EVARIST​O MENDES

Resumo: O presente texto, tomando por base o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2023, revisita o tema da transmissão de ações tituladas nominativas, versando, em especial, quatro temas: o da admissibilidade das transmissões solo consensu, que se reafirma; o do modo cartular da transmissão, consistente, em geral, não apenas na aposição nos títulos de uma declaração de transmissão a favor do adquirente, mas também na traditio (entrega dos mesmos títulos, real ou ficta, na medida em que tal seja necessário para a respetiva transferência da posse); o da natureza e valor jurídico do registo individualizado das ações, reafirmando ser ele exterior ao modo cartular de transmissão e possuir caráter legitimador (não sendo sequer necessário para a aquisição da qualidade de sócio correspondente às ações transmitidas); e o da legitimidade e legitimação para requerer este registo, que se entende extensiva ao adquirente empossado dos títulos e beneficiário de uma declaração de transmissão neles aposta a seu favor.

Abstract: The text deals with the transfer of certificated securities (certificated registered shares), the legal value of the record with the issuer (company), and the persons entitled to request this record with the issuer.

Palavras-chaves: Ações tituladas nominativas – Transmissão de ações – Modo de transmissão - Registo

Keywords: Certificated securities – Transfer – Record with the issuer

Evaristo Mendes

Transmissão de ações tituladas nominativas: modo

(A propósito do acórdão do STJ de 15.02.2023)

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2023[1], proc. n.º 721/17.9T8GMR-H.G2.G1.S1

I – O contrato de compra e venda de acções nominativas só fica perfeito, operando a transmissão da propriedade sobre tais bens, quando tenham sido devidamente cumpridas, pela entidade responsável, as formalidades especialmente exigidas pelo artigo 102º, nº 1, do Código de Valores Mobiliários, concretamente quando exista declaração escrita de transmissão inscrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o represente, ou seja, o denominado modo.

II – Sem tais formalidades essenciais, legalmente estabelecidas pela legislação de natureza especial que regula juridicamente o regime dos valores mobiliários (o Código de Valores Mobiliários), a declaração negocial gerará efeitos de natureza obrigacional, consubstanciados no direito do transmissário à exigência da prossecução das condutas idóneas à perfeição do negócio (declaração no título e diligências para o registo junto da emitente), sob pena de integral ressarcimento, no plano indemnizatório, dos prejuízos causados, a ter lugar nos termos gerais, mas não efeitos de natureza real, o que constitui um desvio ao regime regra consignado no artigo 408º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil.

III – Não se encontrando devidamente cumprido o modo relativo ao contrato transmissivo de acções nominativas ao tempo da declaração de insolvência do vendedor, e encontrando-se estas na carteira de títulos do credor pignoratício, é lícita e válida a sua apreensão para a massa insolvente realizada pelo administrador da insolvência, tendo em conta o disposto no artigo 81º, nº 1, do CIRE, segundo o qual “a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”.

IV – Improcede, portanto, a acção de restituição instaurada pelo comprador, ao abrigo do disposto no artigo 146º, nº 1, do CIRE, em negócio de compra e venda de acções nominativas em que não foi cumprido o modo, face à não transmissão em seu favor do direito de propriedade sobre estas, que teria de produzir-se até ao momento em que o alienante poderia validamente dispor dos valores mobiliários em causa.

O texto do acórdão pode consultar-se no endereço:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6233365290e933b280258958003066b1?OpenDocument

Veja-se também o acórdão recorrido, do TRG (José Alberto Pereira Dias), disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/79781ecbe4e6fb63802588ee00524629?OpenDocument .

O presente comentário encontra-se publicado na RDCom , ano de 2023, pp. 959-1009, podendo consultar-se aqui:

https://www.revistadedireitocomercial.com/transmissao-de-aecoes-tituladas-nominativas-modo

Anotação

I

O caso

1. Em 16.04.2013, A – acionista e administrador da SA Lvendeu à Unilec, SA (sociedade de direito francês), mediante contrato escrito, 25.500 ações tituladas nominativas relativas a essa sociedade (da catagoria B), representativas de 51% do seu capital. Como contrapartida, recebeu 127.000 € e o veículo (automóvel) que usava enquanto administrador.

À data da venda, as ações encontravam-se oneradas com penhor, a favor da CEMG (Montepio), em garantia de financiamento concedido à L (no valor global de 5,3 milhões de euros); detendo esta os títulos na qualidade de credora pignoratícia e de depositária(custodiante) das mesmas. A venda foi-lhe comunicada; mas só em maio de 2017 ela declarou ter tido conhecimento atempado, nesta qualidade, da transação, esclarecendo, ainda, que nada tinha a opor-lhe. E só posteriormente, entre 9.06.2017 e 12.09.2018, foi (pela mesma) lavrada nos títulos a competente declaração de transmissão.

Em 9.02.2017, o A foi declarado insolvente. Como a depositária não dera seguimento à comunicação da venda efetuada pela compradora, nesta data, as ações continuavam depositadas junto dela numa carteira de títulos em nome do A.

Em 12.09.2018, as ações, ainda oneradas com o penhor, foram apreendidas para a massa insolvente. O que motivou a presente ação, na qual a compradora – invocando designadamente que a compra e venda operara a transmissão para si das participações e, ainda, que, foram registadas informaticamente em seu nome no livro das ações da L – pediu o seu reconhecimento como titular das mesmas e que os títulos lhe fossem «restituídos».

Obteve ganho de causa na primeira instância – a qual, além de entender que a compra e venda operara a transmissão das ações, pelo que, à data da insolvência, elas já se encontravam na titularidade da compradora, deu como provado o registo da transmissão, supostamente informático, com base em documento junto aos autos. Perdeu, porém, o subsequente recurso no TRG[2], que, por um lado, entendeu ser necessário para operar a transmissão o cumprimento de todos os passos previstos no art. 102.1 do CVM – aposição nos títulos de declaração de transmissão a favor do transmissário e registo no emitente –, por outro lado, deu como não provado este registo, porque, além de o documento de suporte ser em papel e não cumprir as exigências da Portaria 290/2000 (faltando as assinaturas, legalmente prescritas, dos termos de abertura e de encerramento), na opinião do coletivo, para a sua prova seria necessário o certificado previsto no art. 78.1 daquele Código, que, no caso, deveria ter sido emitido pela sociedade L, e tal certificado não estava no processo.

No recurso de revista que se seguiu, o Supremo, através de uma desenvolvida fundamentação da decisão, com largas citações e transcrições de doutrina e jurisprudência a respeito da eficácia translativa ou não da compra e venda, confirmou o acórdão recorrido.

2. Resulta, ainda, da matéria de facto dada como provada: i) que o A foi administrador da sociedade L , a que se referem as ações, e que, durante a sua administração, esta teve prejuízos a rondar os 9 milhões de euros, valor que a compradora nela injetou; ii) que, na verdade, entre 2007 e 2018, ela sofreu prejuízos, incluindo em 2013 (1.8 M, cerca de 4 milhões se contabilizados abonos da compradora e imparidades); iii) que, após a saída do A, a compradora realizou uma injeção de capital para reconstituir os capitais próprios; não se percebendo se se tratou, ainda, daquela injeção ou de uma nova; iv) e que, na data da venda, o valor das ações era zero .

A ser assim, pode também inferir-se, por um lado, que as ações, a terem algum valor nas datas da declaração de insolvência, da sua apreensão para a massa e da subsequente venda concursal, esse valor ter-lhes-á sido conferido, não pelo A, mas – ao menos substancial e determinantemente – pelo apoio financeiro prestado pela compradora; por outro lado, que o seu valor de transação se encontra, adicionalmente, afetado pelo penhor.

Além disso, embora nos textos publicados, únicos a que tivemos acesso, apenas se identifique pelo nome a compradora, o que dificulta a compreensão do contexto em que a transação das ações teve lugar, deduz-se, ainda, dos elementos fornecidos pelo acórdão do Supremo e pelo aresto do TRG que a sociedade L faz parte de uma conhecida rede de grande distribuição (hipermercados), sendo a compradora a «cabeça» do grupo. Estando a L em situação de prolongada perda sistemática (e, mesmo, parece, em situação de insolvência técnica), designadamente por razões reputacionais, esta «resgatou»-a, através da compra da maioria das ações aoA, que, além da qualidade de acionista, deixou o cargo de administrador que vinha a desempenhar há vários anos, e capitalizou-a.

Por conseguinte, mesmo havendo sido eliminada pelo acórdão recorrido a alínea da matéria de facto que dava como provado o registo das ações em nome da compradora, em face da restante matéria assente, tendo em conta os interesses em jogo e as regras gerais da experiência, muito dificilmente se compreende que ela não haja sido registada como nova titular das ações junto da L, assumindo a correspondente qualidade de sócia , com os direitos e vinculações pertinentes. Pode contestar-se a regularidade do registo, mas afigura-se inverosímil a sua inexistência.

Tem interesse, igualmente, saber que, a respeito do registo, o contrato de compra e venda dispunha, na cl.ª 1.ª, n.º 3, transcrita no Aresto: «O presente contrato será utilizado como requerimento junto da entidade emitente dos títulos representativos das ações da sociedade, nos termos e para os efeitos previstos no número 5 do artigo 102.º do Código dos Valores Mobiliários»[3]. O que, inter alia, revela que as partes acordaram na imediata transmissão das ações e na imediata investidura da compradora na posição jurídico-social inerente às mesmas (entrega). Posição que, como se observou, com toda a probabilidade, ela assumiu, capitalizando a sociedade e exercendo os correspondentes direitos sociais, incluindo o de designação de nova administração.

O que mais impressiona são, contudo, as consequências práticas da apreensão das ações: pelo que se deduz da matéria de facto assente, a compradora despendeu na compra das ações – que são bens de segundo grau, uma forma de riqueza pessoal representativa do valor líquido da sociedade (com a respetiva substância económico-patrimonial) – certa soma pecuniária (acrescida de um veículo automóvel), apesar de elas terem, à data, um valor nulo; recuperou financeiramente a empresa social (já sem a presença do vendedor, que não só não tinha capital para tal, como ainda veio a ficar insolvente), através de uma injeção maciça de capital, conferindo, assim, às ações o possível valor de transação suscetível de vir a ser-lhes reconhecido na venda insolvencial, e, das duas uma – ou irá ver entrar no grémio social um estranho, ocupando o lugar que legitimamente acreditava ser seu, ou terá, ela ou a corporação, de suportar o custo do exercício da preferência estatutária que, segundo os dados do aresto, parece existir, caso ela abranja as transmissões executivas. Podem as ações, inclusive, voltar, no futuro, ao insolvente, em virtude do exercício do direito de remição dos seus parentes próximos previsto nos arts. 842 e ss. do CPC.

