EVARIST​O MENDES

Resumo : O presente artigo versa sobre a transmissão de quotas de sociedade por quotas, por morte do respetivo titular, havendo ou não cláusulas restritivas da mesma. Incide, em especial, sobre a suspensão provisória dos direitos sociais ligada a estas cláusulas, e defende um tratamento semelhante a respeito das cláusulas que apenas atribuem à sociedade o direito de amortizar quotas fundado na morte do sócio.

Palavras-chaves : Sociedade por quotas – Quotas – Morte de sócio – Transmissão – Restrições à transmissão - Amortização – Qualidade de sócio

Abstract : The paper deals with the transmission of shares in a limited liability company in case of the death of a member and with some problems related to restrictions thereon, including redemption clauses in the articles of association.

Keywords : Limited Liability Companies – Shares – Death of a Member - Transmission of Shares – Restrictions on the Transmission of Shares - Redemption of Shares - Membership

Evaristo Mendes *

Morte de sócio de SpQ.

Transmissão e cláusulas de amortização de quotas [i]

Introdução

As sociedades por quotas (SpQ) são organizações produtivas de direito privado e tendencialmente privadas, instituídas ao abrigo da liberdade de empresa (art. 61.º, n.º 1, da Constituição) ou da liberdade profissional (art. 47.º, n.º 1, da mesma Constituição), e destinadas a autovalorizar-se em benefício dos respetivos fundadores, aderentes e sucessores (cfr. o art. 980.º do Código Civil). Nesta medida, pelo menos o seu valor líquido fundamental – que lhes é tipicamente conferido, no essencial, pela respetiva empresa ou prática profissional – pertence a esses beneficiários pro quota: encontra-se dividido em quotas ideais (quotas de capital ou quotas-valores) de que os mesmos são titulares [ii] .

Mas trata-se também de organizações de caráter associativo ou com membros, integradas por aqueles fundadores, aderentes, e, estando em causa entidades de membros variáveis, por quem lhes vier a suceder. Mais especificamente, compõem-se de uma superstrutura social ou corporativa e orgânica e, uma vez ativadas, de uma infraestrutura produtiva (na grande maioria dos casos, de caráter empresarial) encabeçada pelo órgão de gestão (a gerência). Esta superstrutura integra, justamente, como sócios, estas pessoas, a título individual e na qualidade de titulares do órgão de base da sociedade, a coletividade dos sócios, detentora do poder de conformação da mesma e do poder de decidir acerca da vida, do valor e do destino da organização; e, em grande medida, elas assumem, ainda, a adicional qualidade de gerentes. Por isso, é «inerente» à quota esta qualidade de sócio ou status socii, que confere a quem a detém um conjunto de direitos e vinculações de natureza variada – patrimonial, administrativa e de informação e controlo - incluindo o direito a receber uma quota-parte do lucro e demais valor que a sociedade venha a distribuir, o direito à quota de liquidação e o direito a uma quota-parte do mencionado valor líquido fundamental da sociedade em caso de exoneração, exclusão ou perda da quota por outro motivo, segundo o disposto na lei e no pacto social, direitos estes que são outras tantas manifestações de um direito geral e abstrato a uma quota-parte desse valor, que tanto pode ver-se como componente da posição de sócio, como uma manifestação direta do princípio de apropriação de que beneficiam os fundadores, aderentes e sucessores enquanto tais.

O todo formado pela quota-valor (ou quota de capital) e a «inerente» qualidade de sócio constitui a quota social ou participação social em sentido objetivo [iii] , própria do tipo social em apreço. Como se verá, esta quota – e, porventura, o correspondente direito geral e abstrato a uma quota-parte do valor da sociedade – encontra-se sujeita ao direito patrimonial geral, incluindo sucessório. A aquisição e perda da correspondente qualidade de sócio já é um assunto de direito societário; cabendo a este regular a sociedade e a participação social, incluindo as vicissitudes desta, designadamente, de modo a que a organização funcione de modo eficiente e virtuoso, na criação de valor ou riqueza.

É sabido que as SpQ pertencem ao grupo das sociedades de capital – possuindo uma necessária base de capital (ainda que mínima: cfr. os arts. 201.º e 219.º, n.º 3) e uma estrutura de poder plutocrática (art. 250.º, n.º 1), e, devido à responsabilidade limitada dos sócios, mostrando-se adequadas para a acumulação de capital -, mas são tipicamente de cunho personalista: a pessoa do sócio é, no comum dos casos, um elemento fundamental para o bom funcionamento da organização. Daí que, nomeadamente nos fenómenos de transmissão das participações, as regras relativas à quota e as respeitantes à qualidade de sócio possam não coincidir.

Nas transmissões por morte, a quota circula em conformidade com as regras do direito sucessório; e, segundo o direito societário, via de regra, circula com um associado direito potestativo de aquisição da correspondente qualidade de sócio. É este o regime legal supletivo, exceto, nas SpQ profissionais, quanto à participação de sócio profissional. Todavia, o pacto social pode «retirar» aos sucessores este direito; como sucede, legalmente, nas transmissões por ato voluntário entre vivos a título singular (cessão), a favor de estranhos à sociedade e ao alienante.

Tradicionalmente, as cláusulas restritivas em causa eram, em boa medida, cláusulas de continuação da sociedade com os sócios sobrevivos – claramente dirigidas à qualidade de sócio (e ainda hoje expressamente previstas no art. L 223-13 do CCom francês) –, a que acresciam diversas outras, incluindo cláusulas de intransmissibilidade e de sujeição da transmissão ao consentimento da sociedade ou dos sócios sobrevivos. Estas cláusulas podem equivaler-se: basta dar-lhes o sentido – natural, atendendo a que o pacto social tem eficácia jurídico-societária, cumpre objetivos societários e não de regulação patrimonial geral – de que as mesmas afetam unicamente a eficácia da transmissão sucessória em relação à sociedade, isto é, a transmissão da quota com o inerente direito de aquisição da qualidade de sócio, e não a transmissão apenas da quota, sem este direito.

Porém, a história das SpQ revela um progressivo empobrecimento do conteúdo regulatório dos pactos sociais – aprofundado com os processos simplificados de constituição instituídos pelo DL n.º 111/2005 e pelo DL n.º 125/2006, e plausivelmente pelo desaparecimento da exigência de capital mínimo para as SpQ em geral; e, nessa onda, embora se desconheçam os exatos motivos [iv] , deu-se também um substancial abandono dessas cláusulas tradicionais, passando a predominar claramente as cláusulas que se limitam a atribuir à sociedade o poder de amortização de quotas fundado numa série de factos ou situações, incluindo a morte do titular (cláusulas de amortização simples, i. e., de amortização facultativa compulsiva).

Sucede que, já no domínio da LSQ, se discutia se estas cláusulas – ou cláusulas de opção semelhantes – são verdadeiramente cláusulas restritivas da transmissão por morte; e a discussão subsiste em face do CSC. Nuclearmente, o problema consiste em saber se elas têm ou não associada a suspensão de direitos e obrigações prevista no art. 227.º, n.º 2. É sobre ele que versa especialmente este artigo. No entanto, o próprio âmbito e alcance da suspensão é controvertido; pelo que importa aludir previamente a este outro tema.

Assim, o plano compreende: uma breve análise da transmissão por morte em geral, deixando de lado os casos, mais complexos, em que a quota do sócio falecido integrava o património comum do casal (n.º 1); uma referência à permissão legal de limitar a transmissão e às cláusulas restritivas (n.ºs 2 e 3); uma análise do tratamento legal dado às cláusulas em apreço (n.ºs 4 a 6); e, por fim, o tema das cláusulas de amortização facultativa compulsiva (n.º 7). Complementarmente, revisita-se o tema da transmissão à luz de uma perspetiva da participação social distinta da tradicional (n.º 8). O foco são as SpQ comuns, ficando de fora as SpQ profissionais.

I

Enquadramento geral. Transmissibilidade e cláusulas restritivas

1. Princípio da sucessão universal e da disponibilidade dos bens por morte e quota social de SpQ. Quota livremente transmissível

A quota social é, como se assinalou, uma posição jurídica de base patrimonial, sujeita, como tal, às regras gerais da transmissão e disposição de bens e direitos por morte (arts. 2024.º e s. e 2179.º do CC). Por conseguinte, com a morte do titular, a quota integra a herança jacente (cfr. os arts. 2046.º e ss. do CC). Se tiver sido legada a alguém, passa para sua titularidade com a aceitação do legado (cfr. os arts. 2249.º e ss. do CC). Na falta de legado ou se ele não for aceite (ou enquanto o não for), com a aceitação da herança, passa para a titularidade em comum dos herdeiros (aceitantes) (cfr. os arts. 2050.º e ss. do CC). Mediante a subsequente partilha, dá-se uma especificação da titularidade dos elementos que compõem a herança, podendo a quota vir a pertencer a um ou mais dos herdeiros (cfr. os arts. 2101.º e ss. do CC).

Importa, no entanto, responder à questão: sendo a quota social livremente transmissível por morte - o que nas SpQ comuns [v] sucederá se não houver cláusulas restritivas da transmissão -, com a aceitação da herança ou do legado, os herdeiros adquirem automaticamente a qualidade de sócios? Retroagindo a aquisição da quota à data da morte (cfr. os arts. 2050.º, n.º 2, e 2049.º do CC e o art. 227.º, n.º 1, do CSC)? Ou, atenta a referida dupla dimensão – patrimonial e social ou corporativa – da sociedade e da participação social, a aquisição da qualidade social requer o preenchimento de algum requisito adicional?

1.1 Doutrina e jurisprudência

Trata-se de um tema escassa e superficialmente tratado. Em geral – partindo da corrente conceção da quota como a participação social característica da SpQ, i. e., a posição de sócio com determinada medida de direitos e vinculações [vi] -, a resposta, explícita ou pressuposta nos textos que se ocupam da transmissão de quotas por morte, é no sentido de que, tornando-se os herdeiros titulares da quota, adquirem, sem mais, logicamente ou por definição, a correspondente qualidade de sócios [vii] .

No Anteprojeto de Coimbra de Lei de SpQ, estabelecia-se doutrina diferente. Na linha de um projeto alemão de nova lei das sociedades em apreço, que não veio a converter-se em lei, previa-se, com caráter geral, no n.º 1 do art. 53.º: «O adquirente da quota só pode ser considerado sócio depois de a sociedade ter sido notificada da transmissão; pode, contudo, a sociedade tratar como sócio o herdeiro de uma quota, independentemente de notificação. Em caso de cessão, a notificação será acompanhada de documento comprovativo da transmissão».

Lê-se a este respeito na exposição de motivos:

“Só depois de notificada a transmissão da quota à sociedade é esta obrigada a considerar o adquirente como titular da quota, para efeitos de exercer os direitos inerentes». «No direito actual, a notificação da transmissão da quota, como condição da sua eficácia perante a sociedade, apenas é exigida quanto à cessão (artigo 7.º da Lei de 1901). Pareceu conveniente, no entanto, estender esta exigência à transmissão mortis-causa, conforme faz o § 53, 1, do Projeto alemão. De outro modo, isto é, se o sucessor mortis-causa devesse ser considerado sócio logo que operada a transmissão, independentemente do conhecimento da sociedade, ele poderia, por exemplo, impugnar a deliberação de uma assembleia geral para que não tivesse sido convocado, quando é certo que a sociedade não estaria eventualmente em condições de o reconhecer como sócio. A necessidade de notificação da transmissão interessa, portanto, à sociedade.”

“Esta regra, porém, só em benefício da sociedade deve poder funcionar, sob pena de o sucessor de uma quota, abstendo-se da notificação, ter a possibilidade de se furtar ao cumprimento das obrigações sociais, designadamente quanto ao pagamento da entrada em dívida ou das prestações suplementares. Daí o dispor-se que a sociedade pode «tratar como sócio o herdeiro de uma quota, independentemente de notificação.»”

“A sociedade pode, naturalmente, exigir a prova da transmissão efectuada, não se bastando com a notificação – prova essa a fazer por quaisquer meios. Quanto à cessão é que a prova nunca poderá ser dispensada, e terá que produzir-se através de documento comprovativo da transmissão (…)” [viii] .

Apesar de o regime subjacente aos arts. 225.º e 227.º do CSC ser, na quase totalidade, o deste Anteprojeto, o Código não se ocupa das presentes transmissões livres e, portanto, não contém norma semelhante [ix] (arts. 208.º a 210.º). A exigência de notificação aparece apenas no art. 228.º, n.º 3, relativo às transmissões entre vivos [x] .

1.2 Apreciação crítica da conceção dominante

A dupla dimensão da SpQ e da quota social assinalada justifica uma resposta à questão em apreço semelhante à do Anteprojeto de Coimbra e em linha com o que se prescreve para as transmissões entre vivos. Ou seja, embora para a aquisição da quota de capital (ou quota-valor) baste a aceitação da herança ou do legado, e à quota assim adquirida seja inerente o direito à qualidade de sócio – mais especificamente, o direito potestativo de aquisição de tal qualidade –, para os sucessores se tornarem sócios é preciso que estes exerçam tal direito, notificando a transmissão à sociedade (ou que ela os reconheça como tais).

Já antes da Reforma de 2006 a lacuna do CSC – trata-se de uma lacuna, dado que o assunto carece de ser regulado e este Código não contém norma sobre ele – podia ser colmatada, aplicando o prescrito no n.º 3 do art. 228.º Hoje, a solução extrai-se da própria lei, mais propriamente dos arts. 242.º-A e 242.º- B do Código. Com efeito, a transmissão de quotas, a qualquer título, está sujeita a registo (art. 3.º, n.º, 1, al. c), do CRCom). E dispõe-se no art. 242.º-A: «Os factos relativos a quotas são ineficazes perante a sociedade enquanto não for solicitada, quando necessária, a promoção do respetivo registo». O art. 242.º-B, por sua vez, acrescenta: «1 - A sociedade promove os registos relativos a factos em que, de alguma forma, tenha tido intervenção [xi] ou mediante solicitação de quem tenha legitimidade, nos termos do número seguinte. 2 - Têm legitimidade para solicitar à sociedade a promoção do registo: a) O transmissário, o transmitente e o sócio exonerado; b) O usufrutuário e o credor pignoratício. 3 - A solicitação à sociedade da promoção do registo deve ser acompanhada dos documentos que titulem o facto a registar e dos emolumentos, taxas e outras quantias devidas.» [xii]

Por conseguinte, para a transmissão sucessória se tornar eficaz em relação à sociedade – adquirindo os sucessores a qualidade de sócios, membros desta, com o estatuto jurídico correspondente –, é preciso que os transmissários (sucessores universais, normalmente através do cabeça-de-casal, ou legatário) requeiram à sociedade que promova o respetivo registo a seu favor [xiii] . E, pelo menos em face do teor literal do n.º 3 do art. 242.º-B, devem, ainda, fazer a prova de que adquiriram a quota, por morte; mesmo que a sociedade não a exija.

Esta solução está, aliás, em sintonia com o regime da transmissão por morte das ações nominativas livremente transmissíveis. Na verdade, quanto às ações tituladas nominativas, para a transmissão ter eficácia plena (entre as partes, em relação a terceiros e em relação à sociedade), é necessário observar o procedimento descrito no n.º 1 do art. 102.º do Código dos Valores Mobiliários, que dispõe: «Os valores mobiliários titulados nominativos transmitem-se por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o representa». E acrescenta-se nos números seguintes: «A declaração de transmissão por morte do titular é efetuada: a) Havendo partilha judicial, nos termos da alínea b) do número anterior; b) Nos restantes casos, pelo cabeça-de-casal ou pelo notário que lavrou a escritura de partilha» (n.º 3); «Têm legitimidade para requerer o registo junto do emitente qualquer das entidades referidas nos n.ºs 2 e 3» (n.º 4). A respeito das ações escriturais, estabelece o art. 80.º, n.º 1: «Os valores mobiliários escriturais transmitem-se pelo registo na conta do adquirente.» Determina, ainda, no art. 66.º, n.º 2, al. a), que têm legitimidade para requerer o registo «[o] titular da conta onde se deva proceder ao registo ou para onde devam ser transferidos os valores mobiliários»; e no art. 67.º, n.º 1, acrescenta-se que as inscrições e os averbamentos nas contas de registo são feitos com base em ordem escrita do disponente (aqui inaplicável) ou em « documento bastante para a prova do facto a registar» [xiv] .

