intervindo no negócio um dos sócios da sociedade A; que a mesma sociedade sabia ou não podia ignorar que as máquinas constituíam o único património desta última e, portanto, que a respetiva venda importava a «alienação da sociedade in totum», que o produto da venda das máquinas da sociedade A deveria reverter a favor desta, e não a favor de parte dos sócios, e sabia, ainda, que ele era detentor de suprimentos na vendedora; e que nunca recebeu dividendos.

O exposto levou o mesmo sócio a requerer nova providência cautelar de arresto dos mesmos bens, agora contra as duas sociedades, vendedora e compradora, alegando, em síntese: que «o valor que pretende acautelar corresponde aos suprimentos e os direitos sociais do mesmo no valor de € 31.996,50 – capital e juros “(lucros/dividendos nunca obtidos)”» e que, enquanto sócio, «tem a natural expetativa e o direito a que a sociedade, da qual faz parte, tenha capacidade de desenvolver a sua atividade comercial e dessa forma obter o desejado escopo lucrativo»; que a venda das máquinas representa o esvaziamento do património da sociedade A, equivalendo, na prática, nos termos em que foi feita, à sua dissolução a favor dos sócios que não o requerente, para prejudicar a sociedade, o que configura «simulação e abuso de direito»; que é duvidosa e mesmo inverosímil a boa fé da adquirente, ao pagar o preço, não à vendedora, mas a parte dos seus sócios; que, atentos os sujeitos e o valor, «os contratos entre as recorridas» são nulos por falta de forma; e que, se a sociedade B concretizasse a venda projetada (trespasse, envolvendo as máquinas), com intervenção de um dos referidos sócios da sociedade A, a terceiros, o requerente ficaria irreversivelmente impossibilitado de «salvaguardar os seus direitos e uma vida de poupanças» (periculum in mora). Invocam-se também os arts. 31.º e 32.º do CSC, relativos à intangibilidade do capital, sem que se perceba, no entanto, o argumento.

3. Esta providência cautelar foi indeferida pelo tribunal de primeira instância, por faltar a «provável existência de um crédito». A decisão foi confirmada pelo Acórdão que se anota [ii] .

Na verdade, afirma-se neste Aresto que a questão fundamental a resolver consistia em saber se o requerente era titular de um direito de crédito, cuja garantia patrimonial merecesse ser protegida cautelarmente, através do arresto de bens sociais; e, entendendo os seus subscritores que o direito invocado era o direito ao lucro , estava em causa, mais especificamente, saber quando se constitui tal direito de crédito, isto é, quando se converte o lucro em dividendo, e este direito social num crédito de dividendo, suscetível de uma providência cautelar de conservação da garantia patrimonial do respetivo credor, como é o arresto (cfr. o art. 619.º, n.º 1, do CC).

A tese perfilhada no Acórdão foi a de que, para tal crédito se constituir, é necessária, nos termos do art. 31.º, n.º 1, do CSC, uma deliberação de distribuição ou atribuição de lucros aprovada pela coletividade dos sócios [cfr. também o art. 246.º, n.º 1, al. e), do CSC)]; deliberação essa tendo na base uma deliberação de aprovação de contas de exercício reveladoras da existência de lucro distribuível [cfr., ainda, o art. 246.º, n.º 1, al. e), do CSC e, em geral, os arts. 65.º e ss.]. Ora, como resulta do alegado pelo próprio requerente, nenhuma destas deliberações existiu.

Em abono desta interpretação da lei, cita-se o Acórdão do TRG de 7.06.2018 (relatado por Maria Amália Santos), que substancialmente se transcreve. Note-se, contudo, que, faltando a deliberação de aprovação das contas reveladora da existência de lucro distribuível, para se decidir o caso como se decidiu não era preciso afirmar a necessidade da deliberação de atribuição de lucros para a constituição do crédito. No nosso ponto de vista, essa é a interpretação correta da lei [iii] , mas está em causa um argumento ad abundantiam.

4-8 (omissis)



[i] Relatora: Manuela Espadaneira Lopes. Proc. 5245/20.4T8SNT.A.L1-1. Fonte: www.dgsi.pt.

[ii] Num anterior acórdão (de 22.04.2010, relatado por Pereira Rodrigues, proc. 6406/09.2TVLSB-A-6, disponível em www.dgsi.pt), embora a respeito de uma situação diferente da dos presentes autos, o mesmo TRL decidiu o seguinte: «I. A posição jurídica do potencial adquirente futuro de um direito subjectivo é a de um possuidor de uma mera expectativa jurídica. II. O possuidor de uma mera expectativa jurídica de aquisição de um direito de crédito não é ainda titular da aparência da existência desse direito, pelo que não lhe é legítimo o recurso ao arresto como meio conservatório da garantia patrimonial dessa expectativa. III. A lei exige, como primeiro pressuposto, para o decretamento do arresto a verificação da probabilidade séria da existência do crédito, “facti species” que se não pode considerar verificada se ocorrer apenas uma mera expectativa da existência do crédito. IV. O potencial credor duma percentagem de lucro ainda não apurado e incerto é um mero detentor de uma expectativa, não podendo recorrer ao arresto de bens do concretizável devedor, para assegurar um eventual direito em que tal expectativa se venha a materializar, por a lei o não prever, nem se justificar previsão de tal natureza.»

[iii] Veja-se, por todos, Evaristo Mendes, «Direito ao lucro e tutela das minorias nas sociedades por quotas e anónimas fechadas. Apontamento», RDCom 2021-11-12, p. 1337-1394, 1356 e ss. (cf., ainda, 1348 e s.,1352 e ss.), com mais indicações, incluindo doutrina divergente.