Acresce o seguinte. Com a comunicação da compra e venda à instituição de crédito depositária das ações, esta manteve a posse dos títulos na qualidade de credora pignoratícia e de depositária, mas ficou obrigada a lavrar nos mesmos a competente declaração de transmissão a favor da compradora e a transferi-los para uma conta de depósito desta [art. 102.2 a) do CVM] [4] ; podendo, ainda, entender-se que, juridicamente, passou a possuir as ações em seu nome. Não se mostra seguro que o dever de assim proceder haja sido posto em causa pela declaração de insolvência do vendedor. Pelo contrário, prima facie, o cumprimento da obrigação não traduz nenhum ato de disposição do património do insolvente, sendo, portanto, válido e eficaz em relação à insolvência[5]. A ser assim, com o seu cumprimento – ocorrido após a data desta, mas antes da apreensão para massa –, pelo menos com ele, ter-se-á operado, a transmissão das ações para a compradora; tornando ilegítima tal apreensão.

3. Conclui-se do exposto que o caso é muito interessante e bastante complexo, não se reduzindo às duas questões jurídicas sobre as quais se debruçaram o TRG e o STJ – a de saber se, para haver uma transmissão de ações tituladas nominativas, eficaz entre as partes e em relação aos respetivos credores, basta a celebração de um contrato (escrito) de compra e venda ou se é, adicionalmente, necessária a aposição nos títulos de uma declaração de transmissão a favor do comprador, e a de saber se, para tal efeito translativo ocorrer, é, ainda, necessário o registo ou averbamento da transmissão junto da sociedade emitente. Justifica-se, por isso, uma reflexão sobre o mesmo. Todavia, em vez de proceder a um possível comentário crítico do acórdão do Supremo (e do acórdão recorrido por ele confirmado) – limitado pela matéria de facto assente e pelas conclusões do recurso de revista –, afigura-se mais útil, por um lado, identificar as questões que o caso – em abstrato – suscita, não apenas de direito probatório, contratual e jusmobiliário, mas também societário e insolvencial, procedendo a uma breve análise das mesmas (II), por outro lado, expor esquematicamente a nossa interpretação do art. 102 do CVM (III), e, por fim, ver mais de perto duas das questões: a relativa ao modo de transmissão das ações (IV) e a de saber quem tem legitimidade para requerer o registo (V).

II

Questões implicadas no caso

4.Vejamos as questões mais relevantes[6]. Em termos suscintos, são as seguintes: i) é possível uma transmissão de ações tituladas nominativas – que, após a emissão dos respetivos títulos (tradicionalmente enquadrados nos títulos de crédito nominativos de massa, de caráter circulante e de índole declarativa e causal), constituem valores mobiliários titulados nominativos, negociáveis , nos termos do art. 102 do CVM, isto é, dotados de um modo especial de transmissão (transmissão cartular)[7], a que o mesmo Código liga um regime especial de tutela do adquirente de boa fé (art. 58) e uma forma especial de legitimação para o exercício de direitos, nos termos gerais, necessária e suficiente (arts. 104.2, 55 e 56), que faz presumir a correspondente legitimidade material[8], como, a respeito dos valores mobiliários escriturais, se dispõe no art. 74.1, legitimação essa que, dada a subsistência do registo, respeita ao exercício do instrumental direito a este e do direito à aquisição da qualidade de sócio pelo transmissário, não ao exercício dos direitos sociais finais (sendo por isso apelidada legitimação intermédia) – por mero efeito de um contrato translativo como a compra e venda (i. e., solo consensu )? Se sim, que eficácia tem ela e, havendo um eventual conflito entre a mesma e uma posterior transmissão cartular, esta prevalece? Sem mais? Apenas nos termos do art. 58?[9]; ii) seja qual for a resposta, para haver uma transmissão cartular, basta apor nos títulos uma declaração de transmissão a favor do transmissário? Ou torna-se necessária também a transferência da posse dos mesmos para este (traditio)?; iii) se a resposta à primeira questão for negativa – isto é, se, no tráfico voluntário das ações entre vivos a título singular, apenas se admitirem as transmissões cartulares (teses neo-realistas ou neo-formalistas) –, para haver transmissão, mesmo entre as partes (e terceiros em geral), é necessário, ainda, o subsequente registo ou averbamento da transmissão junto da sociedade emitente? Na teoria do título e do modo porventura aplicável ao caso, o registo integra o modo? Ou este registo tem simples caráter legitimador e, portanto, apenas é necessário para a transmissão ter eficácia plena (socialmente legitimadora), habilitando o adquirente a exercer os direitos sociais e habilitando a sociedade a tratá-lo como sócio, com a correspondente exigibilidade do cumprimento das obrigações sociais?; iv) em qualquer caso, quem tem legitimidade para requerer o registo? Apenas o alienante (ou eventual depositário das ações)? Também o adquirente (empossado dos títulos e beneficiário de uma declaração de transmissão a seu favor neles aposta)?; v) seja como for, o registo só pode provar-se através de um certificado comprovativo do mesmo emitido pela sociedade emitente? Logo, se ele se considerar necessário para a transmissão, esta também só pode provar-se dessa forma?; vi) se o registo for em papel, não vale como tal e, portanto, considera-se inexistente se não tiver lavrado um termo de abertura e um termo de encerramento assinados pela entidade competente?; vii) se não se admitirem as transmissões solo consensu, do contrato de compra venda nasce, para o vendedor (e para o eventual depositário a quem a compra e venda for comunicada), a obrigação de fazer adquirir as ações pelo comprador, procedendo às formalidades necessárias para que tal aconteça (aposição nos títulos da competente declaração de transmissão e transferência da posse)? E tal obrigação é suscetível de execução específica?; viii) vindo o vendedor a ser declarado insolvente, a mesma obrigação de fazer adquirir as ações ainda pode e deve ser executada? Pelo menos se já deveria ter sido cumprida antes da declaração de insolvência e não o foi?

5. Procede-se, em seguida, a uma breve análise destas questões e de outras com elas conexas.

1.ª) As ações tituladas nominativas são suscetíveis de ser transmitidas por mero efeito de um contrato de compra e venda (título causal) ou, para tal transmissão ocorrer, além do contrato, torna-se necessária a aposição nos títulos de uma declaração de transmissão a favor do transmissário (modus adquirendi)?

Foi esta a questão central apreciada tanto pela primeira instância como pelos tribunais de recurso. Como decorre da ampla (embora não completa) referência doutrinal e jurisprudencial contida no acórdão do Supremo, a doutrina encontra-se dividida acerca do assunto, perfilhando uma parte a tese da consensualidade ou suficiência do contrato, e defendendo a outra parte a teoria medieval do título e do modo, segundo a qual, para haver uma transmissão voluntária entre vivos a título singular, além do contrato causal (título), é necessária, ainda, a declaração de transmissão inscrita nos títulos (modo); e, nos tribunais, é hoje maioritária esta segunda tese.

Quanto ao problema em apreço, limitamo-nos aqui a três observações, remetendo o desenvolvimento do tema para o que já escrevemos noutros textos[10], atualizado nos termos referidos adiante (IV). Primeira: o CVM não regula a transmissão das ações. Limita-se a definir-lhes um modo especial de transmissão enquanto valores mobiliários; e fá-lo, aliás, de forma incompleta, porque falta nele a traditio ou equivalente (cfr. infra ). Se tal transmissão é possível ou não nos termos gerais, é questão sobre a qual o Código não dispõe. Segunda: a exigência do modo para a transmissão se dar adveio historicamente da teoria alemã dos títulos de crédito, sendo característica dos sistemas jurídicos que sujeitam o tráfico de coisas móveis ao princípio da tradição. Ora, é hoje pacífico, mesmo em países como a Alemanha e a Espanha, nos quais este princípio vigora, que, a par da transmissão cartular, também pode haver uma transmissão das ações tituladas nos termos gerais, por efeito direto do contrato[11]. Terceira: morrendo o titular das ações, estas passam para os herdeiros universais ou o legatário com a aceitação da herança ou do legado; se o titular for uma sociedade que é incorporada noutra, com o registo da fusão as ações passam, sem mais, para a incorporante; e assim por diante. Nestes casos, torna-se evidente que a aposição da declaração de transmissão nos títulos, referida no art. 102.1 do CVM, é um mais relativamente a uma transmissão que já ocorreu[12]. Deve entender-se que este preceito legal tem dois significados distintos consoante temos uma transmissão voluntária entre vivos a título sigular e outras transmissões?

2.ª)Independentemente da resposta à questão anterior, para haver uma transmissão cartular, torna-se necessária a declaração de transmissão a que se refere o art. 102.1. Tem ela de ser nominativa, i. e., de indicar o transmissário?

Afigura-se que – na ausência de norma a admitir o endosso em branco das ações – a resposta deverá ser afirmativa, ou seja, tal declaração de transmissão deve indicar o transmissário. É o que decorre da nominatividade das ações, rigorosamente interpretada; e a solução encontra-se, ainda, em sintonia com o atual princípio de transparência que domina o direito societário e o direito do mercado de capitais.

3.ª) Também independentemente da resposta à primeira questão, encontrando-se as ações empenhadas a favor de uma instituição de crédito (financiadora da sociedade a que elas respeitam), que detém os títulos, simultaneamente, na qualidade de credora pignoratícia e de sua depositária, a quem compete apor tal declaração?

Como é natural, mantendo a credora pignoratícia a custódia dos títulos, é a ela que, via de regra, compete lavrar neles a declaração de transmissão, mediante comunicação (e eventual prova) do negócio translativo [art. 102.2a)].

4.ª) Sendo à entidade depositária que compete inscrever tal declaração (legal e/ou contratualmente), devia, in casu, a CEMG ter procedido a essa inscrição?

A resposta é afirmativa. O próprio acórdão recorrido o afirma.

5.ª) Admitindo-se a transmissão por mero efeito de um contrato translativo como a compra e venda (i. e., solo consensu), trata-se de transmitir as ações enquanto tais, pela via da «cessão», seguindo o título o direito nele inscrito (ou incorporado), na corrente linguagem germânica relativa aos títulos de crédito? Ou trata-se de transmitir as mesmas com a respetiva forma cartular , fazendo um todo com ela e, portanto, equiparando-se elas a uma coisa móvel de caráter material?

Embora sejam admissíveis ambas as construções, parece preferível esta segunda. No direito português, isso não suscita qualquer dificuldade, dado que não vigora o princípio da tradição em matéria de coisas móveis (de carácter material).

6.ª) Aceitando-se as transmissões solo consensu, que eficácia tem uma transmissão consensual? Havendo um eventual conflito entre a mesma e uma posterior transmissão cartular, esta prevalece? Sem mais? Apenas nos termos do art. 58?