2. Possibilidade legal de restringir a transmissão por morte. Cláusulas estatutárias restritivas típicas

Os arts. 225.º e 226.º do CSC admitem expressamente restrições à transmissibilidade das quotas por morte. Vamos ver brevemente em que termos e dar uma pequena nota acerca da prática estatutária.

2.1 Possibilidade legal de limitar a transmissão mortis causa

Dispõe o n.º 1 do art. 225.º: «O contrato de sociedade pode estabelecer que, falecendo um sócio, a respetiva quota não se transmitirá aos sucessores do falecido, bem como pode condicionar a transmissão a certos requisitos, mas sempre com observância do disposto nos números seguintes». E acrescenta-se no n.º 2: «Quando, por força de disposições contratuais, a quota não for transmitida para os sucessores do sócio falecido, deve a sociedade amortizá-la, adquiri-la ou fazê-la adquirir por sócio ou terceiro; se nenhuma destas medidas for efetivada nos 90 dias subsequentes ao conhecimento da morte do sócio por algum dos gerentes, a quota considera-se transmitida». No art. 227.º, n.º 2, por sua vez, esclarece-se esta possibilidade de impedir estatutariamente a transmissão, até ao termo deste prazo de 90 dias, estabelecendo: «Os direitos e obrigações inerentes à quota ficam suspensos enquanto não se efetivar a amortização ou aquisição dela nos termos previstos nos artigos anteriores ou enquanto não decorrerem os prazos ali estabelecidos».

Estes preceitos – com a adicional norma de proteção dos sucessores constante do art. 227.º, n.º 3 [xv] – correspondem, no essencial, aos n.ºs 1 e 2 do art. 54.º e ao n.º 2 do art. 55.º do Anteprojeto de Coimbra. Na respetiva exposição de motivos – depois de se assinalar que as restrições à transmissão por morte já eram admitidas em face da Lei de 1901, mediante interpretação extensiva do § 3.º do artigo 6.º, mas que eram numerosas as questões suscitadas pela existente prática estatutária, incluindo a respeitante às cláusulas de amortização facultativa de que nos ocupamos especialmente adiante, destacando-se, inter alia, quanto ao exercício dos direitos sociais, a da situação da quota até à deliberação sobre o consentimento da transmissão pela sociedade ou sobre a amortização –, escreve-se:

“A disciplina do Anteprojecto sobre esta matéria pretendeu estabelecer um equilíbrio entre os interesses em conflito – de um lado, os interesses dos herdeiros, do outro, o interesse da sociedade em evitar ou controlar o ingresso no seu seio de novos sócios . Nesta conformidade, admite-se no n.º 1 do artigo 53.º [xvi] a possibilidade de o pacto social estabelecer restrições à transmissão de quotas por morte do titular e até mesmo estipular a sua intransmissibilidade absoluta. No n.º 2 do mesmo artigo estabelecem-se as medidas de protecção dos herdeiros, para o caso de funcionarem as cláusulas de intransmissibilidade ou a exigência do consentimento para a transmissão. Nestes casos, os herdeiros têm a garantia de que o valor da quota será realizado através da aquisição desta por quem a sociedade designar ou mediante o pagamento da contrapartida da amortização; e têm ainda a garantia de que, se estas providências não forem tomadas pela sociedade num certo prazo, a quota do de cujus se considera transmitida para a herança.”

“[O] artigo 54.º [xvii] define a situação da quota no período que medeia entre a data do falecimento do sócio e o momento da amortização ou aquisição da quota, ou o termo do prazo estabelecido no n.º 2 do artigo 53.º [xviii] : embora os direitos e obrigações inerentes à quota estejam suspensos durante este período, nem por isso os interesses dos herdeiros ficam desacautelados, pois se lhes faculta exercer durante a suspensão «todos os direitos necessários à tutela da sua posição jurídica» (por exemplo, o direito de impugnar a avaliação feita pela sociedade da quota do de cujus, podendo requerer, para o efeito, exame à escrita). Esta solução consagra a doutrina que de há muito vem sendo preconizada por A. Ferrer Correia e V. Lobo Xavier (…)” [xix] ; e “foi, de resto, acolhida tanto pelo Anteprojecto de Raul Ventura como pelo Anteprojecto de Vaz Serra.” [xx]

No Projeto de Código das Sociedades (1983), editado pelo Ministério da Justiça, acrescentou-se um artigo relativo às cláusulas que restringem a transmissão no interesse ou em benefício dos herdeiros (art. 209.º), que esteve na base do atual art. 226.º do CSC. Dispõe-se neste, designadamente: «Quando o contrato atribuir aos sucessores do sócio falecido o direito de exigir a amortização da quota ou por algum modo condicionar a transmissão da quota à vontade dos sucessores e estes não aceitem a transmissão, devem declará-lo por escrito à sociedade, nos 90 dias seguintes ao conhecimento do óbito» (n.º 1); «Recebida a declaração prevista no número anterior, a sociedade deve, no prazo de 30 dias, amortizar a quota, adquiri-la ou fazê-la adquirir por sócio ou terceiro, sob pena de o sucessor do sócio falecido poder requerer a dissolução da sociedade por via administrativa» [xxi] (n.º 2).

Embora no art. 225.º a lei aluda a uma possível intransmissibilidade da quota, ao condicionamento da transmissão e a cláusulas impeditivas da transmissão, aquilo que sobretudo interessa ao direito societário não é tanto a transmissão da quota em si – isso é primacialmente um problema de direito patrimonial geral, no caso sucessório -, mas a sua eficácia em relação à sociedade, ou seja, a aquisição pelos sucessores do de cujus da qualidade de sócio, como se colhe no Anteprojeto de Coimbra. O assunto será retomado adiante (n.º 4).

2.2 Cláusulas estatutárias [xxii]

a) Tal como se infere dos arts. 225.º e 226.º do CSC e, em parte, do Anteprojeto de Coimbra, acabados de citar, os pactos sociais continham tradicionalmente cláusulas restritivas da transmissão por morte (ou da respetiva eficácia) no interesse da sociedade e no interesse dos herdeiros (via de regra, legítimos ou legitimários); mas também no interesse de ambos (cláusulas ambivalentes ou bifrontes). E, sobretudo quanto às sociedades anteriores ao CSC, em grande medida, a situação mantém-se. Com frequência, as restrições não afetam os herdeiros legitimários.

Deixam-se alguns exemplos destas cláusulas, começando pelas que afastam ou condicionam a transmissão da quota, reduzem a sociedade aos sócios sobrevivos ou atribuem à sociedade – ou aos sócios sobrevivos – o poder de admitir ou não os sucessores. São elas: 1) «Por morte de um sócio, a quota não se transmite para os seus herdeiros» [xxiii] ; 2) «Por morte de um sócio, a quota só se transmite para os seus herdeiros se a sociedade nisso consentir»; «No caso de morte ou interdição de qualquer dos sócios, os seus herdeiros ou representantes continuarão associados...; mas isso somente se os sócios (restantes ou capazes) nisso concordarem, pois, não concordando, os herdeiros ou representantes receberão o que se verificar pertencer-lhes pelo último balanço» [xxiv] ; 3) «Por morte de um sócio, a sociedade continuará apenas com os sócios sobrevivos»; 4) «Pela morte (…) de qualquer sócio a sociedade continuará com os sobreviventes ou com estes e os herdeiros do sócio falecido, nos termos seguintes: se os sócios sobreviventes aceitarem os herdeiros, (…) continuará entre todos a sociedade; no caso contrário, continuará com os sobreviventes, recebendo os herdeiros (… VC)» [xxv] .

Como exemplos de cláusulas estabelecidas no interesse dos sucessores temos: 1) «Falecendo um sócio, os seus herdeiros podem exigir à sociedade que lhes amortize a quota pelo valor (… VC)»; 2) «Falecendo um sócio, a quota passará para os seus sucessores, mas só se estes nisso consentirem (…)»; «Pela morte (…) de qualquer sócio, a sociedade poderá continuar com os sobreviventes e com os herdeiros caso estes queiram . No caso de os herdeiros não quererem ficar na sociedade, continuará esta com os sócios sobreviventes, os quais deverão pagar (…VC)».

A cláusula que se segue é, por sua vez, inequivocamente bifronte: «Por morte de um sócio a sociedade continua com os seus herdeiros, mas só se nisso consentirem os herdeiros e os sócios sobrevivos» [xxvi] .

b) O panorama é, no entanto, mais variado. Para além das cláusulas referidas no número seguinte, sem preocupação de completude, assinalam-se as seguintes: 1) «Por morte de um sócio, a sociedade e qualquer dos sócios sobrevivos poderão adquirir a quota pelo valor do último balanço; e nenhum querendo usar deste direito, poderá a quota ser encabeçada em comum nos herdeiros, que devem nomear um que os represente.»; 2) «No caso de falecimento de um dos sócios, os sobrevivos terão o direito de adquirir a quota do falecido pelo valor que lhe corresponder segundo o último balanço aprovado»; 3) «Na divisão da quota entre os herdeiros legitimários, aplica-se o regime da cessão, tendo assim preferência sobre estes os sócios restantes.» [xxvii]

3. Cláusulas de amortização e de extinção ou aquisição automática

Além das cláusulas apontadas, importa aludir, em especial, às que se seguem. A primeira é a cláusula de amortização simples – ou cláusula de amortização facultativa compulsiva –, hoje em dia, dominante, que analisaremos, em especial no n.º 7. Ex.: «A sociedade pode amortizar a quota de um sócio quando ocorra uma das seguintes situações: a) morte do sócio; b) (…)» [xxviii] . A segunda é, ainda, uma cláusula de amortização compulsiva, mas obrigatória (para a sociedade). São frequentes fórmulas do género: « Será amortizada a quota do sócio que falecer ou for interdito...» [xxix] .

Outras cláusulas definem claramente o destino da quota. Exs.: 1) «Por morte de um sócio, a quota não passa para os herdeiros, sendo repartida pelos sócios sobrevivos; devendo os adquirentes pagar aos herdeiros o seu valor de acordo com o último balanço de exercício»; 2) «Por morte de um sócio, a quota considera-se amortizada, devendo a sociedade pagar aos herdeiros o seu valor e a parte que lhes cabe no fundo de reserva»; ou, noutra formulação, «Por morte de um sócio, a quota não passa para os herdeiros, considerando-se amortizada e devendo a sociedade pagar aos herdeiros o seu valor de acordo com o último balanço de exercício»; 3) «Por morte de um sócio, a quota passa para a sociedade, que deve pagar aos herdeiros o valor da mesma resultante do último balanço aprovado»; ou, noutra formulação, «Por morte de um sócio, a quota não passa para os herdeiros, considerando-se adquirida pela sociedade, que pagará aos herdeiros o seu valor de acordo com o último balanço de exercício». Concebe-se, ainda, uma cláusula do género: «Por morte do sócio x, a sua quota extingue-se, sem que a sociedade tenha de pagar qualquer contrapartida aos herdeiros».

II

Regime legal das restrições estatutárias à transmissibilidade das quotas por morte

Já se aludiu aos artigos que admitem e regulam as restrições estatutárias da transmissão por morte. Vão considerar-se agora sobretudo alguns aspetos controvertidos do regime instituído; considerando sucessivamente as cláusulas que protegem a sociedade, os herdeiros e ambos (n.ºs 4 a 6).

4. O que sucede se houver cláusulas restritivas no interesse da sociedade

Como se observou acerca da permissão legal das restrições em apreço ( supra, n.º 2.1), o CSC liga às respetivas cláusulas estatutárias o direito potestativo da sociedade de dispor da quota, exercitável no prazo de 90 dias a contar do conhecimento da morte do sócio por algum dos gerentes, sob pena de as cláusulas perderem eficácia e, consequentemente, os sucessores poderem, nos termos gerais, exercer o direito potestativo de se tornarem sócios (art. 225.º, n.º 2). E liga às mesmas uma suspensão, por morte do sócio, dos direitos e vinculações sociais [xxx] .

Como também se observou, esta suspensão encontrava-se prevista no Anteprojeto de Coimbra e remonta a uma doutrina defendida por Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier, formulada a respeito das cláusulas de amortização facultativa. Todavia, nesse Anteprojeto, dispunha-se que, durante a suspensão, os sucessores poderiam «exercer todos os direitos necessários à tutela da sua posição jurídica», exemplificando-se na exposição de motivos com o direito de impugnar a avaliação feita pela sociedade da quota do de cujus, e o direito de exame à escrita; e, seguramente por influência de Raul Ventura, autor do Anteprojeto do Código das Sociedades, no Projeto do Ministério da Justiça de 1983 (art. 210.º, n.º 3), acrescentou-se a parte final do atual n.º 3 do art. 227.º do CSC, que diz: nomeadamente votar em deliberações sobre alteração do contrato ou dissolução da sociedade . Com isto, o regime legal, concebido para promover a clareza e segurança jurídicas, conciliando ao mesmo tempo o interesse da sociedade em controlar a composição da sua coletividade social e o interesse dos sucessores em receberem o justo valor da quota do falecido ou uma quota social não alterada significativamente em seu detrimento (consoante a opção da sociedade), tornou-se fonte de acentuada controvérsia. Dela nos ocupamos em seguida, estendendo a análise de modo a abranger outras questões de algum modo relacionadas.

4.1 Questões. Estado da arte (doutrina e jurisprudência)

No regime vigente, podem identificar-se as seguintes questões [xxxi] :

1) Que significado tem a suspensão? A quota passa para os sucessores com a aceitação da herança ou do legado? Estes tornam-se sócios?

2) Qual o âmbito ou medida da suspensão? Que direitos e obrigações abrange?

3) O destino da quota depende de deliberação da coletividade social?

4) Nesta deliberação, os sucessores têm o direito de participar?

5) E o direito de votar?

6) Ocorrendo uma amortização ou aquisição da quota, aplicando-se o regime legal supletivo, qual é a data relevante para determinar o valor da quota e o da correspondente contrapartida compensatória dos sucessores?

Tendo como pano de fundo a conceção unitária da quota como participação social ou posição de sócio com determinada medida de direitos e vinculações, as respostas encontradas na literatura e na jurisprudência são as que se seguem.

Quanto à primeira questão, parte dos autores entende que a suspensão impede a aquisição da qualidade de sócio pelos herdeiros; e, dada aquela conceção, tal significa que a quota não se transmite, ficando provisoriamente sem titular (numa espécie de limbo) [xxxii] . Apenas o valor patrimonial da participação ou os direitos que o efetivam integram a herança [xxxiii] . Partindo da mesma conceção unitária da participação quotista, outros autores entendem que, por força do direito sucessório, a quota passa, com a morte (note-se, contudo, que é necessária a aceitação da herança ou do legado), para os sucessores; e, portanto, estes são sócios, ainda que com parcial suspensão dos seus direitos sociais [xxxiv] .

Para os autores que perfilham este último entendimento, surge a adicional questão de saber que direitos têm os sucessores, durante a suspensão. Parte deles limita-os àqueles que se mostram efetivamente necessários à tutela da posição jurídica dos herdeiros (potenciais credores do valor da quota ou sócios de pleno direito), conservando a suspensão um significado substancial, de modo a atender ao interesse da sociedade que as cláusulas visam proteger [xxxv] . Outros autores, porém, reconhecem aos sucessores grande parte ou mesmo a generalidade dos direitos sociais [xxxvi] .