Apesar de predominar entre os consensualistas a tese de que a transmissão por mero efeito do contrato tem eficácia erga omnes, apenas cedendo perante um adquirente cartular de boa fé, para desembaraçar o tráfico jusmobiliário de possíveis obstáculos, designadamente de índole processual (cautelar), achamos preferível a tese de que a transmissão apenas é eficaz entre as partes e terceiros em geral (incluindo credores do alienante), cedendo, sem mais, perante uma conflituante transmissão cartular, se bem que posterior, salvo hipóteses excecionais de fraude. A existência de um modo especial de transmissão não exclui as transmissões de direito comum, mas tem esta consequência natural[13].

7.ª) Além da aposição da declaração de transmissão nos títulos, para ela se tornar eficaz e, portanto, para ocorrer a transmissão – ou, admitindo a consensualidade, para haver uma transmissão cartular –, é necessária a traditio dos mesmos títulos, real ou simbólica (incluindo o constituto possessório), transferindo a posse, imediata ou mediata, para o adquirente? Apesar de o art. 102.1 referir apenas a declaração, o modus adquirendi compreende ambas as formalidades?

A resposta é afirmativa. Para além de ir nesse sentido a teoria do título e do modo, enquanto o alienante mantiver a disponibilidade dos títulos, tudo se passa no âmbito da sua esfera privada, pdendo ele, em qualquer altura, riscar a declaração em apreço.

8.ª) No caso vertente, havendo-se os títulos mantido nas mãos da CEMG, na qualidade de credora pignoratícia e de depositária , com a notificação do contrato de compra e venda, esta instituição de crédito passou a detê-los em nome da compradora (nova possuidora mediata )? Devendo passá-los para conta de depósito desta?

A resposta é afirmativa. Ao conservar os títulos na conta do vendedor, passou a haver uma desconformidade interna e formal entre a posse e o depósito.

9.ª)Se a resposta à primeira questão for negativa – isto é, se, no tráfico voluntário das ações entre vivos a título singular, apenas se admitirem as transmissões cartulares –, para haver transmissão, mesmo entre as partes (e terceiros em geral), é necessário, ainda, o subsequente registo ou averbamento da transmissão junto da sociedade emitente? Na teoria do título e do modo, porventura aplicável ao caso, o registo integra o modo? Ou este registo tem simples caráter legitimador e, portanto, apenas é necessário para a transmissão ter eficácia plena (socialmente legitimadora), habilitando o adquirente a exercer os direitos sociais e habilitando a sociedade a tratá-lo como sócio, com a correspondente exigibilidade do cumprimento das obrigações sociais?

Da fundamentação do acórdão do TRG resulta a afirmação de que, para o efeito translativo operar, não basta a verificação do modo especial de transmissão previsto no art. 102.1 do CVM – a aludida declaração de transmissão lavrada nestes a favor do transmissário (rectius, a traditio dos títulos, real ou espiritualizada, incluindo a traditio brevi manu, ou o constituto possessório, com tal declaração de transmissão) –, sendo necessário, ainda, este ulterior registo da transmissão junto da sociedade a que as ações respeitam; posição reafirmada no acórdão do Supremo. A argumentação aí expendida, apesar do invocado (mas débil) apoio literal e das considerações gerais e abstratas de política legislativa, que, merecendo a devida atenção, em última análise, levariam à extinção dos valores mobiliários titulados, mostra-se, no entanto, contrária ao atual direito positivo. Com efeito, o entendimento comum – em sintonia com a ocorrida evolução histórica das ações nominativas e com a distinção entre valores mobiliários titulados (rectius, com circulação cartular) e valores mobiliários escriturais, mantida no CVM – é o de que tal registo constitui um mero instrumento de legitimação (final), necessário e suficiente para o exercício dos direitos sociais (por parte do acionista e da sociedade); não integrando aquele modo[14].

De resto, como se viu a respeito domodus adquirendi, morrendo o titular das ações, estas passam para os herdeiros universais ou o legatário com a aceitação da herança ou do legado; se o titular for uma sociedade que é incorporada noutra, com o registo da fusão as ações passam, sem mais, para a incorporante; e assim por diante (cfr. supra, a resposta à 1.ª questão). Nestes casos, torna-se, pois, manifesto que o registo referido no art. 102.1 do CVM, é um mais relativamente a uma transmissão que já ocorreu[15]. Deve entender-se que o preceito legal tem dois significados distintos consoante estejamos perante uma transmissão voluntária entre vivos a título sigular ou perante outras transmissões?

10.ª) Quer se encare o registo como um elemento necessário para haver transmissão, quer se veja nele um instrumento de legitimação e, portanto, um requisito para que uma ocorrida transmissão adquira eficácia plena[16], está o respetivo documento de suporte sujeito a formalidades legais ? Mais especificamente, sendo em papel, só vale como documento de registo se nele estiver lavrado termo de abertura e de encerramento assinados pela entidade competente? Faltando este requisito, considera-se juridicamente inexistente ou, pelo menos, não constitui meio de prova do registo, em geral e em relação a uma transmissão concreta? Tendo ele os assinalados efeitos, pode a sociedade, o transmitente ou um terceiro opor a um transmissário uma tal irregularidade, negando-lhe a condição de aquirente registado?

Rege na matéria a Portaria 290/2000, que, verdadeiramente, regula o registo de emissão previsto nos arts. 43 e 44 do CVM, a que se acrescenta, no caso dos VMT, uma parte III, incompreensivelmente circunscrita às «mudanças de titularidade» (art. 4 e anexo III). Pode ser informático ou em papel (art. 2.1). Pelo art. 3, «Os termos de abertura e encerramento do registo são assinados por quem vincule o emitente e por um titular do órgão de fiscalização» (n.º 1), constando de ambos a data das assinaturas e, ainda, do primeiro, a identificação do emitente e, do segundo, o número de páginas que o compõem (nºs 2 e 3). Em parte alguma se dispõe que a falta destas exigências determina a invalidade, ineficácia ou inexistência do registo, designadamente quando invocado por um acionista, estranho ao cumprimento de tais formalidades.

Tratando-se de um elemento da escrituração mercantil, está sujeito ao regime geral do segredo desta, embora possa ser consultado pelos acionistas [art. 288.1 e) do CSC] e ser exibido judicialmente nos casos previstos no art. 42 do CCom, incluindo o da insolvência (cfr., além deste, o art. 43). Quanto ao seu valor probatório, vale o que se diz a seguir.

11.ª) O registo em apreço só pode ser provado através de certificado emitido pela sociedade a que as ações respeitam (a entidade registadora)? Designadamente, para atestar a existência de uma transmissão registada?

No acórdão do TRG, entendeu-se que sim, invocando, sem mais, o art. 78 do CVM. Note-se, porém, que este preceito respeita aos valores mobiliários escriturais e está concebido, essencialmente, para o exercício dos direitos quando a entidade registadora não é o emitente dos valores mobiliários. Nada na lei indica que, em caso de transmissão de ações tituladas, o adquirente apenas possa provar o respetivo registo desse modo. Na falta de normas especiais, regem o art. 44 do CCom e as disposições gerais do CC (cfr. os arts. 362 e ss., mormente, o art. 366).

12.ª) Seja ele translativo ou não, quem tem legitimidade para requerer o registo? Apenas o alienante (ou eventual depositário das ações)? Também o adquirente (empossado dos títulos e beneficiário de uma declaração de transmissão a seu favor neles aposta)?

Embora o art. 102.4 do CVM apenas aluda – por remissão – ao transmitente (e ao depositário) dos títulos, como se verá mais à frente, existem razões ponderosas no sentido de que tal legitimidade é extensiva ao adquirente cartular das ações. Ela pertence-lhe, inclusive, naturalmente[17].

13.ª) No caso vertente, a CEMG depositária também possuía essa legitimidade? Mesmo que se entendesse que ela pertence, em geral, tão-só ao vendedor, em face do teor do contrato, a compradora não estava por ele autorizada a apresentar o competente requerimento?

Resulta do art. 102.4 [ao remeter para o n.º 2a)] e foi reconhecido pelo TRG que, estando os títulos depositados, o registo pode ser requerido pelo depositário, no caso a CEMG. E, como se assinalou (supra, n.º 2), in casu, o contrato de compra e venda continha esta autorização[18].

14.ª) Para obter o registo, é necessário apresentar os títulos à sociedade, com a competente declaração de transmissão neles aposta?

Embora o texto do art. 102 do CVM não contenha tal exigência, ela decorre dos princípios gerais; mormente da regra de que os títulos de crédito são títulos de legitimação necessária(regra que pode ver-se aflorada nos arts. 55 e 104.2 deste Código), respeitando esta, no caso dos valores mobiliários titulados nominativos, ao exercício do direito a fazer-se reconhecer como sócio (cfr. a seguir) e ao exercício do direito ao registo, que, via de regra, interessará sobretudo ao adquirente, mas pode também ser do interesse do alienante[19].

15.ª)Apesar de o registo desempenhar um papel importante na eficácia plena da transmissão e da titularidade das ações, em termos jurídico-materiais, a questão mais relevante é a seguinte: como se torna uma transmissão cartular de ações tituladas nominativas eficaz em relação à sociedade , passando o transmissário a ficar investido na correspondente qualidade de sócio, no lugar do transmitente? Na verdade, o próprio art. 102 do CVM dispõe no n.º 7 que a corporação não pode opor a falta de um registo que lhe competia efetuar.

Sendo as ações livremente transmissíveis, tal eficácia dá-se com a apresentação do requerimento do registo em devidos termos – o qual também vale como notificação da transmissão. É o que decorre do n.º 5 do mesmo artigo, segundo o qual a transmissão produz efeitos a partir da data do requerimento do registo[20]. Com essa apresentação, dá-se a aquisição, pelo transmissário, da qualidade de sócio correspondente às ações transmitidas e, nas transmissões entre vivos que estamos a analisar, a perda da mesma por parte do alienante. Ou seja, a transmissão passa a ter esta eficácia específica, tornando-se oponível à sociedade, ainda que falte a adicional legitimação registal para o exercício dos direitos sociais. Designadamente, com tal oponibilidade, a sociedade perde os direitos corporativos inerentes às ações em relação ao transmitente, mesmo se, faltando o registo, carece da necessária legitimação para os poder exercer contra o transmissário. O direito a fazer-se reconhecer como sócio é um direito potestativo do transmissário, inerente à adquirida titularidade das ações.

As ações mostram-se no entanto, suscetíveis de ser sujeitas, quanto à transmissão, a limitações estatutárias (art. 328 do CSC). Designadamente, pode a eficácia da transmissão encontrar-se condicionada ou subordinada ao consentimento da sociedade, desde que tal condicionamento tenha associada, em caso de recusa do adquirente como sócio, a obrigação de fazer adquirir as ações por outrem (ou, porventura, de as adquirir ou amortizar) (art. 329.3 do CSC). Havendo uma recusa lícita do consentimento, lícita será também a recusa do registo.

16.ª) No caso em apreço, é verosímil que a compradora não tenha requerido o registo, assumindo a qualidade de sócia correspondente às ações compradas, e não haja sido registada como (nova) titular das mesmas ações? Que significado tem um possível (mais que provável) registo, ainda que porventura irregular?

Já se aludiu a este tópico (supra, I.2 e resposta à questão 10.ª ): da matéria de facto deduz-se com toda a probabilidade que o registo aconteceu, passando a compradora a ocupar na sociedade a posição jurídico-social correspondente às ações em apreço, assumindo a sustentação financeira da empresa social e, naturalmente, exercendo os correspondentes direitos sociais; e a eventual irregularidade formal do registo, que, verdadeiramente, respeita à administração da sociedade e não aos acionistas, não afeta esta posição jurídica.

17.ª) Tendo o vendedor ficado insolvente antes de a declaração de transmissão haver sido aposta pela entidade depositária nos títulos e de estes terem passado para conta de depósito da compradora, que efeitos produz o posterior cumprimento de tal formalidade? O direito da insolvência opõe-se a tal cumprimento? Ou a depositária, mantendo-se obrigada a isso, cumpriu válida e eficazmente a sua obrigação? Sendo a resposta afirmativa, as ações foram licitamente apreendidas para a massa insolvente?

Não há dúvida de que a declaração de insolvência retirou ao vendor legitimidade para dispor dos seus bens, em relação à massa (art. 81.1 do CIRE). Sucede, porém, que, no caso vertente, ele não praticou nenhum ato de disposição das ações. Estas encontravam-se, inclusive, depositadas e a entidade depositária fez o que lhe competia: cumprir, ainda que atrasadamente, o dever jurídico que sobre ela impendia. Por conseguinte, primo conspectu, o modus adquirendi das ações realizou-se à margem do direito da insolvência, não sendo a sua eficácia afetada por ele. No mínimo, o assunto merecia ser ponderado, uma vez que, a ser assim, a apreensão das ações terá sido ilícita.

Atentando no regime do CIRE relativo aos efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso de execução, a resposta afigura-se, aliás, no mesmo sentido. Na verdade, tendo o preço sido integralmente pago, a regra do art. 102 não se aplica; e a situação também não cai diretamente sob a alçada das normas especiais constantes dos artigos seguintes. Mas, tal como sucede com as situações reguladas, designadamente, nos arts. 104 (relativo à venda com reserva de propriedade), 105 (respeitante à venda translativa sem entrega) e 106.1 (contrato-promessa de compra e venda com entrega antecipada), também a presente carece de ser regulada, havendo uma lacuna no Código[21]; e justifica-se que o seja na mesma direção, isto é, reconhecendo à compradora o direito de exigir o cumprimento do contrato.

Pode, inclusive, aplicar-se ao caso, por maioria de razão, o disposto naquele art. 104 (tendo em conta também os demais, sobretudo o último), segundo o qual, havendo as partes condicionado e diferido a produção do efeito translativo do contrato, mediante uma cláusula de reserva de propriedade, o comprador pode exigir o cumprimento do negócio se a coisa já tiver sido entregue na data da declaração de insolvência. Com efeito, por um lado, resulta da matéria de facto que houve uma transferência da «posse» da posição jurídico-social inerente às ações compradas – a compradora, com base no contrato de compra e venda, terá, com toda a probabilidade, assumido tal posição, capitalizando a sociedade e passando a exercer os direitos correspondentes –, apenas não havendo uma posse qualificada, por faltar a aposição nos títulos da declaração de transmissão; o que, em termos substanciais, permite falar numa entrega das ações. Por outro lado, do acordo resulta que a transmissão da «propriedade» deveria ter ocorrido, se não com o contrato, pelo menos logo a seguir à comunicação do mesmo à depositária dos títulos, e desta pode deduzir-se, ainda, a passagem da posse (mediata) das ações para a compradora; sendo a posição desta, portanto, mais forte que a prevista no preceito.

18.ª) A resposta à questão anterior seria diferente se os títulos estivessem nas mãos do vendedor? Poderia – e deveria – ele, após a declaração de insolvência, cumprir, ainda, eficazmente o seu dever? E, não o fazendo voluntariamente, poderia a compradora obter a «execução específica» da obrigação, requerendo ao tribunal a apreensão dos títulos para neles ser lavrada a declaração de transmissão e entrega dos mesmos?

Embora a resposta a esta questão possa, à primeira vista, suscitar mais dúvidas, acerca dela valem, por um lado, as considerações acabadas de fazer acerca dos negócios em curso; por outro lado, o que se dirá mais adiante acerca dos arts. 1061 e ss. do CPC (cfr. infra, n.º 8).


III

Transmissão de ações tituladas nominativas com eficácia plena

6. Decorre da análise precedente que, para haver uma transmissão das ações tituladas nominativas com eficácia plena – que culmina com a eficária em relação à sociedade bilateralmente legitimadora –, é necessário o cumprimento do disposto no art. 102.1 do CVM; e, se as ações estiverem sujeitas a restrições estatutárias, mormente ao consentimento da sociedade[22], torna-se necessário, ainda, este consentimento. Ou seja, estamos perante um procedimento translativo complexo, de formação faseada, cujos efeitos se vão também produzindo faseadamente. Mais especificamente, via de regra, para se conseguir uma transmissão com essa eficácia, é preciso: i) uma causa jurídica da transmissão (morte, fusão ou cisão do acionista titular, ato de aproprição pública, venda executiva ou insolvencial, contrato de sociedade, acordo entre o alienante e o adquirente, maxime compra e venda, etc.); discutindo-se, como se observou, se, no caso das transmissões por ato voluntário entre vivos a título singular, ela é suficiente para operar o efeito translativo entre as partes e terceiros em geral, mas afigurando-se indiscutível essa suficiência nos demais casos; ii) a aposição nos títulos de uma declaração de transmissãoa favor do transmissário ou transmissários; iii) se ainda a não tiver, a transferência da posse dos títulos, mediata ou imediata, para o adquirente, tornando a transmissão eficaz em relação a potenciais adquirentes de direitos conflituantes e, no caso das transmissões negociais, determinando a possível aplicação da tutela do adquirente de boa fé (art. 58 do CVM), conferindo ao transmissário o direito de se fazer reconhecer como sócio e o correspondente direito ao registo, se as ações são livremente transmissíveis, e conferindo-lhe, ainda, a necessária legitimação cartular para o seu exercício (arts. 104.2 e 55.1 do CVM); iv) o requerimento do registo , acompanhado da exibição ou apresentação dos títulos com a declaração de transmissão, através do qual a transmissão se torna eficaz em relação à sociedade; tendo natural legitimidade para tal o adquirente empossado dos títulos e operando neste caso as regras da legitimação previstas nos arts. 55.1 e 56, mas a lei também legitimidade (nalguns casos, problemática) a outras pessoas (art. 102.4); v) e, finalmente, o registo, que constitui o instrumento de legitimação necessário e suficiente para o exercício dos direitos sociais (que não os dois referidos direitos instrumentais e salvo o prescrito no art. 104.3), quer por parte do acionista, perante a sociedade, quer por parte desta, em relação a ele (arts. 104.2, 55.1 e 56); embora, do ponto de vista da tutela da corporação (art. 56), o momento decisivo seja o da efetuação do registo.

7. Explicita-se, em seguida, este procedimento, considerando as duas situações típicas mais comuns: a da transmissão por morte e a da transmissão por ato voluntário entre vivos a título singular. No que respeita à transmissão mortis causa de ações livremente transmissíveis (e não depositadas), o procedimento geral será o que se segue.

Por morte do titular, as ações passam a integrar a herança jacente, até à aceitação desta ou de eventual legado; cessando a inerente qualidade de sócio. Com a aceitação da herança ou do legado, as ações são adquiridas pelos herdeiros ou pelo legatário, por força do princípio da sucessão universal ou segundo as regras da sucessão testamentária.

Estando os títulos já à sua disposição, o cabeça-de-casal - ou, havendo-o, o administrador da herança escolhido pelos herdeiros ou pelo tribunal - lavra neles, consoante o caso: i) uma declaração de que ações do de cujus passaram, com a aceitação da herança, para os herdeiros; ou ii) a declaração de haverem sido adquiridas pelo legatário [art. 102.3 b) do CVM]. Trata-se, em rigor, de uma declaração que apenas formaliza ou documenta nos títulos a transmissão ocorrida ao abrigo do direito sucessóro; documentação esta que o legislador entendeu ser necessária para legitimar cartularmente os herdeiros perante a sociedade, quanto ao exercício do direito potestativo de aquisição da qualidade de sócio inerente às ações e quanto ao exercício do direito ao registo.

Em seguida, no primeiro caso, exibindo os títulos com a declaração de transmissão a favor dos sucessores, o cabeça-de-casal - ou, havendo-o, o administrador da herança escolhido por eles ou pelo tribunal - requer à sociedade o registo dos mesmos como novos titulares (em comum) das ações, com vista à aquisição da correspondente qualidade de sócios e da competente legitimação para o exercício dos (restantes) direitos sociais (art. 102.4 do CVM). O requerimento, embora se dirija formalmente à obtenção do registo, tem também o valor de notificação da aquisição, tornando-a eficaz em relação à corporação e, portanto, operando a aquisição da qualidade de sócio pela coletividade dos sucessores. Cabe salientar, aliás, que, quanto a esta aquisição, se exerce um direito potestativo, enquanto o direito ao registo é um direito de crédito, suscetível de execução forçada através do processo especial de averbamento regulado nos arts. 1061 e ss. do CPC.

No segundo caso, isto é, havendo um legado das ações, embora o requerente do registo possa ser o cabeça-de-casal - ou, havendo-o, o administrador da herança escolhido pelos herdeiros ou pelo tribunal -, o mais natural será que, uma vez aposta nos títulos a indicada declaração de transmissão, a favor do legatário, eles sejam entregues a este e que seja ele a apresentar à sociedade o competente requerimento, exercendo aqueles direitos.

Finalmente, é lavrado o registo da transmissão pela sociedade (ou intermediário financeiro que a represente); instrumento de legitimação necessário para o exercício dos direitos sociais, tanto por parte dos acionistas, como pela sociedade. Cumprido este último passo, a transmissão adquire plena eficácia.

Embora, como se assinalou, no esquema gizado pela lei, a detenção dos títulos pelo cabeça-de-casal, com a competente declaração de transmissão a favor dos herdeiros, pareça legitimá-lo cartularmente, perante a sociedade, fazendo presumir a sua legitimidade material quanto ao exercício dos direitos em apreço, em nome desses herdeiros, nos termos e para os efeitos dos arts. 55.1 e 56 do CVM, e de legitimação semelhante se possa falar a respeito do legatário, tal mostra-se discutível. Ou seja, nem se afigura adequado negar à sociedade o poder de exigir a prova do óbito e/ou da qualidade de herdeiros ou de legatário das ações – e, ainda, da qualidade de cabeça-de-casal ou equivalente -, nem se mostra justificada semelhante presunção[23].