No que respeita à terceira questão, em linha com o pensamento de Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier, que já no domínio da LSQ reconduziam as cláusulas em apreço a cláusulas de amortização [xxxvii] , o entendimento generalizado é o de que, como se dispõe no n.º 2 do art. 225.º, é necessária uma deliberação da coletividade social para decidir acerca do destino da quota [xxxviii] . Mas já se mostra controvertida a ulterior questão se saber se os sucessores têm o direito de participar no competente processo deliberativo (via de regra, reunião da assembleia geral) [xxxix] e, inclusive, se têm o direito de voto [xl] .

Finalmente, quanto à sexta questão, dados os termos do art. 225.º, n.º 4, que, na falta de regulação estatutária do assunto, manda aplicar à determinação do valor a receber pelos herdeiros (e ao pagamento) as disposições legais relativas à amortização de quotas, entende-se, em conformidade com o prescrito no art. 235.º, n.º 1, al. a), que a data relevante – com referência à qual há que estimar o valor da sociedade e o derivado valor da quota, nos termos do art. 1021.º do CC – é a da deliberação relativa ao destino da participação (amortização ou aquisição) [xli] . Este entendimento merece, no entanto, ser revisto.

4.2 Breve apreciação

Na impossibilidade de proceder aqui a uma análise desenvolvida, segue-se uma breve apreciação da situação descrita. Tendo em conta o caso paralelo das transmissões por morte de ações sujeitas ao consentimento da sociedade [xlii] e, a respeito da cessão de quotas, o art. 228.º. n.º 2, entendemos que a solução mais conforme ao CSC, à natureza e finalidades da regulação estatutária da transmissão de participações sociais, a uma justa ponderação dos interesses em jogo, à conhecida flexibilidade do tipo social em apreço e à correspondente autonomia conformadora (no caso, autonomia estatutária) do mesmo, implicada na liberdade de empresa (art. 61.º, n.º 1, da Constituição) é: por um lado, a de que as restrições em causa apenas afetam a eficácia da transmissão das quotas – operada segundo as regras do direito sucessório – em relação à sociedade, ou seja, retiram aos sucessores tão só o direito potestativo de aquisição da qualidade de sócios logo que aceitam a herança ou o legado; por outro lado, que este efeito restritivo elas deverão tê-lo.

Explicitando: com a morte do titular, a quota integra a herança jacente, passando para a titularidade em comum dos herdeiros (ou para a titularidade singular do sucessor, se houver apenas um) com a aceitação da herança, ou para a titularidade do legatário (ou legatários), com a aceitação do legado. Mas passa sem a inerente qualidade de sócio [xliii] ; que poderá vir a ser por eles adquirida ou não. Isto é, provisoriamente, a sucessão incide sobre a quota de capital ou quota-valor, a que é inerente uma mera expectativa de aquisição da correspondente qualidade de sócio. Mesmo que se entenda que a quota em apreço passa para os sucessores com o correspondente direito geral e abstrato a uma quota-parte do valor da sociedade, dos direitos patrimoniais através dos quais ele se efetiva e concretiza – direito ao lucro stricto sensu e direito à quota de liquidação, com o instrumental direito à distribuição periódica de lucros, direito a uma quota-parte das reservas e do capital exuberante que venham a ser distribuídos, direito ao contravalor da quota em caso de exoneração, exclusão, etc. [xliv] – apenas está em causa este último, i.e., o direito a receberem o contravalor da quota se dela vierem a ser privados.

Como se viu, era esta a orientação do Anteprojeto de Coimbra; apenas com a ressalva de que, distinguindo na participação social ou quota social a quota de capital ou quota-valor e a qualidade de sócio, os herdeiros apenas não adquirem automaticamente esta última. Noutros termos, as cláusulas não impedem a transmissão, mas afetam a sua eficácia social ou corporativa (em relação à sociedade). É o que se colhe no art. 225.º, lendo o mesmo como se segue: «O contrato pode estabelecer que (…) [a] quota não se transmitirá [com eficácia em relação à sociedade] aos sucessores (…), bem como pode condicionar a transmissão [com eficácia em relação à sociedade] (…)» (n.º 1); «Quando, por força de disposições contratuais, a quota não for transmitida [com eficácia em relação à sociedade] (…); se nenhuma destas medidas for efetivada (…), a quota considera-se transmitida [com eficácia em relação à sociedade] (rectius, considera-se transmitida com o inerente direito à qualidade de sócio).

A suspensão provisória dos direitos e vinculações sociais prevista no art. 227.º, n.º 2, pelo menos quanto às cláusulas de intransmissibilidade, de consentimento e de continuação da sociedade com os sócios sobrevivos, constitui tão-só uma explicitação do que já decorre daqui. Verdadeiramente, ela só adquire um significado normativo próprio e autónomo quanto às cláusulas que se limitam a atribuir um direito de aquisição ou de amortização e cláusulas semelhantes [xlv] .

Seja como for, resulta dos próprios termos do controvertido art. 227.º, n.º 3, que o poder de votar em deliberações como as de alteração do pacto social e de dissolução da sociedade só é admitido para defender a posição jurídica dos sucessores – potenciais credores do valor da sociedade, se vierem a ser privados da quota herdada, e, com menos probabilidade, potenciais adquirentes da correspondente posição de sócio –, obstando a que a sociedade altere significativamente a participação social em causa ou se coloque numa posição capaz de pôr em perigo o recebimento pelos herdeiros do valor da quota. O que, prima facie, leva a concluir que eles poderão legitimamente votar contra as deliberações, mas não votar a seu favor ou fazê-las aprovar com o seu voto.

Quanto à deliberação acerca do destino da quota prevista no n.º 2 do art. 225.º - isto é, de amortização ou aquisição da quota, pela sociedade, sócio ou terceiro, no exercício de um direito potestativo que o legislador reconhece à sociedade para conseguir o objetivo do controlo das entradas de novos sócios -, o sentido natural das cláusulas e dos textos legais é o de que se trata de um assunto sobre o qual cabe à sociedade, com os sócios sobreviventes, decidir [xlvi] ; nada tendo a ver com a proteção jurídica da mencionada posição dos sucessores, entre a morte do de cujus e a aprovação de tal deliberação. Ou seja, aplica-se a suspensão. Os sucessores não têm o direito de votar, nem sequer de participar na competente reunião da coletividade social, caso seja adotado o método de assembleia como procedimento deliberativo. Isto afigura-se de meridiana clareza, pelo menos quanto às aludidas cláusulas de intransmissibilidade, consentimento e conservação ou estabilização, que, inequivocamente, com o aval da lei, incidem sobre a eficácia da transmissão sucessória em relação à sociedade, retirando aos sucessores, se levadas a sério, o direito à qualidade de sócios normalmente inerente à quota.

No que respeita às demais questões acima enunciadas, assume relevo proeminente a atinente à data a que se reporta a avaliação da quota. Embora da remissão do art. 225.º, n.º 4, para o art. 235.º resulte que a data seria a da deliberação de amortização, a solução correta deve ser, não a aplicação desta regra geral da amortização, mas a do próprio art. 1021.º, n.º 1, do CC [xlvii] , especialmente adaptada à determinação do valor das participações sociais quando o fundamento da liquidação da quota é a morte de um sócio; ou seja, deve considerar-se que a data a atender é a da morte, como também dispõem o art. 110 da Lei de sociedades de capital espanhola e o art. 1.031 do CC brasileiro. Na verdade, diferentemente do que sucede na amortização (e aquisição) de quotas em geral, aqui, uma vez efetivada a amortização ou a aquisição da quota, ela retroage à data da morte (art. 227.º, n.º 1). E essa é também a solução que, via de regra, melhor protege os herdeiros contra possíveis comportamentos depreciadores dos sócios sobrevivos e da sociedade; favorecendo, ainda, a avaliação prévia da quota por um ROC, nos termos do art. 105.º, n.º 2, do CSC (para que remete o art. 235.º, n.º 1, al. a)). Pode ainda acrescentar-se – mormente a respeito das cláusulas de intransmissibilidade, consentimento e estabilização (continuação da sociedade com os sócios sobrevivos) – que, sendo a transmissão ineficaz em relação à sociedade, perante ela, os sucessores, legalmente, têm direito àquilo que existia no património do autor da sucessão, à data da morte; nem mais, nem menos.

Sendo assim, a sua proteção – perante a possibilidade de virem a ser privados da quota e a ficar credores de uma correspondente contrapartida compensatória (tendo em conta este aspeto da sua posição jurídica) – dar-se-á sobretudo através do cumprimento das regras que impõem à sociedade uma prévia avaliação da quota por um ROC independente, com observância do prescrito nos n.ºs 1 e 2 do art. 1021.º do CC (citados arts. 235.º, n.º 1, al. a), e 105.º, n.º 2) [xlviii] , do exercício do direito a requerer exame à escrita (art. 42.º do CCom) e do direito a requerer a avaliação judicial da participação (art. 105.º n.º 3, do CSC e 1068.º do CPC) [xlix] . Podem ainda intervir aqui – embora em menor medida, dado o disposto nos arts. 225.º, n.º 4, in fine, e n.º 5, 235.º, n.º 3, e 236.º, nºs 4 a 6 – normas e medidas de conservação patrimonial, impedindo que a sociedade afete, direta ou indiretamente, o seu património em benefício dos sócios sobrevivos (ou de terceiros com eles relacionados), colocando-se numa situação de impossibilidade de pagar. Incluem-se aqui o direito de impugnar eventuais deliberações de distribuição de dividendos e reservas, de redução e distribuição de capital exuberante, aquisição ou amortização voluntária de quotas dos sobrevivos, etc., que, inviabilizando o recebimento do valor da quota, violam o direito a esta; a par dos meios gerais de conservação da garantia patrimonial, mormente a declaração de nulidade (art. 605.º do CC) e a impugnação pauliana (arts. 610.º e ss. do CC).

Atendendo a que os sucessores podem, em alternativa, vir a tornar-se sócios, para proteção da participação social, o que faz sentido, na lógica do art. 227.º, n.º 3, 2.ª parte, é, como se disse, que eles possam votar contra uma deliberação de dissolução da sociedade – e também de transformação, fusão ou cisão, inserção em grupo de subordinação, etc. – ou de alteração do pacto social, mormente de aumento de capital, mas não a favor da mesma. E o mesmo sucede com as deliberações de distribuição de valor acabadas de referir. Note-se, contudo, que este voto negativo apenas assegura uma proteção (preventiva) efetiva se os herdeiros forem titulares de mais de 25% do capital social; o que, na generalidade das situações, não sucederá. Teria sido mais eficaz e dogmaticamente menos discutível reconhecer-lhes, por ex., quanto às deliberações suscetíveis de afetar substancialmente a sua posição, um direito de veto ou fazer depender a sua eficácia do respetivo consentimento, ou aplicar um regime semelhante ao previsto no art. 368.º do CSC ou no art. 182.º do CVM [l] .

Ainda quanto à aludida contrapartida compensatória, devida aos herdeiros em caso de privação da quota, importa observar que o pacto social contém frequentemente uma regulação restritiva (cfr. supra, nºs 2.2 e 3) [li] . Neste caso, parte do que se referiu a respeito da tutela dos sucessores poderá não ser aplicável. Deve, em todo o caso, respeitar-se sempre a regra contida na primeira parte do art. 227.º, n.º 3, tendo presente que a quota integra a herança ou o legado com o respetivo valor legal. Apenas com o ato de privação da mesma, se este vier a ocorrer, haverá uma possível compressão estatutária desse valor, na determinação da contrapartida.

4.3 Reconstrução jurídica

a) Em termos jurídico-dogmáticos, o que se expôs pode reconstruir-se como se segue. Aceitando que a SpQ comum, além de ser um centro de atividade produtiva – composto por uma superstrutura orgânica e corporativa de membros variáveis e por uma infraestrutura económico-patrimonial encabeçada pelo órgão de administração – legalmente dotado de subjetividade jurídica (personificado), é, enquanto resultado do exercício da liberdade de empresa dos respetivos findadores, aderentes e sucessores, também um objeto jurídico, não apenas do tráfico jurídico, mas igualmente de atribuição jurídica a estes, as quotas que, por força do direito sucessório, integram a herança ou o legado serão quotas ideais de contitularidade ou compropriedade da própria sociedade [lii] .

A quota enquanto participação social (quota social) será, então, constituída por esta quota de compropriedade [liii] (exterior à sociedade) e pela «inerente» ou correspondente qualidade ou posição de sócio (intracorporativa), na qual se concentra a generalidade dos direitos e vinculações que, se ela não existisse, seriam diretamente recondutíveis à quota [liv] . Na ausência de cláusulas estatutárias restritivas, à quota de compropriedade será inerente o direito à aquisição da qualidade de sócio ( rectius, o direito potestativo de aquisição desta), que os sucessores poderão fazer valer nos termos expostos (supra, n.º 1). Havendo restrições, a quota integra a herança ou o legado sem este direito. A posição jurídica associada à quota é a de potencial adquirente deste direito ou de um direito a uma compensação pecuniária, caso a sociedade opte, respeitando a lei, pela amortização ou aquisição da quota. É a quota com esta posição jurídica – que não envolve a qualidade de sócio – que merece proteção, como dispõe o art. 227.º, n.º 3.

Querendo atribuir-se um sentido útil e geral à segunda parte deste preceito, poderá dizer-se que o voto aí previsto, enquanto meio defensivo de tal posição jurídica, será apenas o voto contra, impeditivo de uma alteração substancial da sociedade e das participações sociais; o qual será, excecionalmente, no contexto em apreço, diretamente inerente à quota. Na prática, funcionará como meio dissuasor da tomada das deliberações aí contempladas, se a quota herdada representar mais de 25% do capital social.

b) A visão dualista ou analítica da participação social proposta – composta por uma quota de compropriedade (ou por uma quota-valor) e pela correspondente (em princípio inerente) qualidade de sócio – deve ver-se como isso mesmo: como uma perspetiva ou maneira de ver o fenómeno, que nos parece adequada para compreender designadamente certas vicissitudes da mesma; não como uma teoria substitutiva da corrente visão monista ou sintética – que vê na quota (e também nas ações) a própria posição de sócio com certa medida de direitos e vinculações –, a qual poderá revelar-se mais ajustada noutras situações. Teorias ou perspetivas à parte, o que importa sobretudo salientar na análise do fenómeno translativo é a ideia de transmissão com e sem eficácia em relação à sociedade.

Na perspetiva adotada, a eficácia em relação à sociedade respeita à própria qualidade de sócio. Uma transmissão ineficaz em relação a esta significa que o transmissário não tem a qualidade de sócio correspondente à quota adquirida, como dispõe, por ex, o art. L 223-13 do CCom francês. E, consequentemente, nem é titular dos correspondentes direitos sociais, nem se encontra adstrito às vinculações legais e estatutárias próprias da condição de sócio. Logicamente, em face das cláusulas de intransmissibilidade, estabilização e consentimento, a suspensão a que se refere o art. 227.º, n.º 2, será, portanto, total; podendo sê-lo ou não em face das cláusulas de amortização simples.

Invertendo o discurso, isto é, começando pela segunda parte do n.º 3 do art. 227.º, poderá, contudo, dizer-se que a suspensão dos direitos é parcial (residual e defensiva); e, literalmente, sê-lo-á para todas estas cláusulas. Concebem-se, então, duas construções do fenómeno: entender que o resíduo de direitos defensivos em causa é inerente à quota, mas mantém-se em suspenso a correspondente qualidade de sócio; ou reconhecer aos herdeiros, apesar das cláusulas, a qualidade de sócios, com suspensão da generalidade dos direitos e das vinculações. Neste segundo caso, haverá uma limitada dissociação dos direitos sociais, como a que se encontra o Código das Obrigações suíço (arts. 685c e 788), embora mais circunscrita. Note-se, porém, que o artigo só se ocupa dos direitos e vinculações, em face das restrições estatutárias em apreço. Não afasta a exigência geral de notificação da transmissão em devidos termos à sociedade, tendente à aquisição da qualidade de sócio (cfr. supra, n.º 1).