No caso do legado, se os herdeiros não entregarem os títulos ao legatário com a competente declaração de transmissão, possui ele um direito a tal entrega, que o tornará um possuidor qualificado dos mesmos. É este direito suscetível de execução específica através de processo análogo ao previsto no CPC para o averbamento?

Havendo a declaração de transmissão e o registo sido efetuados em nome de uma coletividade de herdeiros, a titularidade das ações, com a inerente qualidade de sócio, não se encontra, ainda, especificada. Tal apenas ocorrerá com a subsequente partilha: parcial antecipada (eventualmente circunscrita às ações) ou definitiva, designadamente notarial. Neste último caso, cabe ao notário lavrar nos títulos a declaração de transmissão e requerer o registo (art. 102.3 b) e 4). Apesar de a partilha ser um negócio entre vivos, embora definidor do destino final dos bens do de cujus, incluindo as ações, quer a declaração aposta nos títulos quer o ulterior registo respeitam a uma transmissão-especificação já ocorrida, independente de tais formalidades.

Se a transmissão por morte se encontrar, por cláusula estatutária, sujeita ao consentimento da sociedade (cfr. os arts. 328.2 a) e 4 e 329.3), a eficácia da mesma em relação a esta e, portanto, a aquisição da qualidade de sócio pelo transmissário (ou pelos transmissários, individual ou coletivamente) depende, em princípio, desse consentimento; não do simples requerimento-notificação relativo ao registo. Tal ato social acresce, por isso, ao procedimento descrito.

8.No que toca à transmissão mediante negócio jurídico entre vivos do titular das ações, o procedimento terá os passos e os efeitos a seguir indicados. Tomamos como referência a compra e venda e as ações livremente transmissíveis. Outros negócios, designadamente, a doação, apresentam especificidades que, numa apresentação geral do tema, podem ficar de fora.

Embora o art. 102 do CVM não o diga, para haver uma transmissão das ações pelo titular, entre vivos, é necessária, em geral, a celebração de um contrato translativo (título), que lhe serve de causa jurídica, justificativa da atribuição patrimonial que se visa realizar. Trata-se de uma decorrência do princípio geral da causalidade.

Como se observou, discute-se se, neste caso, o contrato – pelo menos o contrato escrito – é suficiente para operar o efeito translativo entre as partes e terceiros em geral, incluindo os credores do alienante e do adquirente. No sentido da suficiência, para além do já apontado, veja-se infra, o título IV.

Estando em causa ações tituladas nominativas – valores mobiliários mistos, dotados de um título circulante, emitido em nome de pessoa determinada, e de um registo legitimador –, além de transmissíveis nos termos gerais, elas são também negociáveis, isto é, dotadas de um modo especial de circulação (modus adquirendi), a que a lei liga um adicional regime, também especial, de tutela do adquirente cartular de boa fé (art. 58 do CVM) e de legitimação do possuidor qualificado dos títulos quanto ao exercício dos direitos instrumentais à aquisição da qualidade de sócio e ao registo (arts 55.1 e 56). Este modo consiste, nos termos do art. 102.1 do CVM, na aposição nos títulos de uma declaração de transmissãoa favor do transmissário ou transmissários. Mas há algo mais: por um lado, tratando-se de valores mobiliários de titularidade nominativamente especificada – uma vez que o nosso legislador não admite no caso o endosso em branco e a solução é que mais se harmoniza com a extinção dos valores mobiliários ao portador –, dos títulos tem de constar o nome do adquirente; por outro lado, tal declaração negocial jurídico-cartular apenas produz o efeito pretendido com a adicional traditio dos títulos, real ou simbólica, incluindo a traditio brevi manu e o constituto possessório.

Realizada uma transmissão nestes termos, ela prevalece sobre possíveis transmissões (ou atos de oneração) não cartularizadas conflituantes; e, como se assinalou, o adquirente cartular, possuidor qualificado dos títulos, que haja confiado (com um mínimo de diligência) na aparente legitimidade material do alienante, fundada na sua posse dos títulos, igualmente qualificada, aquire legalmente as ações, mesmo se essa legitimidade material, realmente, não existia (art. 58). Além disso, a mesma posse qualificada dos títulos confere ao transmissário, não apenas o direito potestativo de se fazer reconhecer como sócio e o correspondente direito ao registo, perante a sociedade, nos termos gerais, mas, ainda, a necessária legitimação cartular para o seu exercício (arts. 104.2 e 55.1 do CVM); e a sociedade que proceda ao registo de boa fé é protgegida nos termos do art. 56 do CVM.

O passo seguinte é do requerimento do registo, acompanhado da exibição ou apresentação dos títulos com a declaração de transmissão a favor do transmissário; requerimento esse que também tem o valor jurídico de uma notificação da transmissão à sociedade. Através dele, a transmissão torna-se eficaz em relação esta, perdendo o alienante a qualidade de sócio correspondente às ações transmitidas e adquirindo-a o transmissário (cfr. o art. 102, n.ºs 5 e 7, do CVM).

Quem tem natural legitimidade para tal é o adquirente empossado dos títulos, hipótese em que funcionarão, sem dúvida, as regras da legitimação previstas nos arts. 55.1 e 56. A lei também reconhece, no entanto, legitimidade (nalguns casos, problemática) a outras pessoas (art. 102.4). Retoma-se este tópico adiante, no título V.

Finalmente, temos o registo, que constitui o instrumento de legitimação necessário e suficiente para o exercício dos direitos sociais (que não os dois referidos direitos instrumentais), quer por parte do acionista, perante a sociedade, quer por parte desta, em relação a ele (arts. 104.2, 55.1 e 56); embora, como já se salientou, do ponto de vista da tutela da corporação (art. 56), o momento decisivo seja o da realização do registo. Se este não for realizado, devendo sê-lo, pode o adquirente (ou o alienante) lançar mão do mencionado processo especial de averbamento, regulado nos arts. 1061 e ss. do CPC.

No domínio do CPC de 1961, antes do CVM, o processo também compreendia a inscrição do «pertence» nos títulos. Apesar de este haver sido suprimido na lei substantiva, o art. 1062.2 do atual CPC continua a dispor que, se a sociedade não cumpir a decisão judicial de averbamento, é lançado nos títulos o pertence judicial, que produz os efeitos do averbamento, ou seja, passando os títulos a constituir instrumento de legitimação direta quanto ao exercício dos direitos sociais.

Ainda que no âmbito do processo comum, por faltar processo especial para o efeito, admita-se ou não a transmissão solo consensu, concebe-se também que, se o alienante não entregar ou transferir para a posse do adquirente os títulos com a competente declaração de transmnissão, se possa pedir ao tribunal que ordene a apreensão e a aposição nos mesmos de tal declaração, sendo eles depois entregues ao adquirente.

Tal como se referiu a respeito da transmissão por morte, se a transmissão em apreço se encontrar, por cláusula estatutária, sujeita ao consentimento da sociedade (cfr. os arts. 328.2 a) e 4 e 329.3), a eficácia da mesma em relação a esta e, portanto, a aquisição da qualidade de sócio pelo transmissário depende, em princípio, desse consentimento; não do simples requerimento-notificação relativo ao registo. Tal ato social acresce, por isso, ao procedimento descrito.

IV

Transmissão de ações tituladas nominativas solo consensu

9. Dedicámos um relatório de mestrado, já no recuado ano de 1986, ao tema da compra e venda como contrato translativo e aos sistemas translativos existentes, numa disciplina lecionada pelo Prof. Inocêncio Galvão Telles, relatório esse substancialmente publicado, entretanto[24]. Nele analisámos, designadamente, o princípio da consensualidade no direito português – quanto à sua origem, significado e extensão –, salientando, no século XX, os estudos deste eminente civilista e de Vaz Serra, e defendemos a sua aplicação à transmissão de títulos de crédito e valores mobiliários, ainda que com as limitações decorrentes da existência de um modo especial de circular dos mesmos[25]. Retomámos o tema na tese de mestrado, a respeito das ações (tituladas e escriturais)[26], e, mais recentemente, num estudo publicado com o Prof. Almeida Costa [27] e num comentário de jurisprudência[28].

10. Posteriormente, foram publicados dois novos estudos importantes: um de caráter geral, de Vieira Cura[29], e outro – também com visão alargada, mas versando especificamente o tema da transmissão dos valores mobiliários – de Pedro de Albuquerque[30]. Justifica-se uma breve referência a este último, no que respeita a estes valores mobiliários[31].

O autor realça, em primeiro lugar, que a tese da consensualidade – favorável à eficácia real da compra e venda de ações e outros valores mobiliários – é largamente dominante na doutrina, embora a contraposta tese da mera natureza obrigatória (ou obrigacional) do contrato tenha «alguma receção na Jurisprudência»[32]. Salienta, em segundo lugar, que a primeira se encontra expressamente consagrada para as transmissões de valores mobiliários em mercado (art. 80.2 do CVM)[33]; sendo, no mínimo, dúbias as disposições legais do CVM relativas às transmissões fora de mercado (arts. 80.1 e 102.1)[34]. Refere, ainda, que a essência dos valores mobiliários reside na situação representada – a participação social, «posição de socialidade» ou qualidade de sócio, no caso das ações – e não na forma representativa (título ou registo), meramente declarativa; encontrando-se a primeira sujeita às regras gerais da transmissão de bens e direitos[35].

Em termos substanciais, observa, ainda: i) que a tese da eficácia real «se compagina de modo harmónico, histórica, cultural e dogmática e sistematicamente, com a tradição latina e portuguesa (neste caso, aliás, secular, (…) como sublinhado por Inocêncio Galvão Telles)»[36]; ii) que «se harmoniza com o espírito e o sentimento jurídico nacional, que sempre se mostrou avesso ao efeito apenas obrigacional deste contrato, levando as partes a incluírem, de forma reiterada, ao longo de séculos, cláusulas nos negócios efetivamente celebrados e destinadas a verterem o efeito translativo real imediato e a afastarem o efeito puramente creditício»[37]; iii) que está em linha com a matriz cultural, jurídico-histórico-filosófica da Escola jusracionalista subjacente à ideia de compra e venda no Direito português, diferentemente do que sucede, por exemplo, com a compra e venda em Espanha[38]; e iv) que, em sintonia com os objetivos do Direito dos valores mobiliários, protege o adquirente investidor (de boa fé) [39] – promovendo também a justiça [40] – e é a que mais reforça a (primordial) circulação das ações[41].

Em contraste com isto, a tese da mera eficácia obrigacional da compra e venda de valores mobiliários merece os seguintes reparos: i) respeita apenas às transmissões fora de mercado e baseia-se em textos, no mínimo, duvidosos ou ambíguos[42]; ii) é estranha ao universo histórico-cultural de referência e à matriz do nosso ordenamento jurídico e quebra a unidade do sistema jurídico[43], sendo ainda repudiada pelo sentimento jurídico dominante[44]; iii) mostra-se desnecessária, do ponto de vista dos vetores em jogo[45], e, mesmo, desadequada, favorecendo o vendedor incumpridor e desprotegendo o comprador fiel (investidor)[46]; iv) entra, inclusive, em contradição ou antinomia valorativa dentro do próprio sistema do CVM[47]; v) em face do que antecede, justificava-se uma sustentação consistente da tese em apreço, mas tal não sucede, limitando-se os pertinentes estudos a uma análise imediatista, relativamente perfunctória e superficial[48]; vi) um dos argumentos comummente utilizados é o de que, na compra e venda com eficácia real, o direito adquirido seria sem conteúdo; o que se revela, no entanto, falso, como se comprova, aliás, pela própria admissibilidade das transmissões solo consensu em mercado[49].

11. O autor tece, ainda, importantes considerações de caráter metodológico[50]; mas o que importa aqui realçar são dois aspetos da sua conceção sobre os quais também já nos pronunciámos. Primeiro: a consequência lógica do texto, no que se refere ao eventual conflito entre uma transmissão cartular ou escritural e uma anterior transmissão solo consensu, é a de que o adquirente cartular ou escritural apenas é protegido nos termos do art. 58 do CVM, ou seja, se tiver adquirido as ações (valores mobiliários) com desconhecimento (porventura, não negligente) da anterior transmissão consensual[51]. Segundo: na defesa da consensualidade, adota-se uma perspetiva analítica das ações valores mobiliários, distinguindo nestas a participação social, a que se refere a transmissão, e a «acessória» forma representativa, como também acontece na Alemanha e na Espanha[52].

12. Conclui-se esta nota de atualização com uma breve alusão à alteração do CVM ocorrida em 31.12.2021, no que respeita ao exercício dos direitos sociais relativos a ações escriturais admitidas à negociação em mercado regulamentado[53]. Em estudos anteriores, admitimos que razões de ordenação económica (e tributária), designadamente atinentes à transparência da titularidade das participações sociais, pudessem fazer repensar o princípio da consensualidade[54].

Note-se, porém, que, na versão atual daquele Código, o legislador admite o exercício de direitos sociais (mormente de participação nas AG) e direitos derivados da participação social (ex., crédito de dividendo) por quem não se encontra registado como titular das ações (escriturais); sendo a pessoa registada um intermediário financeiro que as detém, direta ou indiretamente, por conta de um investidor final, comummente entendido como seu «proprietário económico» ou titular indireto. Sendo as ações escriturais instrumentos de legitimação registal necessária (arts. 55 e 83; cfr. o art. 104.2, a respeito dos VM titulados), torna-se imprescindível a intervenção do intermediário financeiro titular da conta de registo e da entidade registadora (quando diferente do emitente); mas, em consonância com a Diretiva 2007/26/CE e a Diretiva (UE) 2017/828[55], que a altera, tais direitos podem (e devem poder efetivamente) ser exercidos diretamente por quem detém uma «simples» posição jurídica obrigacional perante o titular formal (ou fiduciário) das ações (que lhe assegura aquela chamada titularidade económica ou indireta).

Pode discutir-se se o regime não deveria valer apenas para as participações qualificadas, já anteriormente sujeitas a deveres de comunicação que asseguram a pretendida transparência dos detentores de um poder de influência significativo na sociedade; mas a lei, na linha das diretivas, não faz tal restrição. Seja como for, o regime revela que o princípio da transparência é conseguido também por outras vias que não o registo das ações. Significa isto que, também de um ponto de vista substancial e sistémico, o CVM não se opõe ao princípio da consensualidade, que, admitindo-se, implica poder o referido investidor final, no fim de contas, ser, não um simples «titular económico», mas o titular jurídico-material das ações (o que, mesmo atendendo à indicada legitimação registal necessária, representa um plus, relativamente à mera propriedade económica ou indireta).

Justifica-se, ainda, uma breve nota histórica. A teoria medieval do título e do modo – que o Código civil francês de 1804 e, na sequência dele, os oitocentistas Código civil italiano e português abandonaram, por, devido às formas espiritualizadas de transferência da posse, ela ser vista como uma complicação inútil, tendo deixado de refletir a prática negocial, em especial a tabeliónica – foi entre nós, quanto às ações tituladas nominativas, contestada sobretudo por Vaz Serra e rejeitada pelo STJ no início dos anos 70 do século XX[56]. Porém, após a Revolução de 1974, o legislador interveio, primeiro através do DL 211/75, depois por via do DL 150/77 e, sobretudo, pelo mais desenvolvido DL 408/82, instituindo um procedimento estritamente formal e controlado de transmissão das ações, mormente nominativas, envolvendo designadamente o registo ou depósito obrigatórios das mesmas, em sintonia com o espírito intervencionista que então caracterizava a constituição económica e a atuação do Estado na economia e a necessidade de combater a evasão fiscal, numa altura em que a AT não dispunha dos atuais meios de investigação e controlo. No fundo, a ressurreição daquela teoria funda-se, pelo menos em boa medida, nestes diplomas legais e neste contexto, entretanto ultrapassados.

V

Legitimidade para requerer o registo de ações tituladas nominativas

13. Tratámos do tópico em título num comentário que disponibilizámos há já algum tempo[57]. Sumariam-se, em seguida, os principais argumentos no sentido de que, nas transmissões voluntárias entre vivos, em geral, não apenas o alienante, mas também o adquirente possui legitimidade para requerer o registo; sendo esta, inclusive, a mais natural e menos problemática. São eles:

1) Em primeiro lugar, o normal será resultar do contrato de alienação - mormente da compra e venda - um direito ao registo, quer por parte do alienante, quer por parte do adquirente, ambos tipicamente interessados nisso.

2) Pode, inclusive, dizer-se que o adquirente é, via de regra, o principal interessado.

3) Em segundo lugar, as ações têm inerente a socialidade. Quem as adquire fica investido no direito de se fazer reconhecer como sócio, tornando a aquisição eficaz perante a sociedade. Logo, possui o direito de requerer o registo, produzindo este efeito.

4) Na verdade, sendo o novo titular das ações, compreende-se mal que estivesse dependente do alienante para tal se dar. Isso é evidente nas situações em que o contrato de alienação se conclui, contra a vontade deste, em execução de um contrato-promessa, nas quais é totalmente improvável que o alienante tenha essa iniciativa (embora aqui possa admitir-se o requerimento por funcionário judicial, ordenado pelo juiz que supre a falta de vontade do alienante). Mas, mesmo em geral, se alguém adquire um direito e carece de uma formalidade para tornar a sua titularidade plenamente eficaz, se o cumprimento de tal formalidade por si for viável, como é o caso, deve poder fazê-lo.

5) Em terceiro lugar, o contrato de alienação pode ser inválido ou ineficaz e, apesar disso, o beneficiário ser o efetivo adquirente das ações, nos termos do art. 58 do CVM. Estando o alienante interessado na invalidação ou no reconhecimento da invalidade ou ineficácia do negócio, não é plausível que venha a requerer o registo.

6) Em quarto lugar, neste sentido depõe o elemento sistemático da interpretação (coerência do sistema). Com efeito, se essa é a regra relativa às ações escriturais [arts. 66.2 a) e 67.1/2ª parte], não se compreenderia que a solução fosse diferente para as ATN.

7) Pode, aliás, acrescentar-se um argumento sistemático de índole mais geral: essa é também pacificamente a regra relativa à transmissão de direitos não reais, de quotas e de ações simples (não valores mobiliários), apesar de não expressa na lei.

8) Em quinto lugar, estão em causa títulos de crédito circulantes e a transmissãocartularefetiva-se com a entrega, em princípio ao adquirente, dos títulos com a declaração de transmissão neles aposta. Sendo a apresentação destes necessária para exigir o registo à sociedade, é natural que o requerimento seja feito por quem os tem na mão.

9) Em sexto lugar, a sociedade apenas beneficiará inequivocamente de um especial regime de tutela contra a eventual inexistência de um direito ao registo (carência de legitimidade material), designadamente por falta ou anomalia no negócio translativo, se o requerimento for efetuado pelo adquirente, mediante a exibição de títulos que documentem uma transmissão a seu favor e que contenham uma cadeia ininterrupta de transmissões cartulares a contar do último inscrito no registo, se for o caso (cfr. o art. 56 do CVM).

10) Em sexto lugar, o adquirente, empossado dos títulos, é o único que se encontra cartularmente legitimado para exercer o direito em causa (art. 55.1 do CVM). E, após a extinção das ações ao portador, a alusão ao caráter legitimador do título apenas se pode referir a tal direito (e ao direito de/à aquisição da qualidade de sócio). Seria estranho que, num sistema em grande medida assente na legitimação formal, cartular e escritural, o legitimado cartular não tivesse legalmente legitimidade material.

11) Em sétimo lugar, desde que se admitiu a cartularização das ações, sempre foi assim, sendo também a lição que se colhe nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, designadamente, da Alemanha, da Espanha e, historicamente, da Itália, em que se reconhece legitimidade ao endossado dos títulos[58].

12) Em oitavo lugar, a legitimidade do alienante até se revela problemática, mormente quando as ações tenham inerente uma obrigação de entrada ou acessória.

13) Em nono lugar, a alusão da lei apenas à legitimidade do transmitente (alienante) pode ter uma justificação deste género: sobretudo tendo em conta a existência de um título circulante, legitimador quanto ao direito em apreço, poderia discutir-se se, além do adquirente cartular, também é de reconhecer legitimidade ao alienante; a lei resolveu a questão em sentido afirmativo, sem, naturalmente, querer com isso, do mesmo passo, retirá-la ao adquirente.

14) Por fim, note-se que, nas transmissões universais entre vivos, tem de se reconhecer legitimidade ao adquirente. [59]



[1] Disponível em www.dgsi.pt. Relator: Luís Espírito Santo.

[2] Acórdão de 20.10.2022, disponível em www.dgsi.pt . Relator: José Alberto Moreira Dias.

[3] Segundo o art. 102.4, como foi reconhecido no acórdão do TRG, a depositária tinha legitimidade para requerer o registo a favor da compradora, a par do vendedor. Mas, como resulta daqui, no caso sub judice, o próprio contrato de compra e venda dispunha que o mesmo seria utilizado como requerimento junto da entidade emitente dos títulos representativos das ações da sociedade, nos termos e para os efeitos previstos no número 5 deste artigo; o que autorizava, igualmente, a compradora a fazê-lo (apresentando, para o efeito, o documento à sociedade, como também sucede com os valores mobiliários escriturais – arts. 66.2 e 67.1 do CVM).

[4] No acórdão recorrido, do TRG, afirma-se expressamente que a depositária estava legalmente obrigada a lavrar nos títulos a declaração de transmissão , tendo, ainda, legitimidade para requerer o registo, tal como o vendedor. Acerca deste último aspetro, cfr. a nota anterior.