Adotando a visão monista, diríamos que, em virtude das regras sucessórias, a quota social (participação social em sentido objetivo), posição de sócio ou de membro da SpQ, passa para os herdeiros em conformidade com as regras sucessórias, mas, enquanto ela não for tornada eficaz em relação à sociedade, esta não reconhece os transmissários como sócios – tudo se passando como se, para ela, a transmissão não existisse - e, portanto, nem eles têm legitimidade material para exercer os correspondentes direitos sociais nem ela pode fazer valer contra eles as vinculações próprias de condição de sócio [lv] . Quanto às cláusulas de intransmissibilidade, estabilização e consentimento, a ineficácia traduzir-se-á, então, natural ou mesmo inevitavelmente, numa suspensão do exercício dos direitos e vinculações sociais; suspensão que poderá estender-se, supletivamente, às sociedades cujo pacto social contenha simples cláusulas de amortização facultativa, de forma plena ou parcial.

Lendo literalmente e de forma isolada a segunda parte do n.º 3 do art. 227.º, a suspensão será apenas parcial; e compreenderá todas as cláusulas mencionadas. Conjugando-o com o art. 225.º e atendendo à história do mesmo – ligada às cláusulas de amortização simples – o respeito pela autonomia estatutária e a coerência do sistema podem levar, no entanto, a limitar a sua aplicação a estas cláusulas.

5. O que sucede se houver cláusulas restritivas no interesse dos herdeiros

Como se viu (supra, n.º 1), os sucessores têm, nos termos gerais, o direito potestativo de se tornarem sócios, notificando a sociedade da aquisição da quota e/ou requerendo-lhe a promoção do respetivo registo (arts. 242.º-A e 242-º-B); mas, com base nas cláusulas contempladas no art. 226.º – cláusulas que condicionam a transmissão da quota à sua vontade ou lhes conferem um direito à amortização (ou aquisição) da mesma –, o CSC reconhece-lhes, em alternativa, o direito de exigirem da sociedade que disponha da quota – amortizando-a, adquirindo-a ou fazendo-a adquirir –, de modo a receberem o respetivo valor, legal ou estatutário (ou o que seja acordado com a sociedade); direito este exercitável no prazo de 90 dias a contar do conhecimento do óbito (art. 226.º, n.º 1).

Podem, portanto, dentro deste prazo, optar pelo exercício de um destes direitos. Se optarem pelo segundo, a sociedade tem o ónus de amortizar, adquirir ou fazer adquirir a quota. Caso o não faça, fica sujeita a dissolução (art. 226.º, n.º 2); tal como sucede no caso de um sócio ter o direito a que a sociedade o exonere – mediante a amortização ou aquisição da quota ou quotas –, se ela não satisfizer este direito (art. 240.º, n.ºs 3 e 4).

Perante uma cláusula do primeiro tipo (condicionadora da transmissão), até à eventual opção pela entrada para a sociedade, falta-lhes, naturalmente, a qualidade de sócios, uma vez que não exerceram o direito correspondente. Daí que, também neste caso, o art. 227.º, n.º 2, apenas se limita a esclarecer que os direitos e vinculações próprios da posição de sócio se encontram suspensos. Quanto à defesa da sua posição jurídica enquanto não fazem a sua opção e, sendo esta pela amortização ou aquisição da quota, enquanto a sociedade não lhe dá destino, valem as considerações acima expostas, a respeito do art. 225.º Note-se, contudo, quanto à polémica segunda parte do art. 227.º, n.º 3, que os herdeiros podem ter um legítimo interesse em não entrar para a sociedade; sendo injustificado reconhecer-lhes provisoriamente a qualidade de sócios contra a sua vontade.

Se o pacto social se limitar a atribuir-lhes um direito à amortização (ou aquisição) da quota, teoricamente, eles poderão fazer-se reconhecer como sócios, sob reserva de, dentro do prazo referido de 90 dias, ainda poderem vir a exercer tal direito. Faltando essa reserva, a sociedade terá o direito de presumir que abdicaram do seu exercício. Na falta de exercício, quer do direito à qualidade de sócios, quer do direito à amortização, enquanto a situação perdurar e não houver decorrido o prazo, retira-se do art. 227.º, n.º 2, a suspensão da qualidade social, isto é, a titularidade da quota sem esta.

6. O que sucede se houver cláusulas restritivas no interesse da sociedade e dos herdeiros

O CSC não regula especificamente a situação decorrente da eventual existência no pacto social de cláusulas que restringem a eficácia da transmissão da quota por morte, com eficácia em relação à sociedade, no interesse da sociedade e dos herdeiros. O respetivo regime terá de se encontrar, portanto, através da aplicação conjugada dos arts. 225.º e 226.º [lvi] No essencial, dentro do prazo de 90 dias a contar do conhecimento da morte do sócio, pode a sociedade exercer o direito potestativo de amortizar, adquirir ou fazer adquirir a quota; e podem os sucessores, que se encontram privados do direito à qualidade de sócios, exigir que ela o faça.

Sendo assim, como se viu a respeito dos preceitos em apreço, há uma natural suspensão da qualidade de sócio, com os direitos e vinculações que lhe são próprios. Ou seja, também aqui o art. 227.º, n.º 2, apenas confirma que é assim.

III

Cláusula de amortização facultativa compulsiva

7. A cláusula que atribui à sociedade o poder de amortizar a quota com fundamento na morte do sócio

Importa agora responder, em especial, à seguinte questão: a cláusula que atribui à sociedade o poder de amortizar a quota com fundamento na morte do sócio é uma cláusula restritiva? Aplica-se-lhe o disposto nos arts. 225.º e 227.º do CSC? Vamos ver primeiro a situação no domínio da LSQ (n.º 7.1) e, depois, neste Código (n.º 7.2).

7.1 A situação na vigência da Lei de 1901

Na vigência da LSQ de 1901, o entendimento maioritário era no sentido de que a cláusula em apreço – diferentemente do que sucedia, designadamente, com as cláusulas de estabilização – não restringia a transmissão das quotas por morte do titular; apenas conferia à sociedade o poder de as amortizar, já na esfera jurídica dos sucessores, tendo a competente deliberação apenas eficácia para o futuro. Por conseguinte, identificando-se a quota com a participação social ou posição de sócio, os herdeiros deviam considerar-se sócios, com a plenitude dos correspondentes direitos; incluindo o de participar e votar na deliberação acerca da amortização [lvii] .

Contra este entendimento, pronunciaram-se Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier, a respeito das cláusulas de amortização que contivessem uma estipulação de prazo, razoável, para o exercício do poder de amortizar [lviii] . A argumentação era, sumariamente, a que se segue.

Contendo o pacto social uma cláusula de continuação da sociedade com os sócios sobreviventes, por interpretação, integração ou conversão legal da mesma, é de entender que a sociedade fica com o poder de amortizar a quota, sendo necessária uma deliberação social para a extinguir [lix] , mas mostra-se inequívoco que os herdeiros não sucedem nos direitos sociais; apenas adquirindo o direito a receber o respetivo valor [lx] .

No que respeita à cláusula que apenas atribui à sociedade o direito de amortizar quotas por morte do titular, se o pacto social não dispuser de maneira diferente e contiver um prazo, razoável, para o exercício do direito [lxi] , deve ele ser interpretado ou integrado, atendendo ao espírito da mesma, à vontade conjetural das partes e a uma adequada ponderação dos interesses em jogo, no sentido de que, enquanto a situação não for esclarecida em definitivo pelos sócios sobreviventes, os herdeiros mantêm-se afastados da sociedade, assegurando-se-lhes, do mesmo passo, uma proteção adequada à sua posição jurídica. Mais especificamente, a solução deverá ser: «a) Falecendo um dos sócios, a aquisição pelos herdeiros da qualidade social fica em suspenso, até que a sociedade tome a resolução, já no sentido de lhes liquidar a sua parte (amortização da quota do defunto), já de os admitir como associados. b) Esta última deliberação será substituída de pleno direito pelo decurso do prazo dentro do qual, segundo os estatutos, aquela outra poderia ter lugar. c) Tomada pela sociedade a deliberação de amortização, há que entender, portanto, que os herdeiros nunca foram sócios, mas apenas titulares de um crédito contra a sociedade. d) Durante a pendência da condição, poderão ser exercidos pelos herdeiros todos os direitos necessários e conducentes à tutela da sua posição jurídica.» [lxii]

A posição jurídica dos herdeiros é, no essencial, a de titulares atuais de um direito de crédito contra a sociedade, correspondente ao valor da quota, a que têm direito sem mais, ou que se manifestará através dos direitos patrimoniais próprios da condição de sócio, se a opção da sociedade vier a ser no sentido de os admitir no seu seio. Embora os autores também aludam à sucessão nos «direitos patrimoniais inerentes à quota» – o que poderia sugerir uma dissociação dos direitos sociais, semelhante à que se encontra no Código das Obrigações suíço (arts. 685c, n.º 2, e 788) –, a ideia parecer, mais especificamente, a de que o que faz parte, imediatamente, da herança e deve ser desde logo acautelado é o «valor patrimonial representativo da quota», um crédito tendo por objeto o seu justo valor, em geral exercitável logo que a sociedade delibere a amortização da quota ou de que os herdeiros podem vir a desfrutar, no futuro, através dos direitos patrimoniais que integram a posição de sócio (perceção de dividendos, etc., com consequentes direitos de intervenção na vida administrativa da empresa), se a opção for pela sua aceitação como sócios [lxiii] . Como direitos de defesa, assinalam-se, exemplificativamente, o de impugnar a avaliação da quota feita pela sociedade, o de requerer exame à escrita e, vindo a amortização a ser deliberada já fora do tempo, o de impugnar a legalidade da deliberação [lxiv] .

7.2 Situação atual

A posição daqueles professores foi expressamente acolhida no Anteprojeto de LSQ de Raul Ventura. Dispunha o art. 32.º, n.º 2: «A transmissão por morte só pode ser impedida por cláusula que permita a amortização da quota do sócio falecido» [lxv] . E também no Anteprojeto de Vaz Serra [lxvi] .

No Anteprojeto de Coimbra, que serviu de base ao articulado do CSC, confirma-se este entendimento. Recorda-se o que se lê na respetiva exposição de motivos:

“[O] artigo 54.º [lxvii] define a situação da quota no período que medeia entre a data do falecimento do sócio e o momento da amortização ou aquisição da quota, ou o termo do prazo estabelecido no n.º 2 do artigo 53.º [lxviii] : embora os direitos e obrigações inerentes à quota estejam suspensos durante este período, nem por isso os interesses dos herdeiros ficam desacautelados, pois se lhes faculta exercer durante a suspensão «todos os direitos necessários à tutela da sua posição jurídica» (por exemplo, o direito de impugnar a avaliação feita pela sociedade da quota do de cujus, podendo requerer, para o efeito, exame à escrita). Esta solução consagra a doutrina que de há muito vem sendo preconizada por A. Ferrer Correia e V. Lobo Xavier (…)” [lxix] ; e “foi, de resto, acolhida tanto pelo Anteprojecto de Raul Ventura como pelo Anteprojecto de Vaz Serra.” [lxx]

Daí que, já no domínio do CSC, Ferrer Correia se tenha pronunciado no sentido de considerar as cláusulas em apreço – sujeitas por este Código ao prazo de 90 dias, seja por via do art. 225.º, n.º 2, seja pelo art. 234.º, n.º 2 – abrangidas pelo art. 227.º [lxxi] . Na verdade, para além deste argumento histórico, existe um importante argumento sistemático (ou analógico) a favor de tal posição. É o que se extrai do art. 226.º, n.º 1: se operam essa suspensão as cláusulas que atribuem, sem mais, aos herdeiros, um direito à amortização, o mesmo se justifica a respeito das cláusulas de amortização facultativa em apreço, ou seja, em que é a sociedade que tem o direito de amortizar.

Além disso, diferentemente do que se entendia no domínio da LSQ, hoje, o art. 227.º, n.º 1, determina que a amortização da quota retrotrai os seus efeitos à data do óbito. Embora o preceito se refira à amortização realizada nos termos dos arts. 225.º e 226.º, e esteja em causa demonstrar que a que aqui se discute também cabe no primeiro, não se afigura haver razões substanciais para a tratar de modo diverso das que nele se encontram literalmente compreendidas. E também tem algum relevo a circunstância de as atuais cláusulas de amortização simples (ou facultativa) compulsiva terem vindo ocupar, na prática estatutária, as antigas cláusulas de intransmissibilidade e de estabilização.

Em suma, salvo se outra coisa resultar do pacto, a solução deverá ser esta. No fundo, o CSC contém a seguinte coordenada fundamental: (i) sempre que, de acordo com o pacto social, a transmissão da quota por morte – ou a correspondente aquisição da qualidade de sócio – estiver afastada ou condicionada (no interesse da sociedade e/ou dos herdeiros – arts. 225.º, n.º 1, e 226.º, n.º 1/2ª hipótese da previsão) e (ii) sempre que o destino final da quota dependa da vontade da sociedade e/ou dos herdeiros (cfr. o art. 226.º, n.º 1/1ª hipótese), é supletivamente criada uma situação provisória de pendência ou suspensão dos direitos e vinculações inerentes à quota (art. 227.º, n.º 2). Com efeito, se, em especial, o fim primordial da cláusula de amortização facultativa é o de permitir à sociedade rejeitar os herdeiros de um sócio – conferindo-lhe um controlo sobre a composição da sua coletividade social em situações nas quais as vicissitudes das quotas ou dos sócios atuais podem levar à entrada de novos sócios não escolhidos por quem nela se mantém –, faz menos sentido que a admissão destes lhe seja automaticamente «imposta» por lei, em virtude do simples facto da morte e das regras sucessórias; o natural é a criação do referido período transitório de suspensão. A não ser assim, substancialmente estaríamos, de resto, perante um caso de exclusão – ou amortização excludente – dos herdeiros, anómalo, dado que o respetivo fundamento não respeita à sua pessoa nem ao seu comportamento. Compreende-se que a sociedade reserve estatutariamente a sua decisão acerca da admissão ou não dos herdeiros para um momento posterior à morte, em face da pessoa dos potenciais adquirentes da quota, da sua situação patrimonial e financeira, corporativa, etc. É esse o sentido fundamental da cláusula em apreço. Mas, na falta de elementos contratuais em contrário, o natural é que essa reserva de decisão posterior funcione sem a «invasão forçada» e a interferência dos herdeiros.

A idêntico resultado se chega por outra via. Uma das hipóteses previstas pelo art. 225.º, n.º 1, é a do condicionamento da transmissão (com eficácia face à sociedade) ao consentimento desta. Ora, a cláusula em apreço – dada a sua finalidade de colocar nas mãos da sociedade, pessoalmente reduzida após a morte de um sócio, a decisão acerca da conveniência ou não de «continuar com os respetivos herdeiros» – tem implícito um natural condicionamento dessa transmissão, encontrando-se, por isso, compreendida nesse segmento do preceito e, desse modo, no art. 227.º, n.º 2 [lxxii] .

Discorda-se, assim, do entendimento segundo o qual as cláusulas merecem o mesmo tratamento que dominantemente se lhes dava no domínio da LSQ, expresso, designadamente, no acórdão do STJ de 23.09.1997, em cujo sumário se lê:

«I (…) II - Estando em causa uma cláusula estatuária de simples possibilidade de amortização da quota do sócio falecido, ossucessores adquirem, na data do óbito e como consequência deste, acontitularidade dessa quota eo direito de serem convocados para qualquer assembleia geral da sociedade, enquanto não ocorrer amortização ou ato semelhante que faça cessar a posição jurídica adquirida por sucessão (artigo 248.º, n.º 5, do Código das Sociedades Comerciais).