[5] Na verdade, esta determinou o vencimento das dívidas do insolvente (art. 91 do CIRE) e retirou-lhe legitimidade para dispor dos seus bens, em relação à massa (art. 81.1 do CIRE); mas ele não praticou nenhum ato de disposição das ações. Com efeito, aplicando rigorosamente o princípio da causalidade, apenas se verificou uma condicio iuris da transmissão, cujo título é o contrato de compra e venda; e tal verificação nem passou por ele. Mas, mesmo entendendo que a entrega dos títulos com a competente declaração de transmissão aposta (que faz presumir a causa) constitui um autónomo negócio translativo, do contrato de compra e venda resultou, pelo menos, o dever -meramente instrumental - de realização das formalidades necessárias para que o comprador adquirisse as ações. Pelo menos «materialmente», elas já eram suas. No caso, a compradora fez o que lhe competia, antes da declaração de insolvência; havendo uma simples omissão irregular da entidade depositária, lapso que ela corrigiu, como lhe competia, embora após tal declaração.

Pode, inclusive, ir-se mais além, na fundamentação jurídica da solução. Na verdade, afigura-se que a situação em apreço deveria ter sido regulada no CIRE, havendo uma lacuna no mesmo, carecida de ser colmatada; e da interpretação conjunta dos arts. 104, 105 e 106.1 do Código, atendendo à ideia que lhes subjaz, retira-se uma regra nesse sentido. Com efeito, no caso, por um lado, havia pelo menos o dever de fazer adquirir as ações e, inclusive, este dever venceu-se (muito) antes da declaração de insolvência, por outro lado, com a comunicação do contrato à depositária, a compradora terá, inclusive, adquirido a posse mediata das ações, podendo ainda falar-se na existência de um direito real (de propriedade) em formação, acrescendo, ainda, que, com toda a probabilidade, a compradora passou a comportar-se como acionista, ao abrigo do contrato de compra e venda, assumindo os correspondentes direitos e responsabilidades sociais (o que equivale materialmente à entrega da posição jurídica conferida pelas ações). Retoma-se este tópico adiante (II).

[6] Deixam-se de fora, designadamente, as relativas ao penhor das ações, apesar de este ter implicações insolvenciais e afetar em geral o respetivo valor de venda.

[7] Em países como a Espanha e a Alemanha, trata-se de um endosso, sendo os títulos qualificados como títulos à ordem e remetendo-se, quanto à transmissão, para o regime da LULL. Na Itália, também se admite a transmissão por endosso, mas esta não é a única e, dada a presença do registo, a par do título, este, tradicionalmente, era enquadrado nos títulos nominativos (de massa). Hoje, com a desvalorização do registo, a situação é diferente (cfr. adiante, nota 14).

[8] Cfr. aqueles arts. 55 e 56 e, ainda, o art. 58, relativo à transmissão, bem como, por ex., na LULL, os arts. 16 I e 40 III.

[9] Sendo a resposta afirmativa, acresce a questão de índole construtiva: trata-se de transmitir as ações enquanto tais, pela via da «cessão», seguindo o título o direito, na corrente linguagem germânica relativa aos títulos de crédito? Ou trata-se de transmitir as mesmas com a respetiva forma cartular, fazendo um todo com ela e, portanto, equiparando-se a uma coisa móvel de caráter material?

[10] Cfr., por ex., «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários – Ac. do STJ de 5.2.2019», CDP 70 (2020), pp. 32-51, 39 e ss., e «Transmissão de ações e exercício de direitos sociais. Breve comentário de jurisprudência», 2020, disponível em evaristomendes.eu, I-19, https://www.evaristomendes.eu/files/p_01_19.pdf, em especial, § 2.º, pp. 36 e ss.

[11] Dispõe o § 68 (1) da Aktiengesetz, após alteração de 2001: «Namensaktien können auch durch Indossament übertragen werden. Für die Form des Indossaments, den Rechtsausweis des Inhabers und seine Verpflichtung zur Herausgabe gelten sinngemäß Artikel 12, 13 und 16 des Wechselgesetzes.» Sobre ele, cfr., por ex., Raiser/Veil, Recht der Kapitalgesellschaften, 3.ª ed., Vahlen, Munique, 2001, p. 121 (Rn 68), Uwe Hüffer, Aktiengesetz-Kommentar , 9.ª ed., Beck, Munique, 2010, p. 336 (Rn 3), Marcus Lutter/Tim Drygala, in Zöllner/Noack (dir.), Kölner Kommentar zum Aktiengestz , 1/1 (§§ 67-75), 3.ª ed., Carl Heymanns, 2009, Rn 7, 34 e ss., Hanno Merkt, in Hopt/Wiedemann (dir.), Gosskommentar zum Aktiengesetz, 4.ª ed., De Gruyter, Berlim, 2008, Rn 2, 117 e s., e Dirk Dolveen, in Hölters/Weber (dir.), Aktiengesetz-Kommentar, Beck/Vahlen, Munique, 2022, pp. 55 e s. (§ 10, Rn 12, 15 e s.). Cfr., ainda, Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020), notas 11 e 27.

A Ley de sociedades de capital espanhola, na linha da lei alemã, estabelece no art. 120.2: «Las acciones nominativas también podrán transmitirse mediante endoso, en cuyo caso serán de aplicación, en la medida en que sean compatibles con la naturaleza del título, los artículos 15, 16, 19 y 20 de la Ley Cambiaria y del Cheque. La transmisión habrá de acreditarse frente a la sociedad mediante la exhibición del título. Los administradores, una vez comprobada la regularidad de la cadena de endosos, inscribirán la transmisión en el libro-registro de acciones nominativas.» Sobre ele, vejam-se Andrés Recalde Castells/David Pérz Millán, in Comentario de la Ley de Sociedades de Capital , dir. de García Cruces/Sancho Gargallo, II, Tirant lo blanch,Valência, 2021, pp. 1663 e ss.

O CO suíço prescreve no art. 684 (2): «Le transfert par acte juridique peut avoir lieu par la remise du titre endossé à l’acquéreur». E o que se diz no texto pode ser confirmado, por ex., em Martin E. Looser, «Namenaktien: Die gesetzlichen Orderpapiere», que escreve: «Als Wertpapiere ausgegebene Namenaktien sind in der Regel frei übertragbare Ordrepapiere (Art. 684 Abs. 1 OR). Zur Übertragung bedürfen sie eines gültigen obligatorischen Grundgeschäfts, der Übergabe der Aktie, der Verfügungsbefugnis des Veräusserers oder – bei deren Fehlen – der Gutgläubigkeit des Erwerbers sowie eines Indossaments (Art. 684 Abs. 2 OR). Anstelle einer Indossierung können die Aktien auch Gegenstand einer schriftlichen Zession bilden (vgl. BSK OR II – du Pasquier/Wolf/Oertle, 5. Auflage, Basel 2016, N 5 zu Art. 684 OR).», disponível em https://www.weka.ch/themen/recht/gesellschaftsrecht/aktiengesellschaft/article/namenaktien-die-gesetzlichen-orderpapiere/ . Cfr. também a Newlwetter de Bettina Rudin/Jennifer Ehrensperger, «Stolpersteine bei der Aktienübertragung», 2017, disponível em https://www.suterhowald.ch/upload/publications/newsletter_august_2017_e.pdf.

[12] Cfr., por ex., Almeida Costa/Evaristo Mendes, «Transmissão de ações tituladas nominativas» (2011), in Estudos dedicados ao Prof. Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes , III, UCE, Lisboa, 2011, pp. 13-66, 26 e ss., 30 e s., e Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020), p. 45.

[13] Cfr. infra, IV.

[14] Acerca do caráter meramente legitimador do registo das ATN, cfr., por ex., com mais indicações, Evaristo Mendes, «Transmissão de ações e exercício de direitos sociais. Breve comentário de jurisprudência» (2020), § 3.º, Almeida Costa/Evaristo Mendes, «Transmissão de ações tituladas nominativas» (2011), cit., sobretudo pp. 34 e ss., e Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial , II – Das Sociedades, 7.ª ed., 2021, p. 362, aliás citado no acórdão recorrido neste sentido, que, no entanto, perfilhou a tese minoritária defendida por Soveral Martins (cfr., deste autor, desenvolvidamente, a anotação citada na nota 17, pp. 557 e ss.). Noutros ordenamentos jurídicos, desconhecemos soluções semelhantes à acolhida no aresto. Cfr., a título de mero exemplo, quanto à Espanha, o art. 116 da LSC e a anotação de Andrés Recalde Castells/David Pérz Millán, in Comentario de la Ley de Sociedades de Capital , dir. de García Cruces/Sancho Gargallo, II, Tirant lo blanch,Valência, 2021, pp. 1599 e ss.; quanto à Alemanha, o § 67 da AktG e, por ex., a respetiva anotação de Uwe Hüffer, Aktiengesetz-Kommentar (2010), pp. 321 e ss., Marcus Lutter/Tim Drygala, in Kölner Kommentar zum Aktiengestz , 1/1 (§§ 67-75) (2009), Rn 42 e ss., Hanno Merkt, in Gosskommentar zum Aktiengesetz (2008), Rn 48 e ss., e Mayer/Albrecht von Kolke, in Hölters/Weber (dir.), Aktiengesetz-Kommentar, Beck/Vahlen, Munique, 2022, pp. 396 e ss. (Rn 11 e ss.); e, quanto à Suíça, o art. 686 (4) do Code des Obligations (cfr., ainda, quanto às ações cotadas, o art. 685f) . No direito italiano, vai-se mais longe. Dispõe o art. 2355 (3) do Codice civile, na atual redação, a respeito de uma das formas (cartulares) possíveis de transmissão das ações tituladas nominativas: «Il trasferimento delle azioni nominative si opera mediante girata autenticata da un notaio o da altro soggetto secondo quanto previsto dalle leggi speciali. Il giratario che si dimostra possessore in base a una serie continua di girate ha diritto di ottenere l'annotazione del trasferimento nel libro dei soci, ed è comunque legittimato ad esercitare i diritti sociali ; resta salvo l'obbligo della società, previsto dalle leggi speciali, di aggiornare il libro dei soci.»Acerca da traditio não real, cfr. também Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020), p. 41.

Na verdade, as ações nominativas surgiram historicamente como ações registadas junto da socieade emitente, transmitindo-se mediante termo lavrado no competente registo. Embora fosse comum a existência de um documento destinado a fazer a prova da sua existência e titularidade, só na segunda metade do séc. XIX em paízes como a Alemanha e a Itália (e depois também Portugal) este documento foi elevado à condição jurídica de um título de crédito circulante, passando tais ações, na linguagem atual, a ser valores mobiliários mistos: cartulares quanto à circulação e registados quanto à legitimação. O registo passou a cumprir uma mera função legitimadora. Cfr. Almeida Costa/Evaristo Mendes, «Transmissão de ações tituladas nominativas» (2011), pp. 34 e ss. Tendo o CVM mantido a distinção entre VMT e VME, faz menos sentido integrar o registo no modo específico de transmissão dos primeiros, uma vez que, a ser assim, verdadeiramente eles também seriam valores mobiliários escriturais, com um adicional título inútil, sem real função circulatória.