III - Se a convocatória anteriormente referida for omitida, independentemente de os contitulares da quota do sócio falecido poderem ou não votar relativamente à respectiva amortização, as deliberações são nulas (artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais).» [lxxiii]

Encarando o problema sob uma perspetiva mais ampla, pode, ainda, observar-se o que se segue. Os pactos sociais devem ser interpretados tendo em conta que a SpQ é formada por uma coletividade de membros variáveis, sendo relevante o sentido que às respetivas cláusulas dá um destinatário normal – um homem médio pertencente ao círculo dos atuais titulares e potenciais interessados na aquisição das quotas e inerente socialidade – embora numa SpQ apenas com membros fundadores ou em que se deduza do comportamento dos sócios uma dada interpretação se possa, entre eles, atender a um sentido consensualmente aceite. Tipicamente, um tal intérprete não faz nem raciocínios jurídicos, nem sequer estritamente lógicos; o que importa é, antes de tudo, a função prático-jurídica da cláusula, os interesses e valores que visa acautelar ou salvaguardar no contexto em que se insere; por conseguinte, o que releva não é o critério lógico-conceptual do juiz, segundo o qual uma cláusula de amortização facultativa pressupõe a transmissão da quota por morte e apenas permite à sociedade uma atuação «a posteriori», eliminando os sucessores que desse modo se tornaram sócios se isso lhe convier. Ora, tendo em conta essa função ou finalidade típica, na falta de indicação no pacto social em sentido diferente, faz sentido que o controlo sobre a composição da coletividade social não se limite a um controlo «a posteriori», de caráter excludente. Tal será, especialmente, o caso se, no mesmo pacto social, a liberdade de cessão se encontrar circunscrita ao universo dos próprios sócios, com exclusão daqueles que normalmente serão os sucessores do sócio falecido. Na verdade, se o pacto afasta o regime supletivo de liberdade do art. 228.º, n.º 2, 2.ª parte, e, quanto à morte, prevê a amortizabilidade compulsiva da quota, afigura-se natural uma interpretação da cláusula de amortização no sentido de um afastamento, ainda que tão-só provisório, da transmissão por morte com eficácia (plena) face à sociedade.

Não se chegando a um resultado seguro, vale a regra legal supletiva que se extrai da lei, conforme se expôs. Podem também intervir, antes ou depois, os cânones da interpretação complementadora ou integração do contrato social, procedendo designadamente a uma ponderação dos interesses em jogo implicada no princípio da boa fé; valendo aqui as apontadas observações de Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier [lxxiv] .

IV

Síntese conclusiva

8. Transmissão sucessória e transmissão social. Perspetiva dualista da participação social

Decorre do exposto que, apesar de o atual regime da transmissão de quotas de SpQ por morte do respetivo titular tenha tido como objetivo primordial instituir um sistema claro e equilibrado, pondo termo às dúvidas e incerteza jurídica reinantes no domínio da LSQ, esse objetivo não se encontra alcançado. Em boa medida, tal deve-se, por um lado, à circunstância de a cláusula de amortização facultativa compulsiva, hoje dominante, não estar contida de forma clara no art. 225.º, atendendo apenas ao seu teor literal, e, por outro lado, porque, partindo de uma identificação da quota com a participação social do tipo societário em apreço, isto é, reconduzindo-a à posição de sócio com certa medida de direitos e vinculações, o articulado de base dos artigos 225.º e 227.º tem subjacente uma conceção do fenómeno translativo, de que Ferrer Correia é a face mais visível, em pelo menos aparente contradição com a segunda parte do art. 227.º, n.º 3, acrescentada no Projeto de Código de Sociedades e refletindo o pensamento de Raul Ventura.

Justifica-se, por isso, uma revisitação do tema, desconsiderando a participação de sócio profissional de SpQ profissional, que o CSC não contempla. Em traço grosso, a nossa visão – tendo na base a distinção entre transmissão com e sem eficácia em relação à sociedade, também presente na cessão de quotas e na transmissão de ações, a que pode acrescentar-se uma distinta construção da participação social – é suscetível de ser sumariada como se segue.

8.1 Transmissão sucessória e transmissão socialmente eficaz

a) As quotas – como bens ou posições jurídicas essencialmente patrimoniais que são – estão sujeitas às regras de transmissão, legal e testamentária, do direito sucessório, designadamente ao princípio da sucessão universal. E esta transmissão dá-se, não apenas quando o pacto social é omisso sobre o assunto, sendo as quotas livremente transmissíveis, mas também – ao menos se não houver uma admissível definição estatutária do destino da quota do sócio falecido – quando o pacto social contém restrições à mesma.

Sendo a quota livremente transmissível, ela passa para a titularidade em comum dos herdeiros com a aceitação da herança e para a titularidade de eventual legado com a aceitação deste. Mas a SpQ é estranha a tais atos (como o é relativamente a uma subsequente partilha, em que se especifica a titularidade da quota) e, além de uma dimensão patrimonial, tem também uma dimensão social ou corporativa: é uma organização de membros variáveis, sendo esta variação mais ou menos importante para o seu adequado funcionamento e desempenho. Por isso, como acontece com as ações (nominativas) e com a cessão de quotas [lxxv] – a que pode acrescentar-se a cessão da generalidade dos direitos não reais e da posição contratual livremente transmissível ou cuja transmissão tenha sido previamente consentida, mas por razão especial, ainda maior –, a eficácia da transmissão em relação a ela está dependente de comunicação em devidos termos ou reconhecimento por si; no atual direito, envolvendo a notificação o requerimento de promoção do registo e a prova da qualidade de herdeiro ou legatário. Só assim os herdeiros se tornam sócios ou, pelo menos, reconhecidos como tais pela sociedade [lxxvi] e, portanto, legitimados para o exercício dos direitos sociais; e também só com essa eficácia a sociedade estará em condições de exercer, em relação a eles, os correspondentes direitos corporativos (por ex., o direito a prestação suplementar cuja chamada haja sido deliberada post mortem).

Dito de outra forma: com a aceitação da herança ou do legado, a quota passa para os respetivos beneficiários, não com a qualidade de sócio, mas com o inerente direito potestativo de aquisição desta qualidade; dependendo a sua aquisição do exercício, em devidos termos, deste direito (ou do reconhecimento, expresso ou tácito, dos herdeiros como sócios pela sociedade, baseado na vontade, também expressa ou tácita, dos mesmos de assumirem a posição de sócios). Na construção monista da participação social o que passa para os herdeiros, por força do direito sucessório, é a própria quota social, mas, antes de a aquisição desta se tornar eficaz em relação à sociedade, ela existe na esfera jurídica dos mesmos sem a correspondente legitimidade social ou substantiva para o exercício dos direitos sociais: apenas lhe é inerente o direito dos herdeiros a fazerem-se reconhecer como sócios pela sociedade, i.e., o direito de aquisição desta legitimidade, exercitável em termos análogos aos da construção anterior.

b) Caso o pacto contenha restrições à transmissibilidade por morte no interesse da sociedade – permitindo a esta filtrar ou controlar as entradas de novos sócios –, e elas sejam recondutíveis ao art. 225.º do CSC, embora este preceito fale em cláusulas impeditivas da própria transmissão (de intransmissibilidade ou condicionamento da transmissão), o que está em causa é apenas a eficácia da transmissão sucessória em relação à sociedade. Isto é assim no caso da cessão de quotas (art. 228.º, n.º 2); e é-o por identidade ou maioria de razão neste caso.

Quer dizer: quando a transmissão em relação à sociedade é livre, os herdeiros têm, por inerência à quota, o direito potestativo de aquisição da qualidade de sócios ou de se fazerem reconhecer como tais, nos termos acima vistos, ficando legitimados para o exercício dos direitos sociais e, em princípio, sujeitos ao correspondente exercício pela sociedade dos direitos que lhe cabem, legal e estatutariamente. Com estas cláusulas, este direito é-lhes retirado e também ficam isentos das correspondentes vinculações sociais; embora não a título definitivo – até decorrer o prazo de 90 dias ou até ser tomada uma das medidas previstas no art. 225.º, n.º 2.

Isto é claro quanto às cláusulas compreendidas no teor literal do art. 225.º, n.º 1: cláusulas de intransmissibilidade da quota (leia-se: impeditivas da transmissão com eficácia em relação à sociedade), que sujeitam a transmissão (leia-se: com eficácia em relação à sociedade) a certos requisitos (consentimento da sociedade, qualidade de herdeiro legitimário, etc.) e cláusulas de continuação da sociedade apenas com os sócios sobrevivos; esta última, claramente dirigida à qualidade de sócio e, portanto, à eficácia social ou corporativa da transmissão sucessória. Perante elas, esta eficácia está provisoriamente impedida; e, consequentemente, a própria qualidade social, com os direitos e vinculações que são próprios do status socii, está em suspenso, ou, pelo menos, está-o o exercício dos direitos e a adstrição às vinculações. O art. 227.º, n.º 2, di-lo expressamente, mas não acrescenta nada: limita-se a esclarecer o que já resultava do art. 225.º

É claro também quando o pacto social condicionar a transmissão à vontade dos herdeiros, por ex., fazendo-a depender do seu consentimento. Com efeito, neste caso, eles têm, nos termos gerais, o direito potestativo de se fazer reconhecer como sócios, mas possuem, igualmente, o direito de não aceitar a transmissão – rectius, de não assumir a qualidade de sócios (assente na eficácia da transmissão em relação à sociedade) – e de exigir à sociedade que lhes proporcione o competente valor da quota (legal ou estatutário), que podem exercer no prazo de 90 dias a contar do conhecimento do óbito do titular (art. 226.º, n.º 1). A suspensão de direitos e vinculações prevista no art. 227.º, n.º 2, é uma mera explicitação do que já decorre daqui. E torna-se patente que a proteção conferida pelo pacto e reconhecida pela lei vai além do aspeto meramente patrimonial e do mero exercício ou não exercício dos direitos: eles podem ter um legítimo interesse em não entrar para a sociedade, em não ficarem membros da mesma.

c) A situação já se mostra duvidosa no caso das cláusulas que se limitem a reconhecer à sociedade o poder de amortizar quotas com fundamento na morte de um sócio (cláusulas de amortização facultativa compulsiva) ou a conceder aos herdeiros o direito a que a sociedade lhes amortize, adquira ou faça adquirir a quota. Na verdade, em termos estritamente lógicos, estas cláusulas não seriam restritivas da transmissão: quanto às primeiras, como era entendimento dominante no domínio da LSQ e ainda presente, hoje, nalgumas decisões dos tribunais, concebe-se que os herdeiros entrem para a sociedade (embora não automaticamente, como se indicou) e que a amortização incida sobre a quota herdada com a inerente qualidade de sócio. Há, inclusive, pactos sociais em que isso é expresso. Quanto às segundas, concebe-se, igualmente, que eles exerçam o direito à amortização ou aquisição já enquanto sócios.

Todavia, o art. 227.º, n.º 2, vem, a este respeito, estabelecer uma regra supletiva: na presença de tais cláusulas, se do pacto não resultar por interpretação (ou integração) coisa diferente, também se dá uma suspensão dos direitos e vinculações inerentes à quota, ou seja, próprios da condição de sócio. Isso resulta expressamente do preceito quanto às cláusulas presentes no art. 226.º e decorre de uma interpretação histórica (supostamente também teleológica) e sistemática do art. 225.º e do próprio art. 227.º, n.º 2. Em rigor, esta regra da suspensão até só possui um significado normativo autónomo para as cláusulas em apreço.

Sendo assim, em boa verdade, uma suspensão limitada dos direitos e a correspondente aquisição da posição de sócio, ainda que com um conteúdo diminuto, que, atendendo sobretudo à sua história, se pode extrair da parte final do n.º 3 do art. 227.º apenas se mostra compatível com estas últimas cláusulas [lxxvii] . Aplicada às demais – de intransmissibilidade, conservação, etc. –, significaria uma ostensiva limitação da autonomia estatutária, no mínimo discutível, quer atendendo aos interesses em jogo, quer em face do regime aplicável às sociedades anónimas quando a transmissão por morte esteja sujeita ao consentimento da sociedade.

d) Considerando as várias interpretações possíveis da lei, a situação dos herdeiros será a seguinte: i) com a simples aceitação da herança ou do legado, eles tornam-se titulares da quota, mas sem eficácia em relação à sociedade; ou seja, adquirem a quota sem inerente qualidade de sócios ou sem se encontrarem reconhecidos como sócios pela sociedade (logo, sem a correspondente legitimidade corporativa para o exercício dos direitos sociais); e, por força das cláusulas em apreço, ii) ficam titulares da quota sem o inerente direito potestativo de aquisição da qualidade de sócio ou de se fazerem reconhecer como sócios, legitimados para o exercício dos direitos sociais; ou, sobrevalorizando a segunda parte do art. 227.º, n.º 3, numa das construções possíveis, iii) ficam titulares da quota com o inerente direito de aquisição da qualidade de sócio, ou o direito de aquisição da legitimidade corporativa, mas com um conteúdo reduzido, meramente defensivo; encabeçando a correspondente posição de sócios rudimentar (ou estatuto social de direito menor) – em modo coletivo, se forem vários, antes da partilha – quando tornarem a transmissão eficaz em relação à sociedade, isto é, com o exercício deste direito, nos termos vistos a respeito das transmissões livres.

8.2 Aspetos construtivos. Perspetiva dualista da participação social

Em termos construtivos, o fenómeno das transmissões estatutariamente limitadas em apreço pode explicar-se de duas maneiras: 1.ª) com a aceitação da herança ou do legado, a quota passa para os herdeiros, mas a transmissão é ineficaz em relação à sociedade e, portanto, por um lado, encontram-se suspensos todos os direitos e vinculações sociais (com possível exceção dos direitos defensivos enquadráveis no n.º 3 do art. 227.º, exceção esta circunscrita às cláusulas de amortização facultativa ou não), ou seja, a própria qualidade social está em suspenso, provisória e condicionalmente sem titular; e, por outro lado, em virtude das cláusulas, os herdeiros, apesar de titulares da quota, encontram-se, também provisória e condicionalmente, privados do direito potestativo de aquisição da socialidade; 2.ª) com a aceitação da herança ou do legado, a quota passa para os herdeiros, com a inerente qualidade social, mas a transmissão é ineficaz em relação à sociedade e, portanto, o exercício dos correspondentes direitos sociais, quer os que eles detêm em face da sociedade quer os que esta detém perante eles,encontra-se suspenso; tanto aqueles como esta carecem de legitimidade material para esse exercício.

Em termos gerais, se alguém (neste caso, os herdeiros) adquire uma participação social (no caso, quota social) sem eficácia em relação à sociedade, querendo isto dizer que se adquiriu uma posição de sócio, embora sem tal eficácia, não podendo ela ser oposta à corporação nem por ela ser oposta, faz sentido perguntar: mas o que significa ser alguém titular da participação, isto é, ser sócio, em todos os contextos e para todos ou a generalidade dos efeitos, menos no âmbito da sociedade de que supostamente se é membro, em face dela? A segunda construção resolve elegantemente o problema, fazendo incidir as cláusulas, não na participação ou posição de sócio em si, mas no exercício (bilateral) dos direitos sociais, na legitimidade. Numa análise substancial, deixa subsistir, no entanto, algum desconforto; e, designadamente, nas situações reguladas no art. 226.º, não contempla adequadamente o possível interesse dos herdeiros em não entrar para a sociedade. Além disso, o art. 227.º, n.º 2, fala em suspensão dos direitos e obrigações [lxxviii] ; não apenas do seu exercício.

Vejamos a primeira construção. Também ela suscita uma magna questão: estando suspensa a qualidade social (e faltando o direito de aquisição da mesma), normalmente associada à quota, o que é, afinal, esta quota, que pode subsistir sem tal qualidade (ainda que apenas provisória e condicionalmente)? Concebem-se duas respostas.

a) A primeira consiste em identificá-la com a quota de capital, a que aludem designadamente, os arts. 197.º, n.º 1, e 199.º, al. a), do CSC; entendendo esta não apenas como uma quota ou fração da cifra estatutária do capital social, mas também, em termos substanciais, como uma quota-parte ou fração do valor residual fundamental da sociedade (quota-valor) [lxxix] ; sobre a qual incide ou é concebível um direito geral, de índole patrimonial, que cabe aos fundadores-investidores em capital de risco da sociedade, posteriores aderentes e seus sucessores, enquanto tais. Com efeito, uma SpQ comum – com a respetiva substância económico-patrimonial – é o resultado do exercício da liberdade de empresa (e da nela implicada liberdade de investimento) e esta coenvolve um princípio de apropriação dos resultados do seu exercício. Por conseguinte, a entender-se que a sociedade não pode ser objeto de apropriação em espécie, porque dotada de subjetividade jurídica, sê-lo-á, pelo menos, em valor; e por quotas. Tal quota-valor – ou o direito sobre ela –, normalmente, tem associada a qualidade de sócio, podendo inclusive falar-se num princípio de inerência, e, por isso, ela fica obnubilada, já que um direito geral à mesma também pode ver-se como integrante da posição de sócio, seja enquanto síntese dos respetivos direitos patrimoniais fundamentais, seja encarando estes como manifestações e modos de efetivação desse direito geral. Mas revela-se em casos como o presente [lxxx] .

No fundo, esta construção não se afasta substancialmente da construção defendida, na linha da distinção clássica francesa entre titre e finance, por Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier, tal como a interpretámos; podendo ver-se como um desenvolvimento da mesma. E distingue-se quer das teses da dissociação entre a componente patrimonial da participação social ou posição de sócio (direitos patrimoniais, com pertinentes direitos instrumentais) e os demais direitos sociais, quer das que entendem que apenas está em causa o valor da quota social, realizável através da perceção de dividendos e de outras distribuições sociais, em vida da sociedade ou na respetiva liquidação.

b) A segunda resposta possível à questão formulada depende da resposta a uma outra questão mais geral: a SpQ, além de ser um sujeito de direito, pode qualificar-se também como um objeto jurídico, como uma coisa produtiva (res productiva), essencialmente imaterial, objeto do tráfico jurídico e, inclusive, de afetação ou atribuição jurídica? Defendeu-se noutro estudo que sim [lxxxi] . Ou seja, entendemos que uma SpQ comum, além de ser um centro de atividade produtiva – composto por uma superstrutura orgânica e corporativa de membros variáveis e por uma infraestrutura económico-patrimonial encabeçada pelo órgão de administração – legalmente dotado de subjetividade jurídica (personificado), é, enquanto estrutura de acumulação de capital e resultado do exercício da liberdade de empresa dos respetivos fundadores, aderentes e sucessores, também um objeto jurídico, não apenas do tráfico jurídico, mas igualmente de atribuição jurídica a estes.

E, sendo assim, as quotas que, por força do direito sucessório, integram a herança ou o legado serão quotas ideais de contitularidade ou compropriedade da própria sociedade [lxxxii] . A quota enquanto participação social (quota social) será, então, constituída por esta quota de compropriedade [lxxxiii] (exterior à sociedade) e pela «inerente» ou correspondente qualidade ou posição de sócio (intracorporativa), na qual se concentra a generalidade dos direitos e vinculações que, se ela não existisse, seriam diretamente recondutíveis à primeira [lxxxiv] .

Na ausência de cláusulas estatutárias restritivas, à quota de compropriedade será inerente o direito à aquisição da qualidade de sócio ( rectius, o direito potestativo de aquisição desta), que os sucessores poderão fazer valer nos termos expostos (supra, n.º 1). Havendo restrições, a quota integra a herança ou o legado sem este direito. A posição jurídica associada à quota é a de potencial adquirente deste direito ou de um direito a uma compensação pecuniária, caso a sociedade opte, respeitando a lei, pela amortização ou aquisição da quota. É a quota com esta posição jurídica – que não envolve a qualidade de sócio – que merece proteção, como dispõe o art. 227.º, n.º 3.

Querendo atribuir-se um sentido útil à segunda parte deste preceito – aplicável a todas as cláusulas ou, como entendemos preferível, apenas às cláusulas de amortização facultativa –, poderá dizer-se que o voto aí previsto, enquanto meio defensivo de tal posição jurídica, será apenas o voto contra, impeditivo de uma alteração substancial da sociedade e das participações sociais; o qual será, excecionalmente, no contexto em apreço, diretamente inerente à quota. Na prática, funcionará como meio dissuasor da tomada das deliberações aí contempladas, se a quota herdada representar mais de 25% do capital social [lxxxv] .



* Professor Convidado da Faculdade de Direito da UCP (Escola de Lisboa).

[i] O presente artigo – numa versão mais condensada – destina-se ao livro de homenagem ao Prof. Doutor António Pinto Monteiro. Acerca do tema, podem conferir-se, designadamente, os autores e textos seguintes: Abreu, J. M. Coutinho, Curso de Direito Comercial, II – Das Sociedades, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, pp. 338 e ss., 388 e ss.; Almeida, A. Pereira, Sociedades Comerciais, Valores Mobiliários, Instrumentos Financeiros e Mercados, vol. I – As Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 360 e ss.; Albuquerque, Pedro de, Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC, in Menezes Cordeiro (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, pp. 788 e ss.; Coelho, M.ª Ângela, «A transmissão mortis-causa de quotas no anteprojecto de lei de sociedades por quotas», RDE 2 (1976), pp. 2-32; Cordeiro, A. Menezes, Direito das Sociedades, II – Das Sociedades em especial, 2.ª ed., Almedina, 2007, pp. 366 e ss.; Correia, A. Ferrer, «A sociedade por quotas de responsabilidade limitada nos Projectos do futuro Código das Sociedades Comerciais», in Temas de Direito Comercial e de Direto Internacional Privado, Almedina, Coimbra, 1989, pp. 73-121, 100 e ss., e «A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o Código das Sociedades Comerciais», ibidem, pp. 123-169, 157 e ss. (texto originalmente publicado na ROA 47 (1987), pp. 659 a 700); Correia, A. Ferrer / Xavier, V. Lobo, «A amortização de quotas [cotas] e o regime da prescrição», RDES XII/4 (1966), pp. 13-90, com Apêndice, Nota I, «Acerca da cláusula que confere à sociedade o direito de amortizar em certo prazo as quotas dos sócios falecidos: a situação dos respectivos sucessores durante o prazo», pp. 91-98; Correia, A. Ferrer / Xavier, V. Lobo / Caeiro, António / Coelho, M.ª Ângela, Sociedade por quotas de responsabilidade limitada - Anteprojecto de Lei – 2.ª Redacção, Separata da RDE, anos 3 (1977) e 5 (1979), cit. como Anteprojeto de Coimbra (1979); Cunha, Paulo Olavo, Direito das Sociedades Comerciais, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pp. 517 e s., com indicações na nota 800; Marques, J. P. Remédio, Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC, in Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. III, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 425 e ss.; Martins, A. Soveral, “«Pais, filhos, primos, etc., Lda»: as sociedades por quotas familiares (uma introdução)”, DSR 10 (2013), pp. 39-74, 50 e ss.; Sequeira, Raquel, «Transmissão de quotas e ações – Algumas questões», RDS X (2018), 3, pp. 527-557, 529 e ss. e 556; Silva, Stefanie / Machado, M.ª João, «Breves notas sobre a transmissão mortis causa de quota», Revista Jurídica Portucalense, n.º 25 (2019), pp. 54-70, Triunfante, Armando, CSC Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 218 e ss.; Ventura, Raul, «Apontamentos para a reforma das sociedade por quotas de responsabilidade limitada», BMJ n.º 182 (1969), pp. 25-196, 148 e ss., e Anteprojecto – Segunda redacção, ibidem, pp. 197-247, Sociedades por Quotas, vol. I, 2.ª ed., in Comentário ao CSC, Almedina, Coimbra, 1989, Anotação aos artigos 225.º a 227.º, pp. 531 e ss. (note-se que a numeração dos artigos do Anteprojeto aqui transcritos não coincide com a que consta naquele texto); Xavier, Rita Lobo, Reflexões sobre a posição do cônjuge meeiro em sociedades por quotas, BFD (Suplemento XXXVIII), Coimbra, 1993, pp. 124 e ss. Adde, desta autora, Manual de Direito das Sucessões, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 275 e ss., e Amaro, Ricardo - «Sucessão familiar na empresa e transmissão mortis causa das quotas: as cláusulas restritivas da transmissão de quotas por morte», DSR n.º 28 (2022), pp. 157-193.

[ii] Cfr. os arts. 197.º, n.º 1, 199.º, al. a), 9.º, n.º 1, al. g), 219.º, n.º 1, e 222.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC) e Mendes, Evaristo, «Aquisições potestativas no artigo 490 do CSC após a Reforma de 2006 e procedimento justo», in AAVV, V Congresso DSR, Almedina, Coimbra, 2018, pp. 343-400, 347, e «Compra e venda de sociedades», in AAVV, VI Congresso DSR, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 155-216, 199 e ss., 208 e s., onde se apresenta também uma construção alternativa, referida adiante, no texto (n.º 4.3). Os artigos citados sem indicação da fonte pertencem ao CSC, salvo se do texto ou contexto resultar coisa diferente; e os acórdãos na mesma situação encontram-se disponíveis em www.dgsi.pt.

[iii] A posição global de sócio, ou participação em sentido subjetivo, pode identificar-se com ela, mas também pode ser diferente, se o sócio for titular ou contitular de mais de uma quota.

[iv] Entre estes, podem contar-se também, designadamente, a influente doutrina dos Professores Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier, no sentido da recondução das cláusulas tradicionais a cláusulas de amortização, e a circunstância de ela ter passado, por via do Anteprojeto de Coimbra, para o CSC (cfr. o texto correspondente às notas 37 e 38).

[v] Nas SpQ profissionais, quanto aos sócios profissionais, o problema da transmissibilidade respeita à sua participação de capital e apresenta contornos especiais (cfr. o art. 34.º da Lei 53/2015).

[vi] Cfr., por ex.: Ferrer Correia, «A sociedade por quotas de responsabilidade limitada nos Projectos do futuro Código das Sociedades Comerciais» e «A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o Código das Sociedades Comerciais», Temas (1989), pp. 81 e 132, Lições de Direito Comercial, II, Coimbra, 1968, pp. 84 e s., M.ª Ângela Coelho, «A transmissão mortis-causa de quotas» (1976), pp. 4 e ss., Raul Ventura, Sociedades por Quotas (1989), pp. 374 e ss., 534 e ss., 542 e ss., e Vaz Serra, Anotação ao acórdão do STJ de 16.01.1970 (Oliveira Carvalho), RLJ 104 (1971), pp. 24 e ss., 28 e ss., em especial, 40 e s.

[vii] Cfr., por ex., Raul Ventura, Sociedades por Quotas (1989), pp. 547 e s., 556 e s., 560 e s., 569 e 571 (mesmo havendo restrições estatutárias à transmissão), Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), p. 338, Remédio Marques, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2016), pp. 427, 429 e s., 442 e s., 454 (nota), 455 e 457, Raquel Sequeira, «Transmissão de quotas e ações» (2018), pp. 529 e 533, e, na jurisprudência, os acórdãos do STJ de 19.09.2006 (Azevedo Ramos), proc. 06A2395, CJ-STJ 2006/3, pp. 55 e ss. (perante cláusula de reserva de não aceitação dos herdeiros e correspondente dever de aquisição da quota), e 29.10. 2013 (Gabriel Catarino), proc. 994/11.0T2AVR.C1.S1 (perante cláusula de intransmissibilidade e consequente obrigação de amortização, aquisição ou alienação da quota, pelo VC), e o acórdão do TRL de 7.10.2008 (Rui Moura), proc. 6727/2008-1. No domínio da LSQ, cfr. por ex., Eduardo Ralha, «Da transmissibilidade dos direitos sociais», RDES VII (1954)/1, pp. 5-14, 10 e ss. (na falta de disposições especiais no pacto social que definam o destino da quota e, contra diversas decisões do STJ, nas próprias SNC), os acórdãos do STJ de 16.02.1973 (Fernandes Costa), RLJ 107 (1974/75), pp. 59 e ss., com anotação concordante de Vaz Serra (pp. 61 e ss.), e 1.02.1977 (Costa Soares), BMJ n.º 264 (1977), pp. 210 e ss. (considerando que isto também seria assim perante uma cláusula de amortização simples, mas não em face de uma cláusula de continuação com os sócios sobrevivos), e o acórdão do TRL de 8.01.1982 (Martins da Fonseca), CJ 1982/1, pp. 146-148. Sendo a transmissão livre, Menezes Cordeiro também entende serem aplicáveis as regras sucessórias e cita jurisprudência no sentido de que os sucessores adquirem, com a morte, ipso iure, a qualidade de sócios: ac. do TRL de 12.01.1992, BMJ n.º 415 (1992), p. 716, e ac. do STJ de 4.10.1994 (Cardona Ferreira), BMJ n.º 440 (1994), pp. 498-506. Considera, porém, que, enquanto a herança se mantiver indivisa, eles não são propriamente sócios, embora possam nomear um representante comum: Direito das Sociedades (2007), p. 366 e nota 986. Entendimento semelhante a este colhe-se em Pedro de Albuquerque, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2021), pp. 789 (veja-se também a nota 7), no acórdão do TRL de 12.06.1996 (Cruz Broco), CJ 1996/3, pp. 114 e ss., e em Soveral Martins, Cessão de quotas, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 56. Quanto a este aspeto específico, a observação mostra-se pertinente. Com efeito, nesta fase, até à especificação da titularidade dos bens que integram a herança (incluindo a quota), os herdeiros parecem dever considerar-se sócios, com base na titularidade em comum do património hereditário, não singularmente considerados, mas enquanto coletividade: após a comunicação da aceitação da herança, com a devida identificação dos herdeiros, existe uma espécie de socialidade coletiva, à qual se aplica mutatis mutandis o regime da contitularidade das quotas. Na jurisprudência, cfr. também o que consta da fundamentação do acórdão do STJ de 8.02.1996 (Miranda Gusmão), BMJ n.º 454 (1996), pp. 607 e ss.

[viii] Anteprojecto de Coimbra (1979), p. 57. Note-se, por um lado, que a eficácia da transmissão em relação à sociedade, no fundo, pode reconduzir-se à transmissão da quota com a inerente qualidade de sócio; por outro lado, que, no caso da transmissão por morte, apenas se considera relevante, no Anteprojeto, o interesse da sociedade, pelo que esta pode reconhecer os herdeiros como sócios, mesmo contra a sua vontade; isto para assegurar que os mesmos não se furtam às obrigações sociais. Este aspeto merece, contudo, uma análise mais fina, tendo em conta a liberdade de associação implicada na liberdade de empresa (cfr. o art. 46.º, n.º 3, da Constituição) e a circunstância de poder entender-se que a obrigação de entrada e a obrigação de realização de prestações suplementares decorrente de uma competente deliberação de chamada já existem na esfera do de cujus à data da abertura da sucessão como posições jurídicas a se, embora «inerentes» à quota, passando para os sucessores com esta, independentemente da qualidade de sócio.

[ix] O mesmo sucedia no Projeto de Código das Sociedades (arts. 208.º a 210.º) - Ministério da Justiça, Código das Sociedades (Projecto), Lisboa, 1983.

[x] Na linha do art. 211.º, n.º 3, do Projeto de Código das Sociedades, dispõe este n.º 3 do art. 228.º: «A transmissão de quota entre vivos torna-se eficaz para com a sociedade logo que lhe for comunicada por escrito ou por ela reconhecida, expressa ou tacitamente».

[xi] Não é o caso.