[15] Cfr., de novo, Almeida Costa/Evaristo Mendes, «Transmissão de ações tituladas nominativas» (2011), cit., pp. 26 e ss., 30 e s., e Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020), p. 45.

[16] Partimos aqui da situação comum. Na realidade, pode haver um registo a favor de um comprador que não é (ainda) titular das acções, porque, designadamente, a compra e venda foi com reserva de propriedade: cfr. Evaristo Mendes, «Compra e venda de sociedades», in VI Congresso DSR, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 197 e s. Acerca da eficácia da transmissão em relação à sociedade, que opera a passagem da qualidade de sócio do alienante para o adquirente, cfr. adiante (questão 15.ª) einfra, III.

[17] Cfr. Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020), p. 41, e, desenvolvidamente, «Transmissão de ações e exercício de direitos sociais. Breve comentário de jurisprudência» (2020), § 3.º, assim como Soveral Martins, anotação ao revogado art. 327 do CSC, in Coutinho de Abreu (coord.), CSC em Comentário, V, 2.ª ed., 2018, p. 553, nota 22. Sumariam-se adiante os principais argumentos a favor da legitimidade do adquirente (V).

[18] Acerca deste ponto, cfr. a nota 3 e, mais desenvolvidamente, Almeida Costa/Evaristo Mendes, «Transmissão de ações tituladas nominativas» (2011), pp. 34 e ss., 37 e ss. O tópico da legitimidade será retomado adiante (V).

[19] Cfr. também Soveral Martins,Anotação ao artigo 327 do CSC, in CSC em Comentário V (2018), p. 554.

[20] Note-se que, estando em causa ações, os n.ºs 4 a 7 do art. 107 respeitam às relações com a sociedade (emitente).

[21] Pode, inclusive, dizer-se que a lacuna apenas existe para os partidários da doutrina do título e do modo; sendo, neste sentido, um resultado, menos feliz, da interpretação por eles dada ao CVM e depondo contra esta.

[22] As comuns cláusulas de amortização facultativa requerem análise à parte. Acerca do problema nas SpQ, cfr. Evaristo Mendes, «Morte de sócio de SpQ. Transmissão e e cláusulas de amortização de quotas», DSR 29 (2023), pp. 161-204.

[23] Na verdade, como não há verdadeira transmissão cartular, apenas a documentação ou formalização nos títulos da transmissão sucessória, a sociedade deve poder exigir prova desta ( v.g., escritura de habilitação de herdeiros ou testamento-legado).

[24] Cfr. Evaristo Mendes, «A compra e venda como contrato translativo. Alguns aspetos», O Direito, 148 (2016) IV, pp. 779-821.

[25] Estudo citado, pp. 781 e ss., 793 e ss.

[26] Cfr. Evaristo Mendes, (D)a transmissibilidade das ações, tese, Lisboa (UCP) 1989, I, disponível em https://evaristomendes.eu/Artigos.html, I – 18, nºs 172 e ss., e, quanto ao direito alemão, n.ºs 31 e ss.

[27] Cfr. M. J. de Almeida Costa / Evaristo Mendes, «Transmissão de ações tituladas nominativas», RLJ 139 (2009), n.º 3959, e in Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes (2011), supracitado, pp. 41 e ss., 63 e s.

[28] Cfr. Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020), pp. 32 e ss., 38 e ss., em especial, pp. 42 e ss. (cfr., ainda, a nota 11). Cfr. também «Transmissão de ações e exercício de direitos sociais. Breve comentário de jurisprudência» (2020), como o anterior, já citado mais acima, e «Compra e venda de ações. Nota prática sobre o princípio da consensualidade e seus limites», disponíveis em https://evaristomendes.eu/Artigos.html, I – 19 e 20.

[29] Cfr. António Vieira Cura, Fundamentos romanísticos do direito privado português, I -Compra e venda e transmissão da propriedade, Gestlegal, Coimbra, 2020, situando a raiz da eficácia real da atual compra e venda no direito romano pós-clássico.

[30] Cfr. Pedro de Albuquerque, «Venda real e (alegada) venda obrigacional no Direito civil, no Direito comercial e no âmbito do Direito dos valores mobiliários (a propósito de um Estudo de Inocêncio Galvão Telles)»,RFDUL-LLR, LXII (2021), pp. 657-724. Acerca da compra de valores mobiliários, vejam-se as págs. 669 e ss., 683 e ss.

[31] Sobre o tema, defendendo a transmissão solo consensu,podem ver-se, também, Rui Soares Pereira, «Ainda a eficácia (real) da compra e venda de acções», O Direito, 149 (2017), III, pp. 575-601, e José Ferreira Gomes, M & A – Aquisições de Empresas e de Participações Sociais, AAFDL, Lisboa, 2022, pp. 84 e ss., máxime, 96 e s.

[32] Estudo citado, pp. 669 e ss., 771 e ss., 683 e ss., 696.

[33] Estudo citado, pp. 689 e ss., aludindo também ao art. 210.1. O primeiro dispõe: «A compra em mercado regulamentado e em sistema de negociação multilateral ou organizado de valores mobiliários escriturais confere ao comprador, independentemente do registo e a partir da realização da operação, legitimidade para a sua venda nesse mercado». No segundo, prescreve-se: «Os direitos patrimoniais inerentes aos valores mobiliários vendidos pertencem ao comprador desde a data da operação».

[34] Estudo citado, pp. 696, 705 e 711 e s.

[35] Estudo citado, pp. 684, 689, 717 e ss.; cfr., ainda, pp. 706 e ss. (acerca do caráter declarativo e consolidativo do registo e sobre o foco do CVM nas formas de representação). Sobre este ponto, cfr. também Evaristo Mendes, Tese (1989), nºs 73 e ss., 150 e ss., 163, 165 e ss., e, por último,«Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020)», pp. 46 e ss., 48. Salienta-se que, na teoria dos títulos de crédito, os títulos acionários são meramente declarativos, não constitutivos: cfr., por ex., Evaristo Mendes, Direito Comercial – Títulos de Crédito, Apontamentos das aulas proferidas na FDL no ano letivo de 1990/91, disponível em https://www.evaristomendes.eu/files/p_03_01.pdf , n.º 3.

[36] Estudo citado, pp. 691 e s., 694 e ss. Sobre este ponto, cfr. também Evaristo Mendes, «A compra e venda» (1986/2016), pp. 781 e ss., 793 e ss.

[37] Estudo citado, pp. 692, 695 e ss., 704 e s. e 709; e, em geral, pp. 661 e ss. Sobre este ponto, cfr. também Evaristo Mendes, «A compra e venda» (1986/2016), pp. 786 e ss., e«Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020)», pp. 42 e ss. Note-se que o que se verificou em Portugal ocorreu, igualmente, na Itália e em França, levando o legislador gaulês a inserir o princípio da consensualidade no CC de 1804.

[38] Estudo citado, pp. 709 e ss. Como se observou acima (nota 11), em Espanha, a transmissão cartular (por endosso) requer a entrega dos títulos, mas também se admite a via da cessão.

[39] Estudo citado, pp. 693 e s., 706.

[40] Estudo citado, pp. 693 e s., 697, 704.

[41] Estudo citado, pp. 694, citando Almeida Costa/Evaristo Mendes e, em geral, Galvão Telles. O autor acrescenta que isto só não seria assim se a transmissão estivesse, ainda, sujeita aos princípios da separação e da abstração. Note-se, porém, que, hoje, está assente na Alemanha que as ações tituladas nominativas são transmissíveis não apenas cartularmente, mas também por via da cessão (consensual) das mesmas. Cfr. Evaristo Mendes, por último, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020)», pp. 44, nota 27, e supra, nota 11.

[42] Estudo citado, pp. 689 e ss., 696 (realçando também a falta de trabalhos preparatórios do CVM no sentido de uma solução diferente da que resulta da tradição secular e das coordenadas gerais do sistema), 705 e 711 e s. Acerca do (inconclusivo) elemento literal da interpretação no CVM e o art. 80.2 deste Código, cfr. também Evaristo Mendes, por último,«Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020)», pp. 44 e s.

[43] Estudo citado,pp. 691 e ss., 704 e ss., 709 e ss., 716 e s. Cfr. também Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020)», pp. 46 e ss.

[44] Estudo citado, pp. 662 e ss., 692, 694 e ss., 704 e s. (708). Cfr. também Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020), pp. 42 e ss., 46 e ss.

[45] Estudo citado,pp. 705 e ss., 708.

[46] Estudo citado, pp. 693 e s. Cfr. também Rui Soares Pereira, estudo cit., p. 593, e Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020)», pp. 48 e ss.

[47] Estudo citado, pp. 689 e ss., 693 e s., 708, aludindo também à transmissão de quotas e ações não valores mobiliários sem eficácia em relação à sociedade. Acerca deste último aspeto, cfr. também Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020)», p. 50 e nota 54.

[48] Estudo citado, pp. 696 e ss., 705 e ss., 711 e ss.

[49] Estudo citado, pp. 689 e ss. Cfr. também, desenvolvidamente, Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020)», pp. 49 e s.

[50] Estudo citado, pp. 697 e ss.

[51] Diferentemente, quanto a este aspeto, cfr. Evaristo Mendes,«Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020)», pp. 49 e s., e A transmissibilidade das acções (1989), n.ºs 174 e 177-179, em nota, revendo a posição inicial.

[52] Em sentido próximo, José Ferreira Gomes, ob. e loc.cit. Cfr. também Rui Soares Pereira, estudo cit., pp. 593 e s.Sobre o assunto, cfr., ainda, Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020)», p. 48, observando que o princípio da consensualidade, em sistemas como o nosso, sem princípio da tradição na transmissão de coisas móveis corpóreas, vale, igualmente, quando se tem do fenómeno translativo uma visão sintética.

[53] As alterações foram introduzidas pela Lei 99-A/2021 e as disposições pertinentes são, sobretudo, o n.º 5 do art. 78 e os arts. 21-E, 21-G e 23-C.

[54] Cfr. Almeida Costa / Evaristo Mendes, «A transmissibilidade» (2011), p. 66, e Evaristo Mendes, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários» (2020), p. 51.

[55] Transposta, no que aqui interessa, pela citada Lei 99-A/2021.

[56] Cfr. os nossos estudos supracitados, em especial, «Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliário» (2020), p. 45.

[57] Cfr. «Transmissão de ações e exercício de direitos sociais. Breve comentário de jurisprudência» (2020), citado supra, nota 10, § 3.º, pp. 49 e ss.

[58] Acerca da atual posição singular da Itália (mas reforçando o argumento), cfr.supra, nota 14.

[59] Para ulteriores indicações, cfr. supra, n.º 7, bem como a nota 12 e o texto correspondente.