[xii] Neste, como noutros casos, mormente o relativo às cláusulas estatutárias, infra (n.ºs 2 e 3), acrescentou-se o itálico. No domínio da LSQ, cfr. as observações de F. Tavares de Carvalho, «Sobre a transmissibilidade das quotas sociais», Revista dos Tribunais 58 (1940), pp. 210 e ss., 258. Note-se que, em face do direito sucessório, o autor considerava nulas as cláusulas de intransmissibilidade e de condicionamento da transmissão, mostrando-se, no entanto, favorável às cláusulas de amortização, que, no seu entender, cumpriam o mesmo objetivo (pp. 258 e ss.). Veja-se, ainda, a nota 13, infra.

[xiii] Ou lhe comuniquem a transmissão, considerando-se implícito na comunicação o pedido de promoção do registo. Cfr., a respeito da cessão, por ex., Raquel Sequeira, «Transmissão de quotas e ações» (2018), p. 537, com mais indicações.

[xiv] Na mesma linha, cfr., quanto aos direitos não reais em geral, os arts. 583.º e 588.º do CC; e, quanto à posição contratual pré-consentida (ou livremente transmissível), o art. 424.º, n.º 2, do mesmo Código. Note-se que, apesar do que vai no texto, é possível uma manifestação tácita de adesão à sociedade por parte dos herdeiros e, havendo ou não cláusulas estatutárias restritivas, um reconhecimento, também tácito, dos mesmos como sócios; situação frequente, designadamente, nas sociedades familiares. Na Alemanha, cfr., por ex., as indicações fornecidas por Holger Altmeppen, in Roth / Altmeppen, GmbHG-Kommentar, 8.ª ed., Beck, Munique, 2015, § 40, n. 10 (p. 809), § 16, nn. 2, 21 e ss. (pp. 420 e 426), Hueck / Fastrich, in Baumbach / Hueck, GmbHG-Kommentar, 19.ª ed., Beck, Munique, 2010, § 16, nn. 3, 10, 12 e ss. (pp. 340, 343 e s.), Koppensteiner / Gruber, in Rowedder / Schmidt-Leithoff, GmbHG-Kommentar, 5ª ed., Franz Vahlen, Munique, 2013, § 16, nn. 3 e 6 (pp. 1143 e s.), e a recente sentença do Kammergericht de Berlim de 23.11.2022 – 22 W 50/22, disponível em https://gesetze.berlin.de/bsbe/document/KORE279272023.

[xv] Dispõe-se neste número, de que nos ocupamos adiante: «Durante a suspensão, os sucessores poderão, contudo, exercer todos os direitos necessários à tutela da sua posição jurídica, nomeadamente votar em deliberações sobre alteração do contrato ou dissolução da sociedade ». Esta controvertida última parte, em itálico, foi acrescentada ao texto do Anteprojeto de Coimbra; constando do art. 210.º, n.º 3, do Projeto de Código das Sociedades de 1983.

[xvi] Art. 54.º, na redação final.

[xvii] Art. 55.º, na redação final.

[xviii] Art. 54.º, na redação final.

[xix] Remete-se para A amortização de quotas e o regime da prescrição, 1966, Apêndice, pp. 84 e s. Trata-se de separata da RDES, por nós citada.

[xx] Anteprojeto de Coimbra (1979), pp. 59 e s.

[xxi] Na versão original, a dissolução era judicial; assim devendo ser, porque está em causa uma questão jurisdicional (cfr. o art. 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição). Não parece que a situação caiba no disposto no art. 202.º, n.º 4, da Constituição.

[xxii] Uma nota de síntese sobre estas cláusulas, tomando como referência a prática estatutária até 2005, pode encontrar-se em Evaristo Mendes, «Amortização de quotas e morte de sócio. Prática estatutária (Nota)», disponível em https://www.evaristomendes.eu/artigos.html, I – 23.

[xxiii] No acórdão do STJ de 29.10. 2013 (Gabriel Catarino), proc. 994/11.0T2AVR.C1.S1, consta uma cláusula em que se dispõe que «as quotas não se transmitem por morte dos sócios aos seus sucessores, devendo a sociedade amortizá-las, adquiri-las ou fazê-las adquirir por sócio ou terceiro, nos termos da lei», sendo a amortização «realizada pelo valor da quota determinado em face do último balanço aprovado».

[xxiv] Cfr. oacórdão do STJ de 15.12.1964 (Albuquerque Rocha), BMJ n.º 142 (1965), pp. 362 e ss., e o acórdão do TRP de 22.01.1969 (Eduardo Botelho de Sousa), RT 88 (1970), pp. 173-175 (com anotação), que continha a seguinte cláusula: «No caso de falecimento ou interdição de qualquer sócio, os herdeiros ou representantes do sócio falecido ou interdito poderão continuar na sociedade desde que os sócios sobrevivos ou capazes o consintam. Caso contrário, a sociedade poderá amortizar a quota nos termos e condições previstas no art. 9º e seus §§ destes estatutos» (VC, salvo acordo; falta a fixação de prazo para definir a situação).

[xxv] No acórdão do STJ de 19.09.2006 (Azevedo Ramos), proc. 06A2395, CS-STJ 2006/3, pp. 55 e ss., consta a seguinte cláusula: «Por falecimento ou interdição de algum sócio, a sociedade continuará com o sobrevivo ou capaz e os herdeiros ou representante legal do falecido ou interdito, devendo os herdeiros nomear um de entre si que nela os represente enquanto a respetiva quota estiver indivisa; porém, a sociedade ou sócios sobrevivos ou capazes reservam-se o direito de não aceitar que nela fiquem os herdeiros ou representante, devendo, neste caso, adquirir a respetiva quota, cujo pagamento aos herdeiros ou representante do sócio falecido ou interdito será efetuado nas condições do parágrafo único do artigo anterior». No acórdão do TRP de 22.01.1969 (Eduardo Sousa), Revista dos Tribunais, 88 (1970), pp. 173 e ss., com anotação de J. G. Sá Carneiro, a cláusula dispunha que, por morte, os herdeiros poderiam continuar na sociedade desde que os sócios sobrevivos consentissem; caso contrário, a sociedade poderia amortizar a quota. VC = valor contabilístico ou de balanço. No acórdão do STJ de 16.02.1973 (Fernandes Costa), RT 91 (1973), pp. 417 ss. (também com anotação), e supra, nota 7, a cláusula estipulava: «Ocorrendo a falecimento ou interdição de qualquer dos sócios, a sociedade poderá amortizar a quota do falecido ou interdito pelo valor que lhe haja sido atribuído no último balanço geral aprovado. § 1º Não querendo ou não podendo a sociedade amortizar a quita... será ela adjudicada aos restantes sócios, em partes iguais. § 2º A sociedade ou qualquer dos sócios só poderão usar da faculdade que lhes é conferida no corpo deste artigo e seu § 1º dentro do prazo de 90 dias...».

[xxvi] No acórdão do TRP de 18.03.1986 (Martins da Costa), CJ 1986/2, pp. 178-180, a cláusula dispunha que, por falecimento… de qualquer dos sócios, a sociedade continuaria «com os sobrevivos … e os herdeiros» se todos estivessem de acordo.

[xxvii] Em todos os casos, acrescentou-se o itálico.

[xxviii] No acórdão do STJ de 23.01.2001 (Ribeiro Coelho), proc. 00A3654, consta a cláusula seguinte: «Dissolve-se a sociedade nos casos legais, mas no caso de morte ou interdição de qualquer sócio a sociedade fica com o direito de amortizar a sua quota pelo valor que lhe tiver sido atribuído no último balanço geral aprovado». No acórdão do TRE de 23.01.1986 (Faria de Sousa), CJ 1986/1, pp. 231 e ss., a cláusula dispunha: «É permitida a amortização das quotas sociais pelo valor que resultar do último balanço devidamente aprovado e assinado pelos sócios, podendo a sociedade usar desse direito apenas no caso de falecimento ou interdição de qualquer sócio». Veja-se, ainda, a cláusula mais complexa sobre que incidiu o citado acórdão do STJ de 16.02.1973 (Fernandes Costa), referido acima (notas 7 e 25).

[xxix] Sobre ela, cfr. o ac. do STJ de 4.12.1984 (Alves Cortês), BMJ n.º 342 (1985), pp. 405 e ss. Pode colocar-se a questão de saber se há aqui um dever de amortizar, embora a resposta deva, em geral, ser positiva. Mas já é mais duvidoso que ao dever em causa corresponda um direito à amortização dos herdeiros, enquadrável no art. 226.º

[xxx] O CSC prevê uma suspensão semelhante no art. 324.º, n.º 1, al. a), também aplicável às quotas, por força do art. 220.º, n.º 4.

[xxxi] Deixa-se de lado uma série de outras questões relacionadas com os n.ºs 3 a 5 do art. 225.º

[xxxii] Cfr., neste sentido, Ferrer Correia, «A sociedade por quotas segundo o CSC», Temas (1989), pp. 159 e ss., R. Lobo Xavier, Reflexões (1993), pp. 124 e ss. e nota 83, pp. 126 e ss. (criticando a posição de Raul Ventura), Soveral Martins, «Pais, filhos» (2013), p. 53 (como decorre do art. 225.º, n.ºs 1 e 2, a quota não se transmite; o que o art. 227.º, n.º 2, pretende esclarecer é que ninguém pode exercer os direitos ou ter de cumprir as obrigações inerentes à quota enquanto não ocorrerem os factos previstos no preceito). A respeito do Anteprojeto de Coimbra, cfr. também M.ª Ângela Coelho, «A transmissão mortis-causa de quotas» (1976), pp. 29 e s., com mais indicações. No domínio da LSQ, além de Ferrer Correia e V. Lobo Xavier, cujo pensamento se analisa adiante (n.º 7), cfr. Avelãs Nunes, O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais, Coimbra Editora, 1968, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 204 e s.

[xxxiii] Cfr. a nota anterior. Não é claro o que integra exatamente a herança. Veja-se infra, n.º 7.

[xxxiv] Cfr., neste sentido, Raul Ventura, Sociedades por Quotas (1989), pp. 547 e ss., 556 e s., 560 e ss., 569 e 571, Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), pp. 341 e ss., Remédio Marques, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2016), pp. 429 e s., 451 e ss., Raquel Sequeira, «Transmissão de quotas e ações» (2018), pp. 532 e s. e 556, Silva / Machado, «Breves notas» (2019), p. 58 e nota 11 (citando o acórdão do STJ de 29.10.2013 (Gabriel Catarino)), 62 e ss. (analisando as duas posições em confronto e optando pela segunda), em especial, 65 e ss., 67 e s., Pereira de Almeida, As sociedades comerciais (2022), p. 362. Na jurisprudência, cfr., por ex., os acórdãos do STJ de 23.01.2001 (Ribeiro Coelho), proc. 00A3654 (cláusula de amortização simples), 23.09.1997 (Cardona Ferreira), BMJ n.º 469 (1997), pp. 586 e ss. (cláusula de amortização simples), e 29.10. 2013 (Gabriel Catarino), proc. 994/11.0T2AVR.C1.S1 (cláusula de intransmissibilidade com obrigação de dar destino à quota), e o acórdão do TRL de 15.05.2000 (Ferreira Girão), CJ 2000/3, pp. 88 e s. (cláusula de amortização simples).

[xxxv] Cfr., designadamente: Raul Ventura, Sociedades por Quotas (1989), pp. 546 e ss., 566 e ss., Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), pp. 340 e s., 342 e 344, Raquel Sequeira, «Transmissão de quotas e ações» (2018), pp. 532 e s., Silva / Machado, «Breves notas» (2019), p. 58 (na deliberação sobre o destino da quota os sucessores não participam; cfr., no entanto, as pp. 61 e s. e 64, a respeito do art. 226.º e citando o acórdão do STJ de 29.10.2013 (Gabriel Catarino) – podem participar, sem direito de voto); e, na jurisprudência, o acórdão do STJ de 23.01.2001 (Ribeiro Coelho), proc. 00A3654 (cláusula de amortização simples).

[xxxvi] Cfr., designadamente, Pedro de Albuquerque, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2021), pp. 790, com mais indicações na nota 22, 794 e s., Remédio Marques, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2016), pp. 430 e s., 451 e ss., e, na jurisprudência (perante uma cláusula de simples amortização), o acórdão do STJ de 23.09.1997 (Cardona Ferreira), BMJ n.º 469 (1997), pp. 586 e ss., e o acórdão do TRP 17.06.1996 (Abílio de Vasconcelos), CJ 1996/3, pp. 222 e ss.

[xxxvii] Cfr. V. Lobo Xavier/ Ferrer Correia, «A amortização de quotas e o regime da prescrição» (1966), nota 2, pp. 27 e ss., M.ª Ângela Coelho, «A transmissão mortis-causa de quotas» (1976), pp. 20 e ss., em especial, nota 49 e texto correspondente à nota 50 (p. 22).

[xxxviii] Cfr., por ex., Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), pp. 339 e 340, Remédio Marques, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2016), pp. 429 e s., 431 e s., Raquel Sequeira, «Transmissão de quotas e ações» (2018), pp. 531 e 533. Silva / Machado, «Breves notas» (2019), pp. 56 e s. Consta do acórdão do STJ de 19.09.2006 (Azevedo Ramos), proc. 06A2395, CS-STJ 2006/3, pp. 55 e ss.: «Aliás, mesmo no domínio da Lei das Sociedades por Quotas de 1901, vigente à data da constituição da sociedade em questão, era defendido pela melhor doutrina (designadamente por Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier) que a cláusula que conferia aos sócios sobrevivos a faculdade de não admissão na sociedade dos herdeiros do sócio falecido configurava uma verdadeira amortização de quota, tese essa que veio a ser consagrada no actual art. 225 do C.S.C., que por essa razão se considera ter carácter interpretativo do direito anterior ( Ac. S.T.J. de 31-5-90, Bol. 397-490)». Cfr. também o acórdão do STJ de 23.01.2001 (Ribeiro Coelho), proc. 00A3654 (tratava-se de uma cláusula de amortização simples).

[xxxix] A favor, cfr., designadamente: Pedro de Albuquerque, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2021), p. 790, com mais indicações na nota 22, Remédio Marques, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2016), pp. 431, 452 e ss., Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades (2007), p. 367, o acórdão do STJ de 23.09.1997 (Cardona Ferreira), proc. 97A083 (deixando em aberto a questão do voto, mas cláusula de amortização facultativa), e o acórdão do TRL de 15.05.2000 (Ferreira Girão), CJ 2000/3, pp. 88 e s. (estava em causa uma cláusula de amortização simples). Cfr. também o acórdão do STJ de 29.10. 2013 (Gabriel Catarino), proc. 994/11.0T2AVR.C1.S1, embora no caso aqui decidido os sucessores tenham estado representados. Contra, Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), pp. 340 e s. e nota 817, Raquel Sequeira, «Transmissão de quotas e ações» (2018), p. 532, e o acórdão do STJ de 23.01.2001 (Ribeiro Coelho), proc. 00A3654 (tratava-se de uma cláusula de amortização simples).

[xl] Cfr., a favor, Pedro de Albuquerque, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2021), pp. 790, com mais indicações na nota 22, e 795. No sentido da inexistência do direito de voto, além de Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), citado na nota anterior, cfr., designadamente, Raul Ventura, Sociedades por Quotas (1989), pp. 568 e ss., 570, Remédio Marques, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2016), p. 452, Raquel Sequeira, «Transmissão de quotas e ações» (2018), p. 532, e os acórdãos do STJ de 23.01.2001 (Ribeiro Coelho), proc. 00A3654 (tratava-se de uma cláusula de amortização simples), e de 29.10. 2013 (Gabriel Catarino), proc. 994/11.0T2AVR.C1.S1.

[xli] Cfr., por ex., Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), p. 390, e Remédio Marques, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2016), p. 434.

[xlii] Cfr. Evaristo Mendes, A transmissibilidade das ações, tese UCP, 1989, II, pp. 268 e nota 39, e M.ª João Tomé, «Algumas notas sobre as restrições contratuais à livre transmissão de ações», Direito e Justiça V (1991), pp. 199-218, 210 e ss., em especial, nota 102, pp. 217 e s. (aderindo à doutrina de Ferrer Correia e V. Lobo Xavier, relativa às SpQ). Não especificamente sobre o tema, mas parecendo ir neste sentido, cfr. Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), pp. 367 e 358. Cfr., ainda, Raquel Sequeira, «Transmissão de quotas e ações» (2018), pp. 534 e 535, a respeito das transmissões entre vivos, 550 e s., a respeito das transmissões por morte (admitindo a titularidade sucessória das ações, mas não esclarecendo o que acontece aos direitos inerentes). Quanto às SNC, cujo lugar no tecido económico veio a ser ocupado, em grande medida, pelas SpQ, decorre do art. 184.º que, em princípio, os sucessores não entram para a sociedade, tendo apenas direito ao valor da parte social; e, mesmo havendo uma cláusula no pacto social de continuação com eles, a assunção da posição de sócio depende do seu expresso consentimento (n.ºs 1 e 2). Os direitos e vinculações inerentes à parte social extinguem-se com a morte do sócio; sendo a herança integrada apenas por aquele direito patrimonial (n.º 7). Isto é assim mesmo quando a parte social vier, por morte do sócio, a compor a meação do seu cônjuge (sobrevivo) (n.º 8).

[xliii] Em certa medida, a situação assemelha-se à que ocorre na aquisição de quotas próprias, em que a quota também fica na titularidade da sociedade, mas sem a «inerente» qualidade de sócio.

[xliv] A que acresce, como instrumental direito de proteção, o direito de subscrição preferencial de novas quotas, em caso de aumento do capital por novas entradas. No aumento de capital gratuito, há um simples desdobramento da própria quota. Daí a ressalva contida no art. 324.º, n.º 1, al. a).

[xlv] O mesmo vale para as cláusulas que atribuem aos sucessores um direito à amortização ou à aquisição da quota, contempladas no art. 226.º: cfr. infra, n.º 5. Como já se referiu, as cláusulas de amortização facultativa serão objeto de tratamento especial, no n.º 7.

[xlvi] Cf. Também, por ex., Raul Ventura, Sociedades por Quotas (1989), p. 570, Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), pp. 340 e s. e nota 817, e o acórdão do STJ de 23.01.2001 (Ribeiro Coelho), proc. 00A3654.

[xlvii] Aplicável, não apenas às sociedades civis, mas também, pelo menos, às SNC e aos sócios comanditados de SCS (arts. 184.º, n.º 7, e 474.º do CSC). A parte social dos sócios comanditários suscita, por força do art. 475.º, o mesmo problema que se verifica nas SpQ.

[xlviii] Se não for observado o procedimento da avaliação por ROC independente, nos termos deste art. 105.º, n.º 2, pode também justificar-se, porventura, a legitimidade dos herdeiros para impugnar a deliberação de amortização (ou aquisição), ao abrigo do preceito em apreço e, porventura, do art. 236.º, n.º 2. Cfr., em geral, Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), p. 342, Remédio Marques, «Anotação aos artigos 225.º a 227.º do CSC» (2016), p. 452, Silva / Machado, «Breves notas» (2019), p. 66.

[xlix] Acerca dos direitos em apreço, cfr. supra, no texto, o teor do Anteprojeto de Coimbra e Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), p. 342.

[l] No Anteprojeto de Raul Ventura, depois de se dispor que a transmissão por morte só poderia ser impedida por cláusula que permitisse a amortização da quota do sócio falecido (art. 32.º, n.º 2) e que até à tomada da competente deliberação os direitos e obrigações ficavam suspensos (art. 39.º, n.º 2), previa-se que, se a quota não viesse a ser amortizada (ou adquirida), as deliberações entretanto tomadas sem a participação dos herdeiros ficariam sem efeito salvo se por eles ratificadas ou se o voto não pudesse ter influído nelas (art. 39.º, n.º 3).

[li] Acerca do tema, cfr. Evaristo Mendes, «Valor das participações sociais. Valor legal e valor estatutário. Discrepância de valores», DSR 13 (2015), pp. 107-152, 122 e ss., com mais indicações. Na jurisprudência, para um caso extremo de exercício abusivo do direito de amortizar pelo valor estatutário, no contexto em apreço, cfr. o acórdão do STJ de 5.12.1991 (Cabral de Andrade), proc. 080783; mas aceitando a validade das cláusulas que mandam atender ao valor nominal da quota e afastando o abuso do direito, cfr. o acórdão de 29.06.1973 (Acácio Carvalho), BMJ n.º 228 (1973), pp. 245 e ss., e Revista dos Tribunais 91 (1973), pp. 323 e ss. Noutros acórdãos, poderia ter sido aplicada a doutrina do abuso do direito, mas o assunto foi decido considerando inválida a deliberação: cfr., por ex., os acórdãos STJ de 1.02.1977 (Costa Soares), BMJ n.º 264 (1977), e de 23.09.1997 (Cardona Ferreira), BMJ n.º 469 (1997).

[lii] Cfr. Evaristo Mendes, «Compra e venda de sociedades» (2022), pp. 199 e ss., 205 e ss.

[liii] Este termo implica, naturalmente, a utilização de um conceito alargado de propriedade.

[liv] Cfr. Evaristo Mendes, «Compra e venda de sociedades» (2022), p. 206.

[lv] Ressalvam-se os direitos e obrigações já constituídos, que integram a herança juntamente com a quota: cfr. supra, nota 8. Cfr., a este respeito, o que consta do Anteprojeto de Coimbra (n.º 1.1) e a posição de Soveral Martins, embora o autor não aluda à eficácia em apreço (nota 32).

[lvi] Cfr. também Raul Ventura, Sociedades por Quotas (1989), p. 560.

[lvii] Cfr., designadamente: os acórdãos do STJ de 11.10.1968 (Ludovico da Costa), BMJ n.º 180 (1968), pp. 309 e ss., 23.07.1971 (Acácio Carvalho), BMJ n.º209 (1971), pp. 172 e ss., 16.02.1973 (Fernandes Costa), BMJ n.º 224 (1973), pp. 195 e ss.,Revista dos Tribunais 91 (1973), pp. 417 e ss., e RLJ 107 (1974/75), pp. 59 e ss., com anotação substancialmente concordante de Vaz Serra, pp. 61 e ss. - dando conta da diferente posição de Ferrer Correia e V. Lobo Xavier, maxime, pp. 64, 67 e ss. -, distinguindo a cláusula em apreço de outras como a de estabilização e dando mais indicações, 1.02.1977 (Costa Soares), BMJ n.º 264 (1977), pp. 210 e ss. (considerando expressamente que, em face de uma distinta cláusula de continuação com os sócios sobrevivos, a qualidade de sócio não seria adquirida), 17.07.1986 (Frederico Baptista), BMJ n.º 359 (1986), pp. 740 e ss., e 26.05.1987 (Alcides de Almeida), BMJ n.º 367 (1987), pp. 522 e ss. (contendo indicações acerca do estado da questão); os acórdãos do TRL de 2.12.1981 (Barros Baião), CJ 1981/4, pp. 168 e s., 17.06.1986 (Herlander Martins), CJ 1986/3, pp. 127 e ss., e 27.10.1992 (Adriano Morais), proc.080783 (negando eficácia retroativa a uma deliberação renovatória), e o acórdão do TRP de 18.03.1986 (Martins da Costa), CJ 1986/2, pp. 178 e ss. Vejam-se, ainda, por ex., as anotações de J. G. Sá Carneiro, aos acórdãos do TRP de 22.01.1969 (Eduardo Sousa), Revista dos Tribunais, 88 (1970), pp. 174 e s., e de 17.12.1969 (Abel de Campos), ibidem, pp. 276 e ss., e ao acórdão do STJ de 29.06.1973 (Oliveira Carvalho), mesma revista, ano 91 (1973), pp. 323 e ss., 327 e ss., distinguindo as cláusulas de estabilização das de simples amortização e fornecendo mais indicações, e, com igual distinção, Raul Ventura, Sociedades Comerciais: Dissolução e Liquidação, I, Ática, Lisboa, 1960, pp. 327, 401, 442 e ss., 448 e ss. (entendendo que, em face da simples cláusula de amortização, os herdeiros, implicitamente, adquiriam a qualidade de sócios, mas não em face de uma cláusula de estabilização). Do primeiro autor, pode, ainda, ver-se, mais desenvolvidamente, «Cláusulas de conservação e sociedades unipessoais», mesma revista, ano 65 (1947), pp. 162 e ss.

[lviii] V. Lobo Xavier /Ferrer Correia, «A amortização de cotas e o regime da prescrição» (1966), pp. 91 e ss. = A amortização de quotas e o regime da prescrição, Coimbra, 1966 (Separata da RDES XII/4), Apêndice, pp. 84 e ss. Note-se que, também no domínio da lei anterior, diferentemente de Raul Ventura e J. G. Sá Carneiro, como já se notou (supra, notas 37 e 38), estes autores entendiam que as cláusulas de intransmissibilidade, conservação ou estabilização só poderiam valer como cláusulas de amortização, exigindo, pois, a sua aplicação uma deliberação da coletividade social – cfr., naquele escrito, a nota 2, pp. 28 e s.

[lix] V. Lobo Xavier /Ferrer Correia, «A amortização de cotas e o regime da prescrição» (1966), nota 2, pp. 37 e ss.

[lx] V. Lobo Xavier /Ferrer Correia, «A amortização de cotas e o regime da prescrição» (1966), pp. 92 e s.

[lxi] No caso analisado, em comentário a uma sentença arbitral de 10.01.1966, a cláusula regulava o exercício dos direitos pelos herdeiros enquanto a sociedade não usasse do direito e faltava um prazo: cfr. V. Lobo Xavier /Ferrer Correia, «A amortização de cotas e o regime da prescrição» (1966), nota 1, p. 27.

[lxii] V. Lobo Xavier /Ferrer Correia, «A amortização de cotas e o regime da prescrição» (1966), pp. 91 e ss.

[lxiii] V. Lobo Xavier /Ferrer Correia, «A amortização de cotas e o regime da prescrição» (1966), pp. 91, 96 e s. Note-se que Raul Ventura, no Anteprojeto, admitia expressamente a possibilidade de dissociação dos direitos patrimoniais (art. 42.º); cfr. também «Reflexões sobre direitos dos sócios», CJ IX (1984)/2, pp. 7-12, 11 e s.

[lxiv] V. Lobo Xavier /Ferrer Correia, «A amortização de cotas e o regime da prescrição» (1966), p. 97.

[lxv] Cfr. «Apontamentos» (1969), p. 218. Igual redação tinha já o art. 29.º, n.º 2, da 1.ª versão do Anteprojeto (BMJ n.º 160 (1966), p. 93).

[lxvi] Cfr. o art. 66.º, n.º 1, apud Raul Ventura, Sociedade por Quotas (1989), p. 533.

[lxvii] Art. 55.º, na redação final.

[lxviii] Art. 54.º, na redação final.

[lxix] Remete-se para A amortização de quotas e o regime da prescrição, 1966, Apêndice, pp. 84 e s. Trata-se de separata da RDES, por nós citada.

[lxx] Anteprojeto de Coimbra (1979), pp. 59 e s.

[lxxi] Cfr. «A sociedade por quotas de responsabilidade limitada segundo o CSC», Temas (1989), pp. 159 e s.

[lxxii] Parece ser esta a assinalada posição de Ferrer Correia e também a de Raul Ventura, Sociedades por Quotas (1989), pp. 537, 541, 542 e ss. e, sobretudo, 560 e 567. Cfr., ainda, Coutinho de Abreu, Das Sociedades (2021), nota 828, p. 344. Na jurisprudência, claramente no sentido da aplicação da suspensão a uma cláusula de amortização facultativa compulsiva (designando-a de opção e distinguindo-a das de estabilização), cfr. o acórdão do STJ de 23.01.2001 (Ribeiro Coelho), proc. 00A3654.

[lxxiii] Acórdão relatado por Cardona Ferreira, BMJ n.º 469 (1997), pp. 586 e ss. Cfr. também o acórdão do TRP de 17.06.1996 (Abílio Vasconcelos), proc. 9551419, CJ 1996/3, pp. 222 e ss. Porém, no sentido da suspensão dos direitos, embora nos termos mitigados defendidos por Raul Ventura, cfr. o acórdão do STJ de 23.01.2001 (Ribeiro Coelho), citado na nota anterior.

[lxxiv] Acerca das regras da interpretação e integração dos negócios jurídicos, podem ver-se, com mais indicações, Evaristo Mendes / Fernando Sá, Anotação aos arts. 236.º a 238.º do CC, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, coord. de Carvalho Fernandes / Brandão Proença, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pp. 532 e ss., 547 e ss., em especial, as pp. 534 e ss. (notas I, V, VII e VIII a X), 537 e ss. (notas II, V e VI e XI).

[lxxv] Cfr. também, acerca das transmissões executivas, os arts. 228.º, n.º 3, e 239.º, n.º 4.

[lxxvi] Cfr. o teor do art. 8.º, n.º 2, que, embora respeitante a situação distinta, contém uma formulação que também se mostra adequada aqui.

[lxxvii] Veja-se acima o que afirmaram Ferrer Correia e V. Lobo Xavier a respeito as cláusulas de continuação com os sócios sobrevivos e tenha-se presente que, no domínio da LSQ (cujo texto nem sequer previa restrições à transmissão por morte), o próprio Raul Ventura entendia que as mesmas ocasionavam a extinção da quota por morte do titular.

[lxxviii] Como também acontece no art. 324.º, n.º 1, al. a). Na literatura recente, acerca do sentido e âmbito da suspensão contida neste preceito, cfr. Rui Pinto Duarte, «Ações próprias e (alienação do) direito de subscrição de aumentos de capital em dinheiro», DSR 22 (2019), pp. 33-48.

[lxxix] Noutros termos, o conceito – de quota de capital ou quota-valor – vale, não só para o valor nominal da sociedade (valor do capital estatutário), mas, mais genericamente para qualquer valor líquido ou residual da sociedade (o que ela vale para os sócios, valor que se obtém abatendo o valor do passivo e pode designar-se como capital próprio, em sentido amplo, não meramente contabilístico), mormente contabilístico e real; a que há que abater também o valor de eventuais prestações suplementares ou acessórias reembolsáveis realizadas. Porém, como se esclareceu acima, no texto, no caso vertente, está em causa o valor legal ou pleno valor societário da quota, correspondente a uma fração do valor real da sociedade. É sobre ele que incide o fenómeno sucessório, mesmo que haja cláusulas limitativas da contrapartida a pagar pela privação da mesma: estas só funcionarão se e quando tal privação ocorrer.

[lxxx] O mesmo sucede, designadamente, na cessão de quotas ineficaz em relação à sociedade, na aquisição de quotas próprias e, em parte, nas situações previstas no art. 8.º, n.º 2.

[lxxxi] Cfr. Evaristo Mendes, «Compra e venda de sociedades» (2022), pp. 199 e ss., 205 e ss.

[lxxxii] Cfr. Evaristo Mendes, «Compra e venda de sociedades» (2022), citado na nota anterior, ibidem.

[lxxxiii] Este termo implica, naturalmente, a utilização de um conceito alargado de propriedade.

[lxxxiv] Cfr. Evaristo Mendes, «Compra e venda de sociedades» (2022), p. 206.

[lxxxv] Na situação provisória assinalada, pode a quota vir a ser apreendida judicialmente pelos credores da herança. Neste caso, apesar das cláusulas estatutárias, a apreensão incide sobre a quota com o inerente direito à qualidade de sócio, embora a subsequente transmissão executiva ou insolvencial esteja sujeita a preferência (cfr. o art. 239.º, n.º 2, 4 e 5). Vindo a quota a ser amortizada compulsivamente, com fundamento na morte ou na própria apreensão judicial, se o pacto social o previr (cfr. o mesmo art. 239.º, n.º 2), importa ter presente, quanto ao valor compensatório a pagar, a (discutível) norma limitadora da autonomia estatutária contida no art. 235.º, n.º 